terça-feira, 8 de abril de 2014

KUKA

Benilson Toniolo


A casa já tinha um cão de guarda, o Tóbi. Quando este completou três anos o dono da casa, achando que ele andava muito sozinho e ‘humanizado’ –já estava se vendo a hora de o Tóbi falar ‘bom-dia’ ao primeiro que abrisse a porta pela manhã-, arranjou-lhe companhia: um filhote a quem chamaram de Kuka.
Quando o pai anunciou a novidade em casa, o único a manifestar-se em contrário –pelo menos, foi o que pareceu- foi o caçula de doze anos, que protestou com veemência:
- Pô!
Até hoje não se sabe o que é que ele quis dizer com aquilo.
Kuka, enfim, chegou, e cedo constataram que era igual a todo filhote de cachorro. Foi vacinado, vermifugado, batizado, castrado e ganhou um quintal enorme, que era o da casa. No começo, Tóbi estranhou aquela coisa preta e gorducha aporrinhando-lhe a vida o dia todo e, por que não dizer, a noite toda também. Kuka subia-lhe nas orelhas, mordia-lhe o rabo, lambia-lhe a cara. Tóbi passou a expressar sua irritação emitindo um som que até então ninguém na casa jamais tinha ouvido. Algo como um gemido longo, um choro miúdo, uma indignação característica de quem teve seu espaço invadido e subtraído em grande parte, sem sequer ter sido consultado. Aos poucos, Kuka foi tomando conta do pedaço.
A família, por sua vez, ia se acostumando à, vamos dizer assim, juventude do animalzinho. Arrancava as toalhas do varal e arrastava pela grama, destruía os cadarços dos tênis, mordiscava a barra das calcas, mordia o calcanhar das pessoas, destruía chinelos, inutilizava cabos de vassoura, abocanhava passarinhos pequeninos e besouros, criava verdadeiros túneis nos canteiros de terra, exterminava as plantas. Ou seja, era um filhote normal e saudável.
Na primeira partida da final do campeonato daquele ano, o pai fez o que sempre se faz em casa –felizmente, quase todo ano: ia pendurar a bandeira do Santos do lado de fora da casa. Sinal de fidelidade, de fé e de esperança na nova conquista do clube do coração. Está certo que a bandeira estava já bem usada: fora adquirida após uma empolgante vitória num clássico no Morumbi, há quase vinte anos. Mas era a bandeira que havia, e que trazia em seu histórico anos de finais e de dedicação à causa alvinegra. Na vitória ou na derrota, lá estava ela. Na testeira da casa, na janela, na churrasqueira, no portão. A bandeira a dar seu testemunho, ano após ano. Com o Santos, onde e como ele estiver, é um dos nossos lemas.
Naquele ano, casa nova e pé direito alto, ficava difícil para o pai botar a bandeira no ponto mais alto da casa, que é o que, na teoria, manda o manual do torcedor fanático. Ele, então, optou por prendê-la com cinco pequenos pregos na sacada, na lateral da casa, que é onde batia menos vento e, portanto, seria menor o risco de ela sair voando pelo bairro. O problema é que, no local escolhido, pouca gente da rua podia perceber que no meio daquele pano branco e preto havia o distintivo do time. E o que é pior, do jeito que as coisas andavam, podiam até mesmo confundir com o distintivo de outro time, o maior rival, o... toc, toc, toc. O filho mais velho, também fanático, protestou:
- Pô!
Mas a bandeira lá ficou, e muito bem afixada nas grades da sacada.
Veio o primeiro jogo da grande final, e o time levou uma sapecada de dar dó: dois a zero, fora o baile, e jogando como mandante. A torcida acusou o golpe. Vaias no final do jogo, explicações do técnico, pequenas torcedoras apareceram na tevê numa desolação aparente e num choro inexplicável e precoce. Tinha a volta, no domingo seguinte, quando o time precisava ganhar de uma diferença de três gols para ficar com o título. Senão seria a vergonha, a tragédia, o fim do mundo.
Na casa, ninguém titubeou: apesar da derrota, a bandeira permaneceria onde estava por mais uma semana, num sinal de esperança na virada e fé na capacidade histórica do clube em superar-se e virar resultados desfavoráveis. Santos, o time da virada. Santos, o time do amor. Este, o nosso lema. Mais um.
Ao longo da semana, a expectativa foi crescendo, a  confiança também. A bandeira na sacada seguia firme em sua obrigação de representar a certeza da vitória.
Até que chegou o domingo do jogo. Todos levantaram da cama mais cedo do que o habitual, e quando o mais velho abriu a porta da sala para alimentar os cachorros, soltou um grito desesperado e alarmante, que arrancou da cama os que ainda nela estavam e assustou a mãe, que veio ao seu encontro com o coador pingando pela casa o resto do café que faltava passar. O menino repetiu o mesmo grito, cheio de indignação:
- Pô!
O que se viu foi um espetáculo terrível. A sacrossanta bandeira alvinegra totalmente destroçada, rasgada, mordida, jazia ao chão, e seu imaginário sangue escorria violentamente do corpo inerte, confundindo-se ao rubro da lajota do piso. Kuka havia, durante a noite, na falta do que fazer, arrancado o manto e simplesmente o dizimado, como se ele não passasse de um trapo qualquer, de um ordinário pedaço de pano sem função nenhuma a cumprir neste mundo.
Kuka olhava alheio a tudo  e, achando que aquele raro ajuntamento de pessoas à sua frente era motivo de festa, começou a querer brincar, no que foi imediatamente repelido pelos presentes. Tomou até um chega pra lá do caçula, que desta vez não disse nada.
A família se reuniu diante da mesa do café para resolver o que fazer. O pai propôs devolver o animalzinho, cujo crime merecia, sem dúvida, julgamento sumário e pena capital. A mãe foi contra. Os meninos olhavam para baixo e não se manifestaram, nem olharam para ninguém. Tinham, aparentemente, perdido o apetite para sempre. A menina do meio –eram três, os filhos- se manifestou pela primeira vez:
- Acabou a geléia?
Os restos do corpo sem vida da bandeira jaziam sobre a poltrona da sala, à espera da decisão do que fazer com o cão. Lá fora, Tóbi reclamava das brincadeiras sem propósito e inoportunas de Kuka.
Num rápido e democrático plebiscito, a resolução tomada foi a seguinte: se o time ganhasse o campeonato, Kuka ficava. Se perdesse,  teria sido muito provavelmente ela a grande responsável pela derrota, e não havia outro jeito: ela seria expulsa de casa.
Kuka acabou ficando, porque o time ganhou o jogo, mas perdeu nos pênaltis. Ganhou, mas não levou. Vice, portanto. E no momento em que o meia direita Paulinho se preparava para bater o último pênalti e dar a vitória ao time adversário, o pai deu uma olhadela, por acaso,  pela janela da sala, e viu que Kuka, decidido, tentava puxar a toalha de mesa do varal.

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