sexta-feira, 29 de novembro de 2013

NÓS E ELES


Benilson Toniolo

Brasília recebe por estes dias mais uma edição da Gymnasíade, a maior competição mundial de estudantes-atletas, ou atletas-estudantes. Uma espécie de olimpíada para a molecada. Muitos dos que aqui estarão certamente nos próximos Jogos Olímpicos, se não no Rio de Janeiro, dentro de pouco mais de dois anos, mas nos posteriores. Uma moçada muito bonita, com seus agasalhos coloridos e seus rostos recém-entrados na adolescência. Alguns já saindo dela, é verdade, mas não menos belos. Então é comum encontrar por aí com grupos de jovens russos, mexicanos, cubanos, chineses, cipriotas, espanhóis, franceses, gregos e chilenos, só para citar os que dividem o mesmo hotel onde me hospedo na Capital Federal. Alongam esguiamente no lobby, pelas escadarias, no elevador. Fotografam, falam ao telefone e ouvem muita música nos seus equipamentos fantásticos. E como riem, como riem gostosamente esses jovens atletas!
Estão pela cidade toda. Nas ruas, nos shoppings, no metrô, nos pontos de ônibus. E sofrem com uma dificuldade imensa: comunicar-se com a maioria dos brasileiros. Nos últimos dois dias, flagrei algumas cenas constrangedoras envolvendo estrangeiros querendo comprar coisas, ou mesmo obter uma simples informação, e não conseguirem ser entendidos por nossos compatriotas. Na livraria, no coffee-shop do hotel, no ponto de taxi, no Museu JK, enfim, é comum vermos nossos visitantes passando apuros pelo fato de os atendentes não conseguirem saberem se comunicar com eles.
Devíamos ter sido informados com a devida antecedência que o País entraria no rol dos grandes destinos do mundo. Não nos preparamos, é isso que dá. Temos que pedir desculpas duas vezes: aos nossos visitantes, por não sabermos nos comunicar o mínimo que seja naquele que é o idioma que permeia as relações comerciais ao redor do planeta; e ao nosso próprio país, pois são incontáveis as vendas no comércio que acabam frustradas pela nossa incompetência, pela nossa falta de conhecimento e de educação. Menos divisas para os cofres da nação, por simples falta de capacidade básica de comunicação.

Se bem que a atendente do hotel ainda dá um jeito -o jeito dela. Ao ver um estrangeiro se aproximando do balcão, ela abre a portinhola de entrada, encosta-se nos fundos da loja, dá um meio-sorriso simpático e orienta o cliente: ‘entra e pega’. Como o valor da mercadoria está na etiqueta, a ele só é dado o trabalho de pagar e, a ela, o de dar o troco, quando troco houver. O cliente, quando se lembra, agradece com um ligeiro aceno de mão. Ponto para o Brasil.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

NOVAS REFLEXÕES DE BRASÍLIA


Benilson Toniolo

A Ministra da Cultura abriu a III Conferência Nacional de Cultura de forma exemplar: sem lançar mão de afetações e ‘protocolismos’, fez um discurso breve e direto, elencando as principais realizações de sua pasta nos quatorze meses de sua gestão e fazendo um apelo em prol da inserção dos jovens das periferias e dos mais distantes recantos do País na tomada de decisões. Em nossa reunião em São Paulo, há quinze dias, já tinha tido a impressão de ser ela uma pessoa simples, honesta e comprometida. Difícil vincular o que tenho visto com a imagem que a imprensa, principalmente a tevê, fazem dela. Penso que a Cultura brasileira está em boas mãos. Recordo que critiquei muito sua indicação. Hoje, retiro o que disse. Marta Suplicy está fazendo, sim, um excelente trabalho. E temos aprendido muito com ela.

