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Benilson Toniolo
Eu era o único infante da família que
não torcia para o Santos. Primos, primas, irmãos, toda aquela meninada era
santista. Menos eu. Más influências, amizades ruins, e eu acabei torcendo para
o time errado. Não vou declarar aqui meu time à época para que ninguém pense
mal de mim. Sabe como são essas coisas, as pessoas não costumam perdoar certos
deslizes, mesmo quando eles acontecem quando a gente ainda é menino. Vida dura,
mundo injusto, e vamos nós.
A notícia se espalhou pela família. O
menino tinha se desviado, e era preciso fazer alguma coisa. Quem é que ia
cuidar disso? Alguém chegou a lembrar que o vô Mario virou Palestra tão logo
desembarcou no porto, vindo de Gênova. Mas o vô podia, oras, tinha seus motivos
mais do que justificados. Com esse negócio de pátria ninguém mexe, que isso
para certas pessoas é sagrado. E as pessoas costumam ser mais nacionalistas
quando longe da terra natal, disso todo mundo sabe.
Até que chegou, vindo do interior para
passar as férias em casa, como fazia todos os anos, o tio Aldo, a grande
autoridade futebolística da família. Também ele, em terra estranha (mudara-se
de Santos para Campinas por ocasião do casamento com a tia Emília), fazia
questão de sempre que possível reafirmar sua condição de caiçara, praieiro e,
evidentemente, santista. Porque time não se escolhe – é o time que escolhe a
gente.
Numa tarde de domingo, depois do almoço,
o tio me chamou na mesa da cozinha e me mandou sentar. Abriu uma tubaína gelada
e foi direto ao assunto: tu não é santista por quê? Ah, tio, eu gosto mais é do
outro. Mas por que tu gosta mais do outro? Ah, lá na escola todo mundo que eu
conheço gosta mais do outro.
Então o tio tirou, de dentro de um
envelope enorme, um livro. Era um livro em preto e branco, cheio de
ilustrações, que contava a história do bi-campeonato mundial conquistado pelo
Santos em uma final contra o Milan, em 1963. E o tio foi mostrando o que tinha
o livro, e ia falando: aqui o Pelé, o maior jogador de todos os tempos; aqui é
o Maracanã onde foi disputada a final, veja quanta gente, todo mundo torcendo
para o Santos, porque o Santos ali estava representando o Brasil; aqui a taça de campeão; um ano antes a gente
ganhou o primeiro título mundial goleando o Benfica lá em Portugal, dizem os
portugueses que foi a maior exibição de um time de futebol na história; o Milan
é da Itália, terra do meu pai, seu avô, e a Itália é a terra do Mussolini, que
matou muita gente, então a vitória foi muito importante para derrotar esse
assassino; aqui a volta olímpica; olha que taça bonita; aqui nosso presidente;
nosso técnico; esse outro é o Pepe, também conhecido como O Canhão da Vila,
pois quando ele chuta a bola com o pé esquerdo a bola vai com tanta força que é
capaz até de furar a rede do gol do adversário; esse de preto é o Gilmar, que é
o melhor goleiro do mundo; veja como a torcida ficou feliz com a vitória do
Santos, que na verdade é o Brasil; aliás, na escola você já deve ter aprendido
que o nosso porto é o maior da América Latina, e fica bem pertinho do nosso
estádio; que é só você pegar o circular 94 ali na Ponta da Praia que você desce
na porta, se você quiser amanhã a gente vai lá conhecer a Vila Belmiro, que é o
nome do nosso estádio; esse time aí que você falou tem estádio?
Pronto, estava feito. Foi coisa, acho,
de mais ou menos uma meia hora, e a catequização estava completada. O tio
guardou o livro dentro do envelope e me liberou. Cheguei no quintal e vi meu
irmão e meu primo sentados debaixo da goiabeira, esperando o “sol baixar” pra
poder jogarem bola. Anunciei: agora eu sou santista. Ambos me cumprimentaram
como os meninos se cumprimentam.
Assim foi, e continua a ser. Para o bem
de todos e felicidade geral da molecada da casa –principalmente de Bruno e
Leonardo, meus filhos, que já nasceram assim e não precisaram perder tempo com
conversões.