Benilson Toniolo
A casa já tinha um cão de guarda,
o Tóbi. Quando este completou três anos o dono da casa, achando que ele andava
muito sozinho e ‘humanizado’ –já estava se vendo a hora de o Tóbi falar ‘bom-dia’
ao primeiro que abrisse a porta pela manhã-, arranjou-lhe companhia: um filhote
a quem chamaram de Kuka.
Quando o pai anunciou a novidade
em casa, o único a manifestar-se em contrário –pelo menos, foi o que pareceu-
foi o caçula de doze anos, que protestou com veemência:
- Pô!
Até hoje não se sabe o que é que
ele quis dizer com aquilo.
Kuka, enfim, chegou, e cedo
constataram que era igual a todo filhote de cachorro. Foi vacinado,
vermifugado, batizado, castrado e ganhou um quintal enorme, que era o da casa.
No começo, Tóbi estranhou aquela coisa preta e gorducha aporrinhando-lhe a vida
o dia todo e, por que não dizer, a noite toda também. Kuka subia-lhe nas
orelhas, mordia-lhe o rabo, lambia-lhe a cara. Tóbi passou a expressar sua irritação
emitindo um som que até então ninguém na casa jamais tinha ouvido. Algo como um
gemido longo, um choro miúdo, uma indignação característica de quem teve seu
espaço invadido e subtraído em grande parte, sem sequer ter sido consultado.
Aos poucos, Kuka foi tomando conta do pedaço.
A família, por sua vez, ia se
acostumando à, vamos dizer assim, juventude do animalzinho. Arrancava as
toalhas do varal e arrastava pela grama, destruía os cadarços dos tênis,
mordiscava a barra das calcas, mordia o calcanhar das pessoas, destruía chinelos,
inutilizava cabos de vassoura, abocanhava passarinhos pequeninos e besouros,
criava verdadeiros túneis nos canteiros de terra, exterminava as plantas. Ou
seja, era um filhote normal e saudável.
Na primeira partida da final do
campeonato daquele ano, o pai fez o que sempre se faz em casa –felizmente,
quase todo ano: ia pendurar a bandeira do Santos do lado de fora da casa. Sinal
de fidelidade, de fé e de esperança na nova conquista do clube do coração. Está
certo que a bandeira estava já bem usada: fora adquirida após uma empolgante
vitória num clássico no Morumbi, há quase vinte anos. Mas era a bandeira que
havia, e que trazia em seu histórico anos de finais e de dedicação à causa
alvinegra. Na vitória ou na derrota, lá estava ela. Na testeira da casa, na
janela, na churrasqueira, no portão. A bandeira a dar seu testemunho, ano após
ano. Com o Santos, onde e como ele estiver, é um dos nossos lemas.
Naquele ano, casa nova e pé
direito alto, ficava difícil para o pai botar a bandeira no ponto mais alto da
casa, que é o que, na teoria, manda o manual do torcedor fanático. Ele, então,
optou por prendê-la com cinco pequenos pregos na sacada, na lateral da casa,
que é onde batia menos vento e, portanto, seria menor o risco de ela sair
voando pelo bairro. O problema é que, no local escolhido, pouca gente da rua
podia perceber que no meio daquele pano branco e preto havia o distintivo do
time. E o que é pior, do jeito que as coisas andavam, podiam até mesmo
confundir com o distintivo de outro time, o maior rival, o... toc, toc, toc. O filho
mais velho, também fanático, protestou:
- Pô!
Mas a bandeira lá ficou, e muito
bem afixada nas grades da sacada.
Veio o primeiro jogo da grande
final, e o time levou uma sapecada de dar dó: dois a zero, fora o baile, e
jogando como mandante. A torcida acusou o golpe. Vaias no final do jogo, explicações
do técnico, pequenas torcedoras apareceram na tevê numa desolação aparente e
num choro inexplicável e precoce. Tinha a volta, no domingo seguinte, quando o
time precisava ganhar de uma diferença de três gols para ficar com o título.
Senão seria a vergonha, a tragédia, o fim do mundo.
Na casa, ninguém titubeou: apesar
da derrota, a bandeira permaneceria onde estava por mais uma semana, num sinal
de esperança na virada e fé na capacidade histórica do clube em superar-se e
virar resultados desfavoráveis. Santos, o time da virada. Santos, o time do
amor. Este, o nosso lema. Mais um.
Ao longo da semana, a expectativa
foi crescendo, a confiança também. A
bandeira na sacada seguia firme em sua obrigação de representar a certeza da
vitória.
Até que chegou o domingo do jogo.
Todos levantaram da cama mais cedo do que o habitual, e quando o mais velho
abriu a porta da sala para alimentar os cachorros, soltou um grito desesperado
e alarmante, que arrancou da cama os que ainda nela estavam e assustou a mãe,
que veio ao seu encontro com o coador pingando pela casa o resto do café que
faltava passar. O menino repetiu o mesmo grito, cheio de indignação:
- Pô!
O que se viu foi um espetáculo
terrível. A sacrossanta bandeira alvinegra totalmente destroçada, rasgada,
mordida, jazia ao chão, e seu imaginário sangue escorria violentamente do corpo
inerte, confundindo-se ao rubro da lajota do piso. Kuka havia, durante a noite,
na falta do que fazer, arrancado o manto e simplesmente o dizimado, como se ele
não passasse de um trapo qualquer, de um ordinário pedaço de pano sem função nenhuma
a cumprir neste mundo.
Kuka olhava alheio a tudo e, achando que aquele raro ajuntamento de
pessoas à sua frente era motivo de festa, começou a querer brincar, no que foi
imediatamente repelido pelos presentes. Tomou até um chega pra lá do caçula,
que desta vez não disse nada.
A família se reuniu diante da
mesa do café para resolver o que fazer. O pai propôs devolver o animalzinho,
cujo crime merecia, sem dúvida, julgamento sumário e pena capital. A mãe foi
contra. Os meninos olhavam para baixo e não se manifestaram, nem olharam para
ninguém. Tinham, aparentemente, perdido o apetite para sempre. A menina do meio
–eram três, os filhos- se manifestou pela primeira vez:
- Acabou a geléia?
Os restos do corpo sem vida da
bandeira jaziam sobre a poltrona da sala, à espera da decisão do que fazer com
o cão. Lá fora, Tóbi reclamava das brincadeiras sem propósito e inoportunas de
Kuka.
Num rápido e democrático
plebiscito, a resolução tomada foi a seguinte: se o time ganhasse o campeonato,
Kuka ficava. Se perdesse, teria sido
muito provavelmente ela a grande responsável pela derrota, e não havia outro
jeito: ela seria expulsa de casa.
Kuka acabou ficando, porque o
time ganhou o jogo, mas perdeu nos pênaltis. Ganhou, mas não levou. Vice,
portanto. E no momento em que o meia direita Paulinho se preparava para bater o
último pênalti e dar a vitória ao time adversário, o pai deu uma olhadela, por
acaso, pela janela da sala, e viu que
Kuka, decidido, tentava puxar a toalha de mesa do varal.
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