Benilson Toniolo
Tem uma mulher aí querendo
saber se o senhor pode atender, disse a recepcionista.
- Assim, sem marcar horário? Estou
no meio da redação de um documento importante...
- Ela disse que é rápido.
- Mas o que é que ela quer
comigo?
- Parece que quer mostrar umas
fotos antigas...
- Parece que quer ou quer?
- Quer.
- Fotos?
- É, fotos da cidade. Antigas.
Quer mostrar.
Ah, a mão-de-obra de hoje em
dia... Um bando de despreparados, incapazes de transmitir de forma eficiente um
mísero recado.
- Pede pra entrar.
É uma senhora de idade
relativamente avançada. Setenta, oitenta anos, talvez um pouco menos, trazendo
no rosto as marcas característica da passagem nem sempre agradável destes
tantos anos. Baixinha, vestido amarrotado, traz uma bolsa pendurada e, nas mãos,
um envelope pardo grande.
Cumprimento com a cortesia de
sempre, convido para sentar, ofereço um café –que ela recusa por causa da
úlcera nervosa. Puxo papo, pergunto onde mora, se é daqui mesmo e arremato
dizendo que a rua que dá acesso ao bairro dela está muito melhor agora do que
antes.
Ela concorda com umas coisas,
discorda de outras, parece não gostar muito de conversa fiada.
- A recepcionista me disse que
a senhora queria me mostrar umas... umas fotos antigas, parece...
- Ah, sim. O senhor quer ver?
Querer, não quero, minha
senhora, mas vamos fazer o quê, não é verdade? A senhora já veio, já se fez
anunciar, já entrou, já sentou aqui e já me fez parar o que estava fazendo.
Estende o braço, me oferece o
envelope aberto, peço licença e retiro uma folha com quatro fotos antigas
coladas. Embaixo, está escrito de forma também antiga, com uma caligrafia
antiga, a frase ‘lembrança da turma que não quis ficar’, seguida de um número –
1956. Nas quatro imagens em preto e branco, um grupo de pessoas sorridentes faz
pose em um lugar que se parece com um morro. Muitas flores, um automóvel,
algumas crianças. Umas quinze pessoas, calculo.
- Isso é aqui em Campos?
- Sim, aqui. Minha casa agora
é atrás desse morro aí. O segundo.
Permaneço olhando, aproximo as
vistas, simulo interesse.
- São seus parentes?
- Não sei. Encontrei numa
caixa de minha mãe. Fui procurar umas fotos hoje, e encontrei isso aí.
- Interessante.
Bingo. Achei o que dizer.
- Se a senhora achar que deve,
deixe este material comigo, a gente digitaliza e põe no acervo. Seria
interessante se a senhora conseguisse identificar quem são...
A mulher está chorando. Não é
um choro convulsivo, mas é um choro doído. Curto –por isso, parece, mais
dolorido. Tem a mão direita a esconder os olhos. Não quer que eu veja que ela chora.
Deposita os óculos sobre minha mesa. Silencio –que é a melhor forma de reagir
quando alguém começa inesperadamente a chorar na nossa frente.
- A senhora quer um copo de
água? Água com açúcar? Café? Droga, esqueci da úlcera.
- O senhor me desculpe.
- Não, imagina. Posso ajudar
em alguma coisa?
Ela se recupera, funga,
procura um lenço na bolsa. Anuncia:
- Vou mostrar uma coisa para o
senhor.
Outra, meu Deus? O que será
agora?
Retira um outro envelope,
branco, e tira uma foto de dentro. Me estende. É um homem jovem, de seus
quarenta anos, de bigode e cabelos muito pretos, óculos escuros, camisa
listrada de branco e verde, calça jeans, em cima de uma motocicleta parada, segurando
um bebê. Imagino o pior.
- Quem é?, pergunto.
- É meu filho, doutor.
Não, eu não sou doutor, mas nada
lhe digo. Não é o momento.
- Como se chama?
- Augusto. É bonito, o senhor não
acha?
- Sim, um sujeito bem
apessoado, vendendo saúde. Esta foto também é aqui em Campos?
- É, sim, doutor, lá em casa.
Tiramos faz mais ou menos um ano.
- Ah, sim.
Não, não vou perguntar. Se
quiser, ela que diga. E diz.
- Hoje é aniversário de morte
dele. Quatro meses. Eu não agüento...
Agora chora mais forte. Saio
em busca de um copo de água. Volto.
- Toma, bebe um pouco. A
senhora tem que ser forte.
- É o que eu tento ser,
doutor, mas não consigo. Não agüento mais chorar. Sinto muita falta dele.
Depois que fiquei viúva, era ele que tomava conta de mim.
- E ele morava aqui?
- Não, morava em Minas, mas
toda semana vinha me ver e trazia o menino.
- Seu neto?
- É, meu neto. Luis Gustavo, o
nome dele. Esse aí da foto.
- Mas olha, a senhora tem que agüentar
firme. Só tem o Luis Gustavo, de netinho?