Hoje, no Brasil, é pura perda de tempo, saliva e tinta de caneta querer discutir com dois grupos: o que acha que o mensalão do PT é o maior escândalo de corrupção da história do País e o que acha que os encarcerados (principalmente o trio Delúbio-Dirceu-Genoíno) são presos políticos injustiçados e perseguidos por uma elite ensandecida e por uma mídia golpista. Apropriar-se de dinheiro público não-declarado para comprar o apoio de parlamentares ao Governo é crime. Ponto. E quem comete crimes deve ser julgado e punido. Não há mal algum nisso.
Grave, grave mesmo, é saber que ao menos 56 pessoas no Estado de São Paulo ficaram presas injustamente por dias, meses e anos, apenas por terem nomes parecidos ou serem homônimos dos verdadeiros criminosos. Alguns, foram detidos por terem seus documentos roubados e utilizados no crime. Ou seja, são vítimas de um Estado desorganizado, incompetente e corrupto, que faz uso de sistemas de controle que não funcionam. Para eles, indenização –que o Estado sempre protela o quanto pode, recorrendo em todos os níveis que a Justiça permite- é pouco. Mereciam iniciar de novo uma nova existência. Isso é muito mais grave que a prisão dos mensaleiros –ainda que sejam, ambos, fatos inaceitáveis.

Enquanto isso, a Suécia anuncia o fechamento de quatro penitenciárias devido –pasmem!- à falta de presos. Esta é, na síntese, a diferença que um sistema educacional eficiente faz em um país. Aqui no Brasil, o governo continua buscando espaço e dinheiro para construir novos presídios.


“Os grão-tucanos garantem que Lula sabia das traficâncias dos mensaleiros. Esses mesmos grão-tucanos garantem que nenhum dos três governadores paulistas sabia das traficâncias do cartel da Alstom. Pode-se acreditar numa coisa ou na outra, mas acreditar nas duas é tarefa difícil’. Frase de Elio Gaspari na Folha. E acreditar que todos sabiam de absolutamente tudo?



TER PARTIDO: PARTIR

Benilson Toniolo

Deu-se comigo, hoje, um fato inédito: perdi o vôo. Por uma série de trapalhadas da pessoa encarregada de me trazer ao aeroporto, apresentei-me ao guichê da companhia aérea no exato momento em que o avião iniciava seus mastodônticos movimentos em pista para decolar. Paciência. Taxas pagas e embarque remarcado para dali a três horas, consolei-me com a possibilidade de que, no fim das contas, talvez eu não devesse mesmo embarcar naquele vôo. Sempre acontece assim nos grandes acidentes aéreos: sempre fica alguém que, por ter se atrasado para o embarque, foi poupado da morte trágica de um desastre a dez mil pés de altura do chão. Neste caso, felizmente, ambos os vôos, o que eu perdi e o que entrei depois, aterrissaram bem, e sãos, e salvos. Ao menos pelo que eu saiba. Maktub, como diriam Coelho e os adventistas.
Não, não briguei, não fiz escândalo, não me exaltei. Guardei em mim a inevitável frustração  causada pelo atraso e, quando finalmente chegamos, desejei ao motorista uma boa viagem de regresso. Isso deve tê-lo acalmado.
Ocorreu que, de ineditismo em ineditismo, deu-se-me outro: o de ter pela frente três horas absolutamente ociosas, obsequiosas de preenchimento, a perambular pelo aeroporto. Refiro-me a um ineditismo de, pelo menos, três meses para cá. Três horas inteiras, que preenchi colocando em dia as leituras atrasadas do fim-de-semana, tomando um lanche e um chope –caríssimos, por sinal.
Vou à livraria Saraiva e, para me atualizar do que está acontecendo no lugar de destino –Brasília- resolvo comprar o Correio Braziliense, que retiro da prateleira. Pago o valor no caixa –R$ 2- e, enquanto aguardo a notinha que o atendente em treinamento tenta imprimir, percebo que o jornal é do dia anterior. Neste momento já estou em outro caixa, já que o atendente em treinamento não conseguiu imprimir o recibo.
- Moça, vou ali trocar o jornal, porque este aqui é de ontem.
- Não tem, moço. Jornais de outros estados, só temos os do dia anterior.
- Bom, então vou trocar por uma Folha de S. Paulo, que pelo menos é de hoje.
- Não pode. A Folha, o senhor vai ter que comprar.
- Mas isso está errado. Não posso pagar por um jornal de ontem. Como é que vocês botam para vender um jornal de ontem?
- ...
- Me diga uma coisa: por acaso são muitas as pessoas que entram aqui e pedem para comprar um jornal do dia anterior?
Pego a Folha. A atendente –que não está em treinamento- está de posse do meu jornal de ontem, pelo qual já paguei e não pretendo ler.
- Vou tentar fazer a troca. O senhor tem cadastro na Saraiva?
- Eu, não. Minha mulher deve ter.
- O senhor sabe o número do CPF dela?
- Sei.
Simone, isso mesmo. Ela confirma o nome.
- O senhor está com documento da sua esposa aí?
- Olha, milha filha, vamos fazer o seguinte. Você me devolve os R$ 2 que paguei e vou embora.
- O senhor está com a notinha aí?
- Não, não estou. Porque seu colega não sabia imprimir.
Olho em volta e o atendente em treinamento sumiu.
- Então não vai ser possível, senhor...
Pago mais R$ 3 pela Folha e mando a menina enfiar o jornal de ontem de volta na prateleira. Poderia até trazer, mas sabe como é. Jornal de ontem.
É por cenas assim, por acontecimentos tão pequenos, mas tão constrangedores, que a gente percebe por que é que um país não dá certo. Por que é que um país implode.

