domingo, 13 de abril de 2014

FANATISMO DE OCASIÃO



Benilson Toniolo


Ninguém aguentava mais o fanatismo do Romildo por futebol. Era demais.
Entre outras coisas, ele praticamente não vestia outra roupa que não fosse a camisa do seu time. Qualquer que fosse a ocasião, ele sempre dava um jeito de usar alguma peça de roupa com o símbolo ou as cores do seu clube do coração. Era demais.
Romildo jogava futebol com os amigos sempre que podia –pelo menos, duas vezes por semana. Na praia, na rua de terra, na rua de asfalto, na quadra do colégio. Só lia as páginas de esportes. Assistia a todos os programas esportivos da tevê.  Seu assunto preferido, e o que ele mais dominava era, obviamente, o futebol. Enjoava. Tabelas de campeonatos eram esquecidas por ele em cima da mesa da cozinha. Ele anotava os resultados dos jogos, fazia prognósticos, somava e anotava os pontos dos clubes num papel para conferir com o jornal do dia seguinte.
Como todo fanático que se preze, Romildo tinha a sua tribo, cujos componentes pode até ser que não torcessem para o mesmo time uns dos outros, mas comungavam  da mesma paixão. Todos se reuniam na casa do seu líder – o Romildo, claro- para assistir aos jogos pela tevê nas tardes de domingo. Os encontros só não aconteciam nas noites de quarta-feira porque os jogos só começavam depois da novela, ou seja, às dez horas, e aí ficava tarde para o pessoal ir embora, e corria-se o risco de algum deles achar de dormir por lá mesmo. E ainda querer jantar. Dona Nica, mãe do Romildo, reclamava:
- Só me faltava essa.
A família já andava sem paciência com aquela fixação do Romildo por futebol. E, com o tempo, aquele passou a ser um assunto desagradável dentro de casa. De onde o Romildo tinha tirado aquilo? Ninguém na família ligava para isso, salvo um tio remoto e distante que, na juventude,  tinha sido zagueiro num time de várzea e hoje era funcionário público municipal. Romildo até discorria bem sobre, por exemplo, economia e a história recente do Brasil. Mas era só. Mãe, pai, irmãos, sobrinhos, cunhado, todos os que viviam sob o mesmo teto nas duas casas que compunham o terreno comentavam entre si, à boca pequena, que não tinha cabimento um sujeito daquela idade perder tanto tempo com futebol. Chegou ao cúmulo de o Romildo organizar um campeonato de futebol de botão entre as crianças da vizinhança que durou um domingo inteiro, e que ele chamou de ‘torneio início infantil’. Tudo bem que ele não jogou o campeonato, que teve troféu para o campeão, medalha para o vice, juiz, tabela e regulamento -só organizou, segundo ele, ‘a pedido da própria molecadinha’. Mas ninguém acreditava, e nem ouvia mais, o que o Romildo dizia quando o assunto era futebol.
Na verdade o que incomodava a todos, mas que ninguém assumia, é que o Romildo, há quase um ano, estava desempregado. Perdera o emprego num escritório de advocacia e não conseguira, até aquele momento, se recolocar. Não que não tentasse. Saía duas ou três vezes por semana percorrendo o comércio e escritórios do Centro atrás de uma oportunidade, mas não conseguia nada. É que ele só sabia trabalhar em escritório. Não aprendera mais nada. E, enquanto não estava procurando emprego, dedicava-se à sua paixão: o futebol.
Vai daí que um belo dia a Luciana, sobrinha mais nova do desempregado fanático e xodó da família, arrumou um novo namorado. Só que desta vez, ao contrário dos namoricos anteriores, parece que era sério. Ricardo Augusto, pelo que se sabia, era um belo, jovem e promissor engenheiro da Petrobrás, filho de um português dono de padaria. A novidade, para Romildo, nem era tão digna de atenção assim, não fosse um comentário que ele ouvira certa noite no jantar: Ricardo Augusto era corinthiano fanático. De perder a compostura quando alguém roubava –segundo ele- o Timão. Romildo, claro, não gostou. Um corinthiano freqüentando sua casa? E ainda fanático? Problema. Ah, sim. Romildo era santista.
Para apresentar oficialmente o ‘noivo’, como já era chamado, foi organizado um almoço em família. O que ninguém atentou foi que justamente aquele domingo era dia de Santos e Corinthians. Semi-final de campeonato brasileiro e com o Corinthians jogando em casa, com a vantagem do empate.
