quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A CONVERSÃO

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Benilson Toniolo

Eu era o único infante da família que não torcia para o Santos. Primos, primas, irmãos, toda aquela meninada era santista. Menos eu. Más influências, amizades ruins, e eu acabei torcendo para o time errado. Não vou declarar aqui meu time à época para que ninguém pense mal de mim. Sabe como são essas coisas, as pessoas não costumam perdoar certos deslizes, mesmo quando eles acontecem quando a gente ainda é menino. Vida dura, mundo injusto, e vamos nós.
A notícia se espalhou pela família. O menino tinha se desviado, e era preciso fazer alguma coisa. Quem é que ia cuidar disso? Alguém chegou a lembrar que o vô Mario virou Palestra tão logo desembarcou no porto, vindo de Gênova. Mas o vô podia, oras, tinha seus motivos mais do que justificados. Com esse negócio de pátria ninguém mexe, que isso para certas pessoas é sagrado. E as pessoas costumam ser mais nacionalistas quando longe da terra natal, disso todo mundo sabe.
Até que chegou, vindo do interior para passar as férias em casa, como fazia todos os anos, o tio Aldo, a grande autoridade futebolística da família. Também ele, em terra estranha (mudara-se de Santos para Campinas por ocasião do casamento com a tia Emília), fazia questão de sempre que possível reafirmar sua condição de caiçara, praieiro e, evidentemente, santista. Porque time não se escolhe – é o time que escolhe a gente.
Numa tarde de domingo, depois do almoço, o tio me chamou na mesa da cozinha e me mandou sentar. Abriu uma tubaína gelada e foi direto ao assunto: tu não é santista por quê? Ah, tio, eu gosto mais é do outro. Mas por que tu gosta mais do outro? Ah, lá na escola todo mundo que eu conheço gosta mais do outro.
Então o tio tirou, de dentro de um envelope enorme, um livro. Era um livro em preto e branco, cheio de ilustrações, que contava a história do bi-campeonato mundial conquistado pelo Santos em uma final contra o Milan, em 1963. E o tio foi mostrando o que tinha o livro, e ia falando: aqui o Pelé, o maior jogador de todos os tempos; aqui é o Maracanã onde foi disputada a final, veja quanta gente, todo mundo torcendo para o Santos, porque o Santos ali estava representando o Brasil;  aqui a taça de campeão; um ano antes a gente ganhou o primeiro título mundial goleando o Benfica lá em Portugal, dizem os portugueses que foi a maior exibição de um time de futebol na história; o Milan é da Itália, terra do meu pai, seu avô, e a Itália é a terra do Mussolini, que matou muita gente, então a vitória foi muito importante para derrotar esse assassino; aqui a volta olímpica; olha que taça bonita; aqui nosso presidente; nosso técnico; esse outro é o Pepe, também conhecido como O Canhão da Vila, pois quando ele chuta a bola com o pé esquerdo a bola vai com tanta força que é capaz até de furar a rede do gol do adversário; esse de preto é o Gilmar, que é o melhor goleiro do mundo; veja como a torcida ficou feliz com a vitória do Santos, que na verdade é o Brasil; aliás, na escola você já deve ter aprendido que o nosso porto é o maior da América Latina, e fica bem pertinho do nosso estádio; que é só você pegar o circular 94 ali na Ponta da Praia que você desce na porta, se você quiser amanhã a gente vai lá conhecer a Vila Belmiro, que é o nome do nosso estádio; esse time aí que você falou tem estádio?
Pronto, estava feito. Foi coisa, acho, de mais ou menos uma meia hora, e a catequização estava completada. O tio guardou o livro dentro do envelope e me liberou. Cheguei no quintal e vi meu irmão e meu primo sentados debaixo da goiabeira, esperando o “sol baixar” pra poder jogarem bola. Anunciei: agora eu sou santista. Ambos me cumprimentaram como os meninos se cumprimentam.
Assim foi, e continua a ser. Para o bem de todos e felicidade geral da molecada da casa –principalmente de Bruno e Leonardo, meus filhos, que já nasceram assim e não precisaram perder tempo com conversões.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