A senhora de olhos fixos no telefone celular, parada no meio do saguão, eleva o tom de voz e determina: ‘vem aqui, Isabel’. A menina Isabel está bem ao seu lado, segurando uma mochilinha cor-de-rosa, e dirige-se à mulher num olhar interrogativo: ‘tô aqui, vó’. Mas a avó da Isabel só tem olhos para a tela do celular. Pobre celular.

O apartamento do hotel é exatamente defronte ao Estádio Nacional Mané Garrincha, um dos vários construídos no Brasil para o Mundial de Futebol do ano que vem –todos erguidos com uma velocidade espantosa para dar conta das exigências impostas pelo ‘padrão FIFA’. Ligo a tevê e recebo a trágica notícia da morte de três operários nas obras do estádio de São Paulo. Segundo dizem, já são seis os trabalhadores brasileiros mortos nestas obras. Será que precisamos mesmo disso? Quantos trabalhadores ainda serão sacrificados para organizarmos um campeonato de futebol? Impossível não me lembrar do General Figueiredo, que no fim dos anos 1970 recusou uma proposta para organizar o mundial de 1986 em nosso País devido aos absurdos custos envolvidos. É em momentos como este que começamos a entender porque algumas nações avançam, e outras implodem. Nas pequenas e grandes tragédias.

Brasília continua linda, apesar das inúmeras e gigantescas obras a que está submetida e que causam os transtornos naturais que empreitadas como estas costumam causar. A visão noturna da Catedral e da Praça dos Três Poderes, todas iluminadas, é das mais bonitas. Lugares tão monumentais, alguns dos quais que se constituem nos grandes centros nervosos das principais decisões tomadas pelos três principais poderes políticos, mergulhados no silêncio ensurdecedor e escuro do oeste, remetem a breves reflexões e causam o tremor característico de quando nos flagramos exatamente no meio da História de um país. É sempre bom rever a capital federal, antes que imploda.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