A coisa era séria. Romildo  tinha um problema, e algumas possibilidades para lidar com ele. Podia ficar em casa  e inevitavelmente arranjar uma saia justa com o futuro sobrinho –que até podia, quem sabe, arranjar-lhe um emprego, como disse a dona Nica. Podia abrir uma exceção e tentar fingir indiferença com a rivalidade e ser cortês somente naquele dia –o que era impossível. Podia pendurar a bandeira do seu time na parede da sala, já para ir intimidando o convidado logo na chegada, e mostrar quem ali afinal era o dono da casa. Podia ser o mais gentil dos gentis, cativando o inimigo –inimigo!- e fazendo-o entender que o futebol, antes de mais nada, é uma oportunidade de celebrar a amizade e a paz entre os homens. E podia, finalmente, ver o que é que ia dar. Afinal, era dia de semi-final. De Campeonato Brasileiro. Contra o Corinthians. O time do Ricardo Augusto. Aquele estúpido. Optou pela última possibilidade. Fosse o que Deus quisesse.
No domingo, Romildo levantou cedo, vestiu o manto sagrado –que era como ele chamava a camisa do time- e foi dar uma volta de bicicleta para ‘sentir o clima’ do clássico. Voltou quase na hora do almoço e não acreditou no que viu. Na parede da sala, bem acima do sofá-cama onde ele dormia, alguém teve a infeliz idéia de, para agradar ao ilustre e engenheiro visitante, pendurar uma bandeira do Corinthians. Romildo perdeu o chão. A vista escureceu, a mão formigou, um calafrio lhe percorreu a espinha de cima a baixo. Mas ficou quieto e resolveu agir. Sem sequer perguntar quem tinha sido o autor do execrável ato –certamente o cunhado, pai da noiva, que nem time tinha-, pegou a bandeira do Santos e, prego e martelo na mão, botou em cima da do eterno rival. Dona Nica viu aquilo, balançou a cabeça negativamente e foi tratar da lasanha no forno. Voltou:
- Rô, meu filho, não vai arranjar confusão com teu cunhado logo hoje. A sala tem quatro paredes. Ele já usou uma. Pega a tua bandeira e pendura na outra parede.  Não vai me estragar o domingo. Ninguém tem culpa das tuas manias.
Como todo fanático que se preze, Romildo a principio discordou e nem considerou pensar na proposta da mãe -mas serenou, pensou um pouco e viu que ela tinha razão. A sala ficou parecendo um estádio de futebol, com o detalhe que a bandeira dedicada ao visitante era cerca de 10 centímetros maior do que a do ‘dono’ da casa. Absurdo. Para Romildo, aquela situação era quase uma guerra. Uma afronta à sua pessoa, dentro de sua própria casa. Tudo por causa do Ricardo Augusto. Que, com um nome daqueles, ‘não sei não’.
Perto da uma da tarde, chegou o doutor Ricardo Augusto. Romildo postou-se na cozinha e  ficou ali, tenso, conferindo o movimento. A sobrinha correu a abrir o portão, ambos se abraçaram e ele pode vir o inimigo sorrindo resoluto pelo corredor do quintal, de mãos dadas com a noiva (que parecia tão pequenininha ao seu lado) em direção à porta da sala. Verdade seja dita: o cara era bonitão. Alto, cabelos encaracolados, sorriso de ator de novela, simpático. Seria uma histeria silenciosa quando as mulheres da casa o conhecessem. E um detalhe: vestia roupa normal. Nada do Corinthians. Camiseta bege, calça jeans, tênis, não fazia o tipo de fanático por futebol. Entrou, cumprimentou todo mundo, elogiou as plantas no quintal, a cor da parede da casa, a tranqüilidade da rua, por um segundo observou as bandeiras penduradas e nada disse, além das frases habituais de quem está sendo apresentado à família da namorada. Era a hora de Romildo entrar em cena. Estufou o peito –para o distintivo na camisa ficar evidente- e veio apresentar-se. Apertaram as mãos, o doutor sorria sempre e não pareceu dar a mínima, nem para o Romildo e muito menos para a camisa que ele usava. Dona Nica foi à cozinha buscar um copo de suco, os noivos sentaram-se de mãos dadas e Romildo, na poltrona à frente, tomou a dianteira do primeiro diálogo:
- Jogão hoje, hein, Ricardo?
O visitante não tinha ouvido, estava concentrado em conversar com a namorada.
- Como?
- Jogão hoje, hein? Santos e Corinthians.
- Ah, sim. Não sei, não acompanho muito futebol. Não tenho muito tempo, sabe? Mas deve ser um jogo bom, sim. Aliás, não precisa nem perguntar pra quem você vai torcer, né?
- É.
- Por mim, que vença o melhor.

Em seguida, o doutor Ricardo Augusto voltou-se para a namorada, beijou-lhe a testa e perguntou-lhe o que achava de irem tomar sorvete na praia, depois do almoço. ‘Bem na hora do jogo’, pensou Romildo, achando tudo muito estranho. E considerando seriamente a possibilidade de, quando ninguém estivesse olhando, retirar as bandeiras da parede.

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