ZÉ DOIDO E ZÉ CAÇAPAVA

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Benilson Toniolo

No primeiro hotel em que trabalhei existiam, no setor de Manutenção, dois funcionários que tinham o mesmo nome: José. O líder era o Zezinho Caçapava, que tinha este apelido por ser proveniente, evidentemente, da cidade paulista localizada no Vale do Paraíba. Tranqüilo, fazia o servicinho dele e não incomodava ninguém. Ria pouco, era muito calado e, contam, bebia muito. Tinha vindo para o Guarujá depois de abandonar a família, e depois também da morte de uma das filhas, atropelada quando tentava atravessar a via Dutra de bicicleta. O dono do hotel, muito piedoso, mandou construir para ele uma pequena espelunca à base de madeira compensada e zinco ao lado da caldeira, entre o mar de Pitangueiras e o morro do Maluf. À noite, sem poder dormir por causa do calor e da saudade da filha, Zezinho bebia sua cachaça observando a paisagem noturna da praia. E bebia até dormir, quando o amortecimento causado pelo álcool vencia a temperatura altíssima, a sudorese excessiva, o exército insaciável de pernilongos e as injustiças da condição humana. Talvez por isso quase não sorria, o Caçapava.
O outro era um nordestino de baixa estatura, atarracado, cara de poucos amigos e que atendia pela alcunha de Zé Doido. Sempre enfezado, sem paciência para tratar com os outros e pronto para mandar para aquele lugar quem viesse com muita pergunta, era a eficiência em pessoa. Aliás, os dois eram muito eficientes. Não havia problema de manutenção que eles não resolvessem, inclusive quando chamados fora do horário de serviço. E num edifício velho, em que todos os equipamentos estavam em situação precária (desde os elevadores até os aparelhos de ar refrigerado dos apartamentos), prescindir dos dois seria uma loucura.
Meu problema mesmo era com o Zé Doido. Eu não o suportava. Não fui com a cara dele desde o primeiro dia. Para que aquela ignorância toda? Falar com os outros daquela maneira, coisa mais estúpida, sem sentido. Custava ser um pouco mais solícito, gentil, amigável? Sempre que era preciso acioná-lo para alguma coisa, eu respirava fundo, contava até dez, escolhia as palavras. Com ele era sempre na base do por favor, se for possível, quando você puder, isso é importante pra gente, você vai nos ajudar muito se fizer isto, só você pode fazer, tenho certeza que você resolve, pra você isso é moleza, muito obrigado, te devo essa, valeu, Zé, ficou muito bom, o hóspede ficou bastante satisfeito, Zé, você é o cara. Com ele tinha que ser na base da diplomacia. Se não, era na porrada. E na porrada nunca dá certo.
Nunca passamos disso. Eu pedia, ele fazia. Às vezes se esquecia de dar o retorno da minha solicitação, mas se o problema não persistisse era sinal que ele tinha resolvido. E o doido do Zé sempre resolvia.
Um dia, numa rara confraternização de final de ano, eu conversava com alguns colegas quando o Zé Doido passou e deu um tapa nas minhas costas. Um pouco mais forte que o habitual, é verdade, mas sem violência. Virei-me para ele, que apertou minha mão com a mesma força e disse algo parecido com isto: “você é um sujeito que eu considero. Sempre foi educado e me tratou com respeito. Não é que nem esse pessoal daqui que, porque a gente faz serviço sujo, trata a gente que nem bicho. Você não. Você respeita a gente. Por isso, tem minha consideração”. Me desejou feliz Natal e foi embora.
Era doido mesmo, aquele Zé Doido. Tão maluco que até fazia a gente se emocionar sem necessidade.