PERDAS

Benilson Toniolo

                                          foto: facebook

O Professor Odair Bernabel nos deixou hoje, aos sessenta e seis anos. Era daquelas pessoas que a gente conhecia mesmo sem nunca ter sido apresentado. Encontramo-nos algumas vezes, e nunca trocamos mais do que meia dúzia de palavras. Cidade pequena, sabe como é. Grandalhão, jeito simples e sossegado, parecia ser daquelas pessoas que nunca se zangam. Passos lentos. Olhos atentos ao movimento das pessoas, das ruas.
Mas como conhecê-lo, sem nunca termos sido apresentados um ao outro? Simples: pelo que se dizia dele. Professor Odair –ou Dairzão, pela estatura e por outras características morais- caminhava pelas calçadas de Abernéssia sem precisar se apresentar a ninguém. Sua história como pai, cidadão, trabalhador e avô falavam por ele. Desnecessário que ele se apresentasse. Assim é com os que andam direito nesta vida: a própria vida se encarrega de dizer quem somos. Com Professor Odair foi assim que se deu.
Quando partiram Dynéas Aguiar e, mais recentemente, Daniel Corrêa Cintra, cheguei à conclusão que a melhor maneira de prestar-lhes homenagem era fazer o que eles fizeram de melhor enquanto aqui estiveram, ou seja, trabalhar. Trabalhar pela cultura, pelo conhecimento, pela educação, pela disseminação do conceito de que somente através do trabalho e do estudo poderemos construir pessoas melhores e, consequentemente, uma sociedade mais justa e fraterna. Um mundo melhor. Uma Cidade melhor, mais comprometida com seu futuro e menos presa a mesquinharias, pequenezas e a esta terrível subserviência que nos limita tanto.

Mais um bom que se vai, deixando a Cidade mais pobre intelectual e moralmente. O que nos preocupa é a falta de reposição: homens como Odair são cada vez mais raros, hoje em dia. O que nos resta é prosseguir trabalhando e confiando, como ele fez durante a vida, na mais nobre das profissões: a de professor. Professor Dairzão. 



Nunca li nada de Doris Lessing, que também bateu asas hoje, aos noventa e quatro. Nascida no Irã e criada em Zimbábue, vivia na Inglaterra há muitos anos. Lembro-me de sua foto estampada nos jornais quando ganhou o Nobel, chegando da feira –ou do supermercado- com seu improvável, para o momento, carrinho de compras (alguém poderia imaginar a escritora mais galardeada do mundo empurrando um carrinho de feira na fria manhã inglesa?) e fazendo cara de espanto ao ver a multidão de fotógrafos defronte sua casa. Diante da pergunta de um repórter sobre o prêmio, disse: “eu só escrevo, mais nada’. Lá vai Doris, aumentar nosso inventário de perdas irreversíveis.


Há quem diga que é o ciclo da vida. Pode ser o da morte, do qual a vida, necessária e fundamentalmente, é parte integrante.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

BRASIL: MAIS DO MESMO



Benilson Toniolo

Não gostei do tom usado por uma usuária do twitter ao protestar pelo fato de ter sido acordada às sete da manhã de sábado com uma ligação de um presídio – o velho golpe do seqüestro. Tudo bem que o caso é grave e as autoridades brasileiras parecem não fazer o menor esforço para eliminar esta inaceitável prática do nosso cotidiano, mas daí a aceitar que a moça escreva que "o Brasil é um país de merda", já é um pouco demais. Afinal, era só desligar o celular e voltar a dormir.
Não, não chegamos a tanto. Mas vale a pena analisar, ainda que superficialmente, duas matérias destacadas na Folha do mesmo sábado, para que tenhamos uma idéia mínima  do rumo que esta imensa catraia chamada Brasil está tomando –se é que há algum rumo neste oceano interminável de tragédias.
E veremos que, diferentemente do que disse a tuiteira, somos no máximo, no máximo, um grande flato, para ficarmos na esfera gastrointestinal do problema.

O POTÁSSIO É NOSSO
Duas novas jazidas de potássio descobertas na bacia do Amazonas podem ajudar o Brasil a acabar com a dependência externa do produto –ingrediente básico dos fertilizantes. No último ano, o país importou 6 milhões de toneladas, o que representa mais de 90% do consumo total.
Segundo Hélio Diniz, presidente da Potássio do Brasil –subsidiária da canadense Brazil Potash Corporation- ‘as seis minas descobertas têm capacidade para produzir todo o volume consumido pelo Brasil’.
Entretanto, em função do alto investimento necessário para iniciar o projeto de extração (US$ 2 bi), a empresa pretende iniciar a produção somente em 2018.
Sei não, mas tenho a impressão que tem coisa (s) errada (s) nessa história. A responsável pelo potássio em solo brasileiro é uma empresa canadense, que chama para si a responsabilidade  pela extração de um mineral que, afinal, está em solo brasileiro. Ou seja, a independência do país com relação ao potássio está nas mãos dos canadenses. Venderam o solo brasileiro, sim. Mas para quem? Quando? Por quanto? De que forma?
E continuaremos –pois esta é nossa sina- importando milhões de toneladas ao ano daquilo que, em nosso solo, abunda. Pelo menos até 2018, quando muito provavelmente o Brasil passará a considerar a possibilidade de comprar dos canadenses aquilo que está em seu –dele- próprio território. Se é que o território ainda é nosso...