- Não, tem uma outra, mais
velha, de quinze anos, que faz tempo que não vejo. Do primeiro casamento dele.
Mas essa mora longe com a mãe, não vejo quase. E o senhor sabe o que é essa criançada
quando chega nessa idade, né, doutor? Não quer saber de pai, de mãe, de avó, de
nada. Nem me telefonam, eu é que ligo no final de semana para saber como é que
estão as coisas. A mãe dela, então, nem ao telefone vem para falar comigo.
- Mas a senhora vai a Minas,
ver o Luis Gustavo.
- Não tenho coragem, doutor. Não
tenho coragem. Como é que eu vou entrar de novo naquela casa sem ver meu filho?
E são só quatro meses, é muito pouco...
- Mas a senhora tem que ir lá,
visitar seu neto, não é verdade?
- Um dia eu vou, mas agora não.
Acho que não posso. É que eu só choro, de dia e de noite.
- Tem que reagir, dona...
- Ana.
- Tem que reagir, dona Ana.
Devolvo a foto do filho morto.
Ela guarda no envelope menor.
- Eu tento, doutor, mas é tão difícil.
O senhor tem filho?
- Tenho, sim, dona Ana. Tenho,
sim.
Poupo os detalhes.
- A senhora não quer um café,
mesmo?
- Não, doutor, obrigada. O
senhor vai ficar com a foto, então?
- Vou, sim. Deixa aqui comigo
e pode vir buscar amanhã à tarde.
- Olha, o senhor me desculpe.
Me ocorre a Macabéa, da ‘A
Hora da Estrela’.
- Não há o que desculpar, já
disse. Está tudo bem.
Vou acompanhando a senhora até
a saída. No pequeno trajeto, voltamos a falar da rua, do tempo, da cidade, das atrações.
- Olha, a senhora gosta de
Arte?
- Gosto um pouco, sim.
- Então a senhora deixa aí o
telefone com a secretária, que quando tivermos uma exposição eu convido a
senhora, o que acha? Assim a senhora distrai um pouco.
- Mas essas exposições devem
ser à noite, não?
- São, sim, dona Ana, em geral
são à noite.
- É que eu não tenho carro.
Dependo de ônibus, e lá no meu bairro tem pouco ônibus. Depois, sair sozinha é
ruim.
Depois de uma pausa, ela volta
a falar.
- E eu não vim aqui atrás
dessas coisas.
Fazemos, ambos, um novo, lento
e pesado silêncio. E quando percebeu que eu não faria a pergunta que me cabia
fazer, ela arrematou.
- Sabe, o senhor lembra muito
o Augusto. Eu nunca tinha visto o senhor, nem o senhor nunca tinha me visto.
Mas um dia eu passava na rua, distraída, quando ouvi uma voz atrás de mim. Estremeci,
porque eu tive a clara impressão que era meu filho Augusto falando. E parecia
que ele falava comigo. E na hora me deu uma felicidade tão grande, tão maravilhosa,
que o senhor não pode fazer idéia. Para mim, era como se ele não tivesse
morrido, como se ele estivesse ainda aqui, e tinha me visto na rua, e tinha
falado comigo. Então parei e fiquei esperando a voz aparecer de novo. E aí vi o
senhor parado há alguns metros de onde eu estava, conversando com uma moça. O
nome dela era Ana, pelo que eu vi. E aí o senhor falou de novo, e eu vi que não
era o meu filho Augusto. Aí eu vi que era o senhor. E aí eu sofri muito aquela
hora, doutor, porque era o senhor falando, e não ele. E quando cheguei em casa
eu desabei a chorar de novo, porque eu já tinha prometido pra mim mesma que eu não
ia mais chorar pela morte dele, e que eu ia ser forte e continuar vivendo a
minha vida. Mas aí veio a sua voz. Por isso vim aqui. Para ouvir a voz do meu
filho de novo.
Dona Ana parou de chorar. Até
sorriu um pouco, enquanto contava sua história de amor a uma lembrança e a uma
voz. Tinha mudado. A mulher que se despediu de mim com um aceno e um meio
sorriso era muito diferente da que havia entrado, dois quartos de hora antes.
Prova disso é nosso último diálogo.
- Dona Ana, como é que a
senhora me descobriu aqui?
Ela olhou pra baixo,
sorrateira, carinha de menina quando faz arte.
- Essas coisas a gente
descobre, meu filho. Mulher, quando quer, descobre até o que não existe.
E saiu, prometendo voltar no
dia seguinte para buscar seu envelope e ainda outras vezes, ‘pra gente prosear’.
Por fim, e uma vez que eu não era
mais o ‘doutor’, e sim ‘meu filho’, acompanhei sua saída com o inevitável amuo
dos olhos e do coração. Voltei à sala, retirei novamente a foto antiga do
envelope e chamei a recepcionista: ‘escaneia isso aqui pra mim, por favor’.
A redação do documento
importante teria que esperar até o dia seguinte.