A MINHA PARTE



Benilson Toniolo

Tenho tentado, ao longo dos anos, vencer algumas de minhas paixões. Se não vencer, pelo menos não permitir que elas sejam tão maiores do que eu. Não se trata de nenhum projeto pessoal para alcançar a santidade, nada disso. Já estou convencido que dificilmente haverá um lugar para mim junto ao sumo criador, e devo passar mesmo a eternidade em meio às danações e desmantelos destinados a sujeitos da minha estirpe. Se no inferno houver bons livros e bons autores em carne, alma, osso, metáforas e ideias, pelo menos, já será um consolo. Mas  voltando ao assunto, o que pretendo com isso é passar a sofrer menos com certos sentimentos e levar uma vida mais sadia, menos desgastante, mais equilibrada. Como pretendo ainda permanecer, pelo menos, uns trinta anos entre os chamados seres vivos antes de me dedicar ao ócio em meio a labaredas, espetadas contumazes e cheiro de enxofre (situação com a qual a gente acaba se acostumando, assim espero), compreendi que devo me cercar de certos cuidados, principalmente no que diz respeito ao coração. Pretendo, já disse, passar o maior tempo possível por aqui. O mundo é bom, apesar das inúmeras provas em contrário.
Paixões desenfreadas costumam ser boas quando vividas no tempo certo, ao modo peculiar de cada idade: arrebatadoramente na juventude e moderadamente na madureza. Comportamentos juvenis e inconseqüentes não combinam com cãs, pés-de-galinha  e calvície. Cada coisa na sua hora. Um pouco de moderação e tolerância caem muito bem, principalmente depois de certa idade.
Tenho me dedicado a tentar ouvir melhor, considerar e respeitar a opinião dos outros e deixar que meu interlocutor termine o raciocínio sem interrompê-lo. Procuro compreender carências e revoltas, e observar os sinais que existem além de conversas que não levam a lugar nenhum. Pretendo pensar mais pausadamente e não ser tão afoito. É recomendável também vislumbrar contextos antes de formar uma idéia geral. Saber outros pontos de vista. Perguntar mais, silenciar quando não for preciso falar, comentar somente quando minha opinião for pedida por ser considerada importante para a tomada de alguma decisão, ou a solução de algum problema. Tem dado certo e, acreditem, me proporcionado até mesmo uma certa tranqüilidade.
O desafio mais difícil, entretanto, e eu assumo, é a relação com o futebol. Apaixonado que sempre fui pelo esporte e pelo meu clube, tem sido cada vez mais complicado adotar uma postura neutra com relação ao assunto. Na frente da tevê ou no estádio, ainda é o Santos quem me tira do sério. Quando percebo, já pulei, já gritei, já xinguei, já desejei ver a perna do adversário estraçalhada, já antevi a arquibancada que comporta a torcida deles ruir e não deixar ninguém vivo para contar história, já fiz minha separação imaginária entre “nós” e “eles” e já experimentei minha ânsia semanal de pavor de um dia ver o manto sagrado de meu clube penando no holocausto da segunda divisão.
Quem busca uma vida mais harmoniosa e equilibrada, meus amigos, deve manter distância segura do futebol. Isso é uma verdadeira doença. Independente se o time do coração estiver em boa ou má fase (como é o nosso caso, neste momento, na modestíssima décima colocação do Campeonato), o amor pelo clube é capaz de levar o indivíduo do mais profundo abismo do desespero ao mais arrebatador dos orgasmos. Isso em fração de segundos. Há quem diga, inclusive, com inegável capacidade lógica, que a situação do time no campeonato tem reflexo direto na performance sexual do torcedor. Deve estar certo.
Mas tenho feito meus progressos, reconhecendo a superioridade dos rivais, o mérito diante de uma tabela bonita, um gol bem feito, uma grande defesa, um contra-ataque imarcável –mesmo quando estão do outro lado. É um esforço, mas vou tentando. 
Daí que, em pleno Dia dos Pais, a CBF me tem a desgraçada idéia de marcar um clássico na Vila, o que acaba com o domingo de qualquer um. O ritual se repete: cubro-me da cabeça aos pés com as cores do manto sagrado e me dirijo com a família ao Capivari para o almoço especial que a data exige. Escolhemos o restaurante (pelo preço, evidentemente) e, altivo como sói acontecer quando me visto com o branco e preto do meu time, ouço surpreso alguém dentro do restaurante tossir em volume mais alto do que o normal. Dirijo meu olhar para a direção da mesa em que alguém parece estar passando mal e vejo uma família, um jovem casal, um bebê num carrinho e uma senhora, certamente a avó da criança. O sujeito que tossiu é jovem, daqueles neo-fortões que infestam as cidades hoje em dia. Ao me ver, ele se inclina, pega o agasalho que está sobre a cadeira onde está sentado e, de forma provocadora, olhando-me fixamente, dá um beijo no escudo do... Corinthians. Rio um pouco mais alto do que o normal, balanço a cabeça negativamente, sigo adiante, dirijo-me a uma mesa localizada duas fileiras atrás da deles e ali nos acomodamos.
O almoço transcorre tranqüilo. Escolhemos nossos pratos, conversamos sobre diversos assuntos, tiramos fotos, mas a provocação permanece no ar. O que fazer? Ir até a mesa do desconhecido, passar-lhe uma carraspana, perguntar por que fez aquilo, dar-lhe boas vindas à nossa Cidade (o sujeito, pelo visto, era turista), mandá-lo à merda? Vale a pena estragar o almoço do Dia dos Pais com uma discussão que pode perfeitamente ser evitada, por um motivo que, afinal, se enquadra como “banal”? E se o objetivo dele foi o de somente fazer uma brincadeira, e quem está dando importância exagerada ao fato sou eu? Nada a fazer, nada feito.
O almoço estava ótimo e nem notamos quando o provocador saiu. À noite, depois do jogo (que o Santos perdeu), Bruno ainda comentou: ‘viu o que fez o corintiano no restaurante, pai?’. ‘Vi, sim, filho. Coitado’. Ele arremata: ‘esse torce pro time certo, mesmo’.