 CARGAS – MELHOR NÃO TÊ-LAS...
Aumentou em 46% o roubo de cargas (preponderantemente, de celulares e computadores) na região de Campinas. A situação é de absoluto descontrole. Os aumentos registrados neste ano são de 700% em Itupeva, 400% em Indaiatuba, 167% em Vinhedo, 150% em Jundiaí, 117% em Valinhos e 67% em Louveira. Ou seja, perdeu-se o controle de forma definitiva do que a bandidagem apronta na região.
Além das conseqüências naturais de uma terra sem lei, quem paga o prejuízo somos nós, os consumidores de bem que não cometem crimes. Porque, se o roubo aumenta, o preço do seguro das cargas aumenta na mesma proporção, o que causa também aumento no preço final do produto. Podemos entender que as quadrilhas agem livremente, o governo permanece na habitual inércia e o consumidor é quem arca com todo o prejuízo. Mas tudo bem, porque nós, os eternos otários, compramos e pagamos em 12 vezes no cartão de crédito, carnê, cheque pré-datado ou boleto bancário -sem juros, evidentemente, como anunciam na TV que, por sinal, ainda estamos pagando- e saímos da loja convencidos de que fizemos um bom negócio.
Mas voltando ao tema: segundo profissionais dos setores de transportes e segurança, a falta de combate à receptação é o principal estímulo ao roubo de cargas.
O comando da PM na região informa que ‘estamos mapeando as regiões e os horários mais críticos e desenvolvendo um serviço de inteligência para combater esse tipo de crime’. Resposta burocrática, protocolar e repleta de gerúndios para informar que pouco ou nada está sendo feito de prático para resolver o problema. Talvez em 2015, depois das eleições para o Governo do Estado...

 EU ME LEMBRO...
Aos poucos, vou entendendo melhor por qual motivo a coluna dominical de Daniel Piza no Estadão chamava-se ‘Por que não me ufano’. Nada mais apropriado.

Falando nisso, que falta faz o Daniel...

