Mais do que a satisfação de
uma simples necessidade fisiológica, o ato de comer, ao longo da história da
raça humana, se transformou em uma ocasião de encontros entre pessoas.
Tudo muito diferente do pecado
inicial, que se deu exatamente através da gula. Ou seja, se o mundo é o que é
hoje, isto se deve exclusivamente ao ato de... comer. Claro que há outras
implicações, digamos assim, e que levaram a pobre Eva a experimentar do fruto
proibido, mesmo contrariando a instrução de Deus –que, convenhamos, não tinha
nada que sair por aí criando uma fruta da qual não se podia saber o gosto.
Reunir pessoas em volta de uma
refeição, entretanto, virou característica da condição humana. Certo, não somos
os únicos animais que compartilham a comida com os outros da mesma espécie. Mas
a verdade é que, ao longo do tempo, compartilhar a mesma comida tornou-se um
hábito humano carregado de ancestralidade e simbolismos, e que se constitui em
uma prática que, a cada dia, procuramos manter e, por que não dizer,
aperfeiçoar.
Das refeições feitas por
Cristo –que, é bom que se diga, vivia filando uma bóia na casa dos outros, e
consta que gostava muito de se dedicar aos prazeres gastronômicos, chegando
inclusive a multiplicar os peixes para que seu povo não sucumbisse à fome- aos indefectíveis
churrascos dos dias de hoje, a gastronomia está para o homem como o dia para o
sol: um não existiria sem o outro.
Ao longo dos tempos, foi ao
redor de uma mesa, no compartilhamento de uma refeição, que impérios e países
foram criados e dizimados, que se decidiu o futuro de gerações inteiras, que se
optou por miséria e bonança, amor e ódio, nascimentos e homicídios, descobertas
científicas e tragédias absolutamente estarrecedoras. Tudo porque, ao redor
desta mesma mesa, entre mastigações, conspirações, descobertas de amor e
arrotos disfarçados e explícitos, o homem dá de si aquilo de que é composto: os
vícios e virtudes de sua condição.
Isso tudo porque, além de ser
uma necessidade, comer é um ato de prazer que, mais notadamente nos últimos
tempos, tem proporcionado ao homem a descoberta de uma gama de sensações que,
por muito tempo, permaneceu senão desconhecida, mas pouco valorizada. Combinar
sabores, cheiros, texturas, cores e sensações tem se constituído em uma das
principais atividades presentes no cotidiano do homem moderno.
Cursos especializados despejam
semestralmente no mercado de trabalho milhares de profissionais cuja maior
especialidade é a de, através da imaginação e da criatividade, satisfazer de
seus clientes somente um desejo: o de se
deixar surpreender. Nisto, e apenas nisto, no prazer da descoberta do novo, é
que se caracteriza este ato, até então simples, de apenas satisfazer uma
necessidade fisiológica. Comer, hoje, é sinônimo de bom gosto e status social.
Você é o que você come.
Nesse sentido poderíamos dizer
que a gastronomia virou arte. Mas não: a gastronomia se consolidou como arte, e
como tal é reconhecida. E, e seus executores, verdadeiros artistas.
E partimos da sua elaboração
para identificá-la desta forma. A imaginação do artista está presente na
criação do prato, na escolha dos ingredientes, nos detalhes da receita (haverá
estilo literário para isto?), no conhecimento da temperatura ideal dos
equipamentos onde os alimentos serão preparados, no espaço (a cozinha, o palco)
onde terá lugar a sua representação e a dos demais atores, e o momento final:
de apresentar ao público a sua arte, no afã de ter descoberto o novo, o
excelente, o surpreendente, o definitivo. O desafio do artista é o da
superação. Nisto reside sua vida e seu trabalho.
Eis a cozinha, comparada a uma
orquestra.
O maestro carioca John
Neschling vaticina, em seu livro ‘Música Mundana’: “Não há ‘mais ou menos’ quando se trata de qualidade artística, e,
portanto, não pode haver ‘mais ou menos’ na concepção e realização da Arte’. É portanto neste momento que gastronomia e
música se assemelham e se completam. Na elaboração da arte, no bom gosto, no
preparo e na entrega do artista ao seu ofício, na satisfação do público e no
seu desejo de voltar a consumir, numa outra oportunidade, o resultado deste
trabalho.
Aí deixamos de desenvolver,
então e somente, uma relação artística. Passamos a entender a gastronomia e a
arte como uma troca que se dá, também, em linhas de comércio, uma vez que há
quem a produza e, da mesma forma, há quem a consuma. Logo, temos uma troca
capaz de gerar desenvolvimento social (através da formação profissional) e, por
conseguinte, emprego e renda, fomentando o turismo segmentado (composto por um
público amante e consumidor de Arte e Gastronomia) e proporcionando ao
município a imagem de gerador de um produto diferenciado e de qualidade.
É possível pensar na tomada de
ações por parte das iniciativas pública e privada no sentido de elaborar
projetos comuns que abram esta vertente à economia local. O planejamento deve
ser cuidadoso e priorizado na base, através da formação de bons profissionais,
culminando com o estímulo ao seu desenvolvimento contínuo. Da mesma forma,
pode-se avaliar a possibilidade de conceder incentivos aos empresários do ramo para
que segmentem suas atividades, especializando seus estabelecimentos em diferentes
nichos específicos e possibilitando ao consumidor final uma variada gama de
opções, sempre de altíssimo nível e com valores de aquisição condizentes com o
mercado internacional de alta gastronomia. Em paralelo, é fundamental o papel
da propaganda e da mídia.
Uma vez que a relação
música-gastronomia está completa, nada melhor que ambas se correlacionem
continuamente, não através de ações isoladas como, por exemplo, festivais
pontuais, mas com uma programação permanente e diferenciada, que caracterizam o
destino turístico como referência em qualidade tanto nos produtos oferecidos
quanto nos serviços prestados.
Tudo isto demanda empenho e
trabalho, características fundamentais para a criação de novas possibilidades
de crescimento e riqueza.
Porque, como já nos alertou
Neschiling, na Arte como nos negócios não existe ‘mais ou menos’.
Benilson Toniolo