É, ainda falta muito para que certas paixões tenham o tratamento que merecem: apenas paixões. Enquanto isso, as pessoas continuarão matando e morrendo em nome daquilo que amam. Eu, pelo menos, me incomodo e tento fazer a minha parte. O que, pelo jeito, parece ser ainda muito pouco.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

NOVO QUADRO, NOVAS TENDÊNCIAS, E QUASE UM PAÍS NOVO

comicout.it

Benilson Toniolo

Acaba de sair a primeira pesquisa do Datafolha (na edição do jornal de hoje, 18 de agosto de 2014) sobre as intenções de voto dos brasileiros para Presidente da República, cinco dias após o acidente aéreo que tirou de cena o candidato Eduardo Campos, do PSB. Segundo o instituto de pesquisas da Folha de São Paulo, a presidente Dilma Roussef continua a liderar com 36% de votos. A coisa vira agora: Marina Silva, que substituirá Campos, aparece em segundo lugar com 21%, e Aécio, então em segundo,  cai para terceiro, com 20%. Considerados os 4 pontos percentuais da margem de erro para baixo ou para cima, o quadro é imprevisível. Se Dilma tanto pode ir a 40 como a 32 que mantém a dianteira, é no “andar de baixo” que a porca torce o rabo. Marina pode chegar a 25 (o que é a tendência) ou descer a 17 (menos provável). Aécio pode chegar a 24 ou descer para 16. De qualquer forma, podemos entender que até o momento Aécio Neves é a maior vítima política do funesto acidente que tirou de cena o ex-governador de Pernambuco.
Num quadro simulado para um eventual segundo turno, Dilma ganha de Aécio e empata tecnicamente com Marina. Ou seja, se até semana passada o candidato do PSDB era o único em condições de evitar a reeleição da mandatária de vermelho, hoje este papel cabe à nortista do PSB.
Antes do acidente, a transferência de votos de Marina para Eduardo era insuficiente para levá-lo para o segundo turno. Agora, Marina volta a contar com os 20 milhões de votos que obteve pelo PV no pleito de 2010, mais os votos de Eduardo. Ela definitivamente deixa de ocupar um papel secundário para transformar-se na principal protagonista do processo eleitoral deste ano.
Com o início da propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV, a estratosférica carga emocional dos últimos dias em torno de Marina e Eduardo deve ser mantida e alimentada por mais algum tempo, transformando lágrimas e consternação em votos.
Já Dilma continua a ser identificada como a candidata do mensalão, das falcatruas da Petrobras e da estagnação econômica, enquanto Aécio continua sem conseguir explicar como autorizou a construção de um aeroporto em terrenos de propriedade de sua família quando era governador de Minas Gerais. E, nunca é demais lembrar, faltam menos de dois meses para a eleição.
Com tudo isto, o mercado financeiro se põe em polvorosa a especular, elucubrar e tentar calcular o que ainda não tem valor.

Esta eleição já entrou para a História como a mais espetacular –e espetaculosa- que se tem notícia após a redemocratização. Resta tentar prever os próximos passos e torcer para que desta vez, ao contrário do que ocorreu em 1985, o que venha após a tragédia não seja uma outra tragédia.  

MINHA ESCOLA NÃO EXISTE MAIS

autodifesaalimentare.it

Benilson Toniolo

Chamava-se Escola Estadual de Primeiro Grau da Vila Santa Rosa e foi, de 1976 a 1983, minha segunda casa, onde passava pelo menos quatro horas por dia a aprender as lições da primeira à oitava séries, inicialmente do curso primário, depois do ginásio.
No começo dos anos 1980, certamente por alguma determinação do governo estadual ainda na época da ditadura, mudaram o nome da nossa escola para Escola Estadual de Primeiro Grau Professor Emídio José Pinheiro, o que, do alto dos meus treze anos, causou-me causou grande revolta, pois para mim a escola que levava o nome do nosso bairro deveria assim permanecer. E quando perguntei quem, afinal de contas, tinha sido esse tal de Emídio, e ninguém soube responder, segui protestando e fui levado para a sala da Diretora, onde levei meu primeiro sermão acerca da importância da disciplina e do respeito à autoridade dos professores, e também de onde me retirei levando dentro da garganta um bolo indizível e amargo, que conservo até hoje de acordo com as circunstâncias. É vontade, dizem, de chorar. Pode ser.
Depois do Santa Rosa, minha vida acadêmica foi uma grande alvoroço. Até então eu, que sempre tinha sido um aluno acima da média, modestamente falando, enfrentei inúmeras dificuldades para concluir o curso colegial, que é como nós, os ancestrais, chamamos o que hoje chamam de Ensino Médio.
Mas a vida passa e, em determinado momento, e para algumas pessoas, ocorre que nos surge uma certa necessidade de, de alguma forma, retribuir certas coisas a quem nos foi importante ao longo da jornada. E me lembrei que, em determinada ocasião, por iniciativa do professor de História, Ettore Quaranta, e sob sua coordenação, um grupo de cinco ou seis alunos nos mobilizamos para reorganizar uma biblioteca na escola. Em dois sábados, nos dedicamos a limpar as prateleiras, organizar os livros, passar pano úmido nas paredes e no piso de tacos, e em poucos dias entregamos à escola uma sala inteira de livros, limpa e, a nosso modo, organizada. Fora do prédio principal, é verdade, mas agora havia em nossa escola uma biblioteca que todos poderiam utilizar. Parece que não, mas em uma época sem computadores, smartphones e afins, isso era importante pra caramba.
Com esta lembrança reavivada, não foi preciso refletir muito, e como os tempos hoje são outros, e muito mais práticos, enviei um e-mail à escola me apresentando, falando do meu carinho pela escola e querendo saber notícias, sem mencionar a biblioteca. Queria saber como estava a escola, quantos alunos a freqüentavam, as ações junto à comunidade, coisas assim. E meu plano, num segundo momento, dependendo das respostas que recebesse, seria quem sabe poder contribuir de alguma forma com algum projeto literário direcionado aos alunos. E se biblioteca não mais houvesse, por que não ajudar a reativá-la, como há trinta anos? Uma forma, pensava eu, e como disse, de retribuir e reafirmar a importância da escola em minha vida e na minha formação Por que eu não poderia me dedicar um pouco à escola da minha infância e adolescência?
Após algumas semanas sem resposta, transcrevi o teor do e-mail em uma carta que enviei com Aviso de Recebimento. Receberam a missiva, pois o aviso voltou assinado mas, resposta, nenhuma. E por ocasião das férias seguintes de agosto, não me fiz de rogado: numa manhã chuvosa de quinta-feira, aproveitei os portões abertos (o seo Dito, porteiro exigente e disciplinado, já deve ter morrido) e me dirigi à secretaria, apresentando-me como um ex-aluno desejoso de rever a escola. A atendente, razoavelmente simpática, pediu um momento para falar com a diretora. Em seguida voltou, dizendo que ela, a diretora, não havia autorizado a minha entrada. Perguntei o motivo, e ela disse que não sabia. Deixei um cartão com um telefone, reforçando que se fosse possível num outro horário que por favor me ligassem, que a diretora nem precisaria se incomodar, que qualquer pessoa poderia me acompanhar, seria uma visita rápida, cinco minutinhos somente, para rever apenas, sem em nada interferir no andamento das aulas, do expediente. Rever, somente. Rever a matar as saudades. Quem sabe até reveria meu pai e minha mãe, ora um, ora outro, me esperando no portão na saída. Mas a diretora não autorizou.

Do lado de fora, a escola está em reforma. Há operários trabalhando nos fundos, muito entulho, sujeira acumulada, andaimes montados, materiais amontoados. E isso é bom. Mas a impressão que tenho, depois de um e-mail ignorado, uma carta não respondida e uma visita não autorizada, é que a principal reforma que precisa ser feita é do lado de dentro, nas pessoas que hoje cuidam da minha escola. Que, pelo que desconfio, já não existe mais.

ELA

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Benilson Toniolo

Certo dia ela descobriu que nos dias de folga, em casa, enquanto ela, cansada, ia para a cama, o marido ficava até alta madrugada no computador acessando sites pornográficos. Descobriu por acaso, ao ligar o notebook dele para ver se o problema do sinal da internet era geral ou só na máquina dela. Ficou surpresa, claro. Julgava ter com ele uma vida afetiva e sexual satisfatória. Sem os arroubos da juventude e do começo da relação, claro, mas satisfatória. Não que considerasse as aventuras virtuais do marido algo muito grave. Homem é assim, mesmo, e no final das contas é melhor que seja assim do que sabê-lo na rua em busca de aventuras extraconjugais, a trair a ela e à família.
A descoberta do sexo pelo homem, ela sabe, é um processo que começa na adolescência e passa necessariamente pela descoberta do próprio corpo. Acontece com muitas pessoas, ela sabe, levar certos hábitos adquiridos nesta época pelo resto da vida, independente de ter ou não relações afetivas satisfatórias. Sim, ela sabe.
Entendia também o fato de o marido manter esta prática em segredo. Nada mais natural. Seria, no mínimo, constrangedor para ambos se ele se aproximasse e, sem rodeios, declarasse: “olha, eu acesso pornografia na internet, e isso me diverte e excita”. Ou então, quando se aproximasse dele para dar-lhe o beijo de boa-noite, ele dissesse: “isso, vá, sim, porque aí eu posso acessar imagens que, com você circulando pela casa, eu não posso acessar”. Compreensível, claro. O importante era a manutenção da fidelidade, da estabilidade e do bom ambiente familiar. Ela entendia, claro que entendia.
O que não estava bom era aquele sentimento que passava a invadir seu coração quando pensava no assunto. Afinal, ela estava ou não estava sendo traída? Ele era um bom marido, trabalhador, cumpridor de seus deveres, bom pai, gentil e carinhoso. Um pouco calado, sim, mas era assim desde que tinham se conhecido e ela se acostumara, e até gostava, de seu jeito reservado e silencioso. Mas agora ele mentia. Dizia que ia trabalhar no computador até mais tarde e na verdade se dedicava a acessar material pornográfico na internet de casa, sem que ela soubesse. Quem faz isso, é capaz de fazer coisa bem pior. A coisa não era tão compreensível assim. Mentir é trair. Trair é, antes de mais nada, faltar com a verdade. Mas sexo virtual conta? Era só pornografia, ou ele entrava em salas de bate-papo?
Ele estaria insatisfeito? Se sim, porque não dividia com ela, sua esposa, sua insatisfação? Porque não a chamava para uma conversa? Teria outra mulher, talvez no escritório, e fazia com ela o que via na internet? E se estava satisfeito com a vida que levavam, por que esta dupla vida sexual? A compreensão inicial transmudava-se em apreensão, temor, dúvidas, desconfiança, ciúme.
Não precisou pensar muito para decidir tratar do assunto com o marido. Esclarecer, como se diz. Esperaria um momento em que estivessem sozinhos, sem os filhos por perto, seguraria carinhosamente suas mãos, olharia em seus olhos (talvez fizesse-lhe um carinho no rosto) e esclareceria tudo. Se ele quisesse continuar com suas práticas, que continuasse, mas que soubesse que isso já era do conhecimento dela. Ela o amava, era sua esposa, mãe de seus filhos e estaria disposta a satisfazer as necessidades dele, se fosse o caso. Mas sem mais mentiras.
Naquela noite, mandou os filhos para a casa da mãe e esperou que ele chegasse. Na hora de sempre, ele abriu a porta da sala, beijou-a como fazia todas as noites e ofereceu-lhe um surpreendente e inesquecível buquê de flores do campo que trazia nas mãos. Abraçou-a fortemente, sussurrou em seu ouvido que a amava e sugeriu que fossem buscar as crianças, porque ele ia pedir uma pizza para todos. E, como no dia seguinte era sua folga, programou uma ida ao pesqueiro, comentando: “faz tempo que a gente não vai, e as crianças adoram”.

Naquela noite ninguém ligou a internet em casa, e mulher e marido adormeceram abraçados, enquanto os computadores descansavam.

domingo, 17 de agosto de 2014

SAIR DA VIDA, ENTRAR NA HISTÓRIA


Benilson Toniolo


Surpresa, consternação, choque, o horror: a notícia do acidente aéreo ocorrido em Santos e que matou o ex-governador de Pernambuco e candidato do PSB à Presidência da República, Eduardo Campos, além das outras seis pessoas que estavam a bordo do jato, no último dia 13 de agosto, mergulhou o País num ambiente de profunda tristeza.
Um dos maiores danos causados pela ditadura militar ao Brasil foi justamente ter tirado de cena algumas de nossas futuras principais lideranças políticas. Muitos dos que tiveram seus corpos pulverizados pelos militares seriam, certamente, líderes de destaque com importante atuação no presente. Passados quase trinta anos da democratização, ainda padecemos da falta de líderes na condução dos destinos políticos do Brasil. Talvez por isso figuras abjetas como Sarney, Maluf e Calheiros ainda estejam à frente de muitos dos processos em andamento.
Eduardo, na linha natural sucessória de seu avô Miguel Arraes, foi um líder nato. Criado no colo do PT, soube o momento certo de desvincular sua imagem da imagem desgastada do partido e traçar sua trajetória, resistir às investidas de Lula (de quem ignorou os apelos para abrir mão de sua candidatura ao Planalto em troca de apoio em 2018) e construir identidade própria. A adesão de Marina Silva como vice em sua chapa foi um golpe de mestre, que  aumentou sua visibilidade por todo o País e tornou-o uma alternativa possível para derrotar a polarização PT-PSDB que há vinte anos governa um Brasil hoje estagnado e sem rumo. Faltando pouco mais de dois meses para o pleito de 5 de outubro e menos de uma semana para o início da campanha política no rádio e na televisão, Eduardo tinha, sim, chances de se eleger Presidente da República, derrotando Dilma Roussef no segundo turno.
Eduardo teve uma morte bonita, porque morreu lutando. Tinha o apoio incondicional de Ariano Suassuna, escritor, poeta, dramaturgo, professor, grande amigo de seu avô  e um dos maiores baluartes da cultura brasileira de todos os tempos, cujo caixão ajudou a conduzir sustentando uma das alças há menos de um mês, na mesma cidade do Recife que hoje chora sua morte precoce e dolorosa. No mesmo dia em que o jato em que viajava se espatifou sobre os prédios do Boqueirão, havia agendado uma reunião na capital federal com o senador Cristovão Buarque, cuja pauta principal era como desenvolver um plano de erradicação completa do analfabetismo no Brasil.
O clima de comoção e sentimentalismo parece estar presente em todo o país, não só em função da trágica e inesperada morte do jovem líder político que teria, sendo ou não eleito, um papel fundamental na tomada das decisões mais importantes acerca dos destinos da Nação, como também devido à emotiva cobertura dada pela imprensa, sobretudo no que se refere à estrutura familiar sólida do candidato, casado com a única namorada da adolescência e pai de cinco filhos, sendo que o último, nascido há sete meses, é portador da síndrome de Down. Magoado, entristecido e solidário por natureza, o povo brasileiro abraça a família Campos e a candidata a vide de sua chapa.
O quadro está pronto. O modelo petista de governar atingiu o grau máximo de desgaste junto à população, Aécio não empolga e a tragédia, passadas as primeiras horas de pesadelo, parecem trazer à tona um novo tempo para a política brasileira. Marina tomará o lugar de Eduardo e Renata, a viúva, deve atender à convocação do povo pernambucano para figurar como candidata a vice-presidente da República.
Parece haver algo de sobrenatural no cerne destes acontecimentos. Como já se disse em outra ocasião, Eduardo sai da vida para entrar na História.

Neste domingo de velório brasileiro em que as velas ardem, as bocas murmuram orações e os olhos do povo vertem lágrimas, os mestres da literatura de cordel cismam, contam as sílabas e afiam suas penas. Parece haver um outro Brasil insistindo em nascer lá pelos lados de Pina, Casa Amarela, Boa Viagem...

sábado, 16 de agosto de 2014

ELE

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Benilson Toniolo

Ele tem pouco mais de 40 anos e, em busca de “felicidade, amor verdadeiro e liberdade”, se separou da família. Porque o sujeito diz que se separou da esposa, mas esquece que, na verdade, se separou da família: invariavelmente há os filhos e, no caso dele, dois, de dez e sete anos. Então, separado e devidamente pronto para adotar seu novo estilo de vida, ele tomou algumas providências: passou a pagar religiosamente a pensão alimentícia, a correr 10 quilômetros pelo menos duas vezes por semana, agendou uma cirurgia para eliminar de vez a miopia (e assim poder usar óculos de sol), comprou uma bicicleta nova, em dez prestações, para pedalar no final de semana com os amigos e eventuais novas amigas, matriculou-se numa academia de musculação, passou a sorrir mais e ficar mais simpático, adotou a moda da depilação masculina, assumiu de vez a calvície e comunicou ao banco que, doravante, não vai mais pagar a dívida do cheque especial (claro que, antes disso, abriu conta em outra instituição, pediu cartão de crédito, dez talões de cheques –para emergências- e novo limite. Foi atendido, claro, que bancos em geral são entidades muito preocupadas em atender às necessidades de seus clientes –principalmente os mais novos). Um dia depois de voltar a morar com a mãe viúva, foi ao shopping e comprou roupas novas e sapatos novos.
Da partilha, ficou com a TV de 39 polegadas, o home-theater, o carro modelo 2007 faltando dois anos para ser quitado e que ainda não tem seguro, um guarda-roupas pequeno, uma cômoda, uma mesinha de centro e uma peça de artesanato de Porto Seguro, lembrança da lua-de-mel. A casa da mãe, pequena, “ficou ainda menor com tanta tralha”, no dizer da própria. Mas mãe é mãe e, para ela, filho é sempre aquele menininho sapeca que merece todos os cuidados: ela lava-lhe as roupas, capricha no amaciante, faz-lhe os pratos preferidos e deixa a cama sempre pronta para quando ele chegar para dormir. Já ele, em contrapartida, acompanha-a ao supermercado, faz o saque mensal do dinheiro da aposentadoria, conserta uma torneira, troca a resistência do chuveiro, compra o pão e o leite do lanche vespertino e a deixa na casa da única irmã nas visitas dominicais.
Ele tem novas amigas, troca de namorada com assustadora freqüência e, com as novas tecnologias, cadastrou-se em sites para solteiros, onde “sempre aparece alguém mais ou menos interessante”. Se esse alguém topar, eles saem “para se conhecer melhor” e, dependendo da relação custo-benefício, ele lança mão de sua nova mania: filmar os dois na intimidade. Geralmente, elas topam. E retribuem, enviando-lhe via whatsapp fotos em que aparecem em poses ora sensuais, ora pornográficas. Satisfeito, depois de uma ou duas caipirinhas com os novos amigos solteiros e descasados como ele, se oferece para exibir seu rico acervo pornô-tecnológico em seu moderno smart phone: “Essa eu pego, essa eu passo, essa já arranjou um cara e não está mais disponível, essa não quer mais nada comigo”. E contam, ele e os amigos, vantagens e desvantagens, enquanto soltam homéricas gargalhadas e o garçom se prepara para pedir novas porções e drinks.
Aos finais de semana, leva os filhos ao shopping. Busca e deixa-os na casa da ex-mulher. Quando não, leva os meninos para a casa da mãe, onde mandou instalar um vídeo game e TV por assinatura. A mãe reclama que não consegue assistir mais nada além da novela.
A vida, ele reconhece, está boa, animada, emocionante, cheia de novidades. Dinheiro não sobra, muito pelo contrário: além da dívida no banco, faz tempo que não consegue comprar mais nada além dos tênis importados para suas corridas e treinos. Mas isso não importa, porque as meninas dividem com ele a despesa do motel e, os amigos, a do barzinho.
 A ex-mulher parece começar a dar sinais de que voltará a dirigir-lhe a palavra, o que não deixa de ser um consolo, mas há algo que não está direito, e ele sabe: são os filhos. Estão crescendo e mudando muito rapidamente. No carro, por exemplo, eles não se falam. Chegam à casa da avó, o mais velho vai para o computador e o caçula, para o vídeo-game, enquanto ele aciona sua conta no facebook ou no whatsapp. O mais velho tirou nota baixa em História, um fato inédito mas que parece não ter importância alguma. Procura puxar conversa com os meninos, mas não encontra nada para perguntar, nem assunto algum que valha a pena ser abordado com eles. Quando dá por si, descobre que não tem sobre o que falar com seus meninos. Pergunta se querem ir ao shopping e eles dão de ombros, a responder que “tanto faz”. Pensa em uma sessão de cinema, mas o sinal da internet está instável e a ideia lhe escapa como brisa.  Suspira com tédio, olha o relógio, confere as horas e em seguida as esquece. Na cozinha, a mãe solta um palavrão ao deixar cair uma travessa de vidro, que inacreditavelmente não quebra. Começa a chover. Ele vai ao armário, veste sua roupa de atleta e anuncia que vai correr. Ninguém responde. Para falar a verdade, tem a clara impressão de que o que ele vai fazer da vida não interessa a ninguém presente ali naquela sala. Então ele pega a chave do carro, bate o portão da casa e sai, sem se dar conta que, dali a cerca de quinze minutos, estará correndo debaixo de uma chuva forte, tentando atingir com suas pernas musculosas e depiladas a maior velocidade possível, na tentativa de deixar para trás o peso que traz no peito e as poucas lágrimas que, sem surpresa alguma, se acumularão dentro de seus olhos.