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A MULHER DAS FOTOS

Benilson Toniolo

Tem uma mulher aí querendo saber se o senhor pode atender, disse a recepcionista.
- Assim, sem marcar horário? Estou no meio da redação de um documento importante...
- Ela disse que é rápido.
- Mas o que é que ela quer comigo?
- Parece que quer mostrar umas fotos antigas...
- Parece que quer ou quer?
- Quer.
- Fotos?
- É, fotos da cidade. Antigas. Quer mostrar.
Ah, a mão-de-obra de hoje em dia... Um bando de despreparados, incapazes de transmitir de forma eficiente um mísero recado.
- Pede pra entrar.
É uma senhora de idade relativamente avançada. Setenta, oitenta anos, talvez um pouco menos, trazendo no rosto as marcas característica da passagem nem sempre agradável destes tantos anos. Baixinha, vestido amarrotado, traz uma bolsa pendurada e, nas mãos, um envelope pardo grande.
Cumprimento com a cortesia de sempre, convido para sentar, ofereço um café –que ela recusa por causa da úlcera nervosa. Puxo papo, pergunto onde mora, se é daqui mesmo e arremato dizendo que a rua que dá acesso ao bairro dela está muito melhor agora do que antes.
Ela concorda com umas coisas, discorda de outras, parece não gostar muito de conversa fiada.
- A recepcionista me disse que a senhora queria me mostrar umas... umas fotos antigas, parece...
- Ah, sim. O senhor quer ver?
Querer, não quero, minha senhora, mas vamos fazer o quê, não é verdade? A senhora já veio, já se fez anunciar, já entrou, já sentou aqui e já me fez parar o que estava fazendo.
Estende o braço, me oferece o envelope aberto, peço licença e retiro uma folha com quatro fotos antigas coladas. Embaixo, está escrito de forma também antiga, com uma caligrafia antiga, a frase ‘lembrança da turma que não quis ficar’, seguida de um número – 1956. Nas quatro imagens em preto e branco, um grupo de pessoas sorridentes faz pose em um lugar que se parece com um morro. Muitas flores, um automóvel, algumas crianças. Umas quinze pessoas, calculo.
- Isso é aqui em Campos?
- Sim, aqui. Minha casa agora é atrás desse morro aí. O segundo.
Permaneço olhando, aproximo as vistas, simulo interesse.
- São seus parentes?
- Não sei. Encontrei numa caixa de minha mãe. Fui procurar umas fotos hoje, e encontrei isso aí.
- Interessante.
Bingo. Achei o que dizer.
- Se a senhora achar que deve, deixe este material comigo, a gente digitaliza e põe no acervo. Seria interessante se a senhora conseguisse identificar quem são...
A mulher está chorando. Não é um choro convulsivo, mas é um choro doído. Curto –por isso, parece, mais dolorido. Tem a mão direita a esconder os olhos. Não quer que eu veja que ela chora. Deposita os óculos sobre minha mesa. Silencio –que é a melhor forma de reagir quando alguém começa inesperadamente a chorar na nossa frente.
- A senhora quer um copo de água? Água com açúcar? Café? Droga, esqueci da úlcera.
- O senhor me desculpe.
- Não, imagina. Posso ajudar em alguma coisa?
Ela se recupera, funga, procura um lenço na bolsa. Anuncia:
- Vou mostrar uma coisa para o senhor.
Outra, meu Deus? O que será agora?
Retira um outro envelope, branco, e tira uma foto de dentro. Me estende. É um homem jovem, de seus quarenta anos, de bigode e cabelos muito pretos, óculos escuros, camisa listrada de branco e verde, calça jeans, em cima de uma motocicleta parada, segurando um bebê. Imagino o pior.
- Quem é?, pergunto.
- É meu filho, doutor.
Não, eu não sou doutor, mas nada lhe digo. Não é o momento.
- Como se chama?
- Augusto. É bonito, o senhor não acha?
- Sim, um sujeito bem apessoado, vendendo saúde. Esta foto também é aqui em Campos?
- É, sim, doutor, lá em casa. Tiramos faz mais ou menos um ano.
- Ah, sim.
Não, não vou perguntar. Se quiser, ela que diga. E diz.
- Hoje é aniversário de morte dele. Quatro meses. Eu não agüento...
Agora chora mais forte. Saio em busca de um copo de água. Volto.
- Toma, bebe um pouco. A senhora tem que ser forte.
- É o que eu tento ser, doutor, mas não consigo. Não agüento mais chorar. Sinto muita falta dele. Depois que fiquei viúva, era ele que tomava conta de mim.
- E ele morava aqui?
- Não, morava em Minas, mas toda semana vinha me ver e trazia o menino.
- Seu neto?
- É, meu neto. Luis Gustavo, o nome dele. Esse aí da foto.
- Mas olha, a senhora tem que agüentar firme. Só tem o Luis Gustavo, de netinho?
- Não, tem uma outra, mais velha, de quinze anos, que faz tempo que não vejo. Do primeiro casamento dele. Mas essa mora longe com a mãe, não vejo quase. E o senhor sabe o que é essa criançada quando chega nessa idade, né, doutor? Não quer saber de pai, de mãe, de avó, de nada. Nem me telefonam, eu é que ligo no final de semana para saber como é que estão as coisas. A mãe dela, então, nem ao telefone vem para falar comigo.
- Mas a senhora vai a Minas, ver o Luis Gustavo.
- Não tenho coragem, doutor. Não tenho coragem. Como é que eu vou entrar de novo naquela casa sem ver meu filho? E são só quatro meses, é muito pouco...
- Mas a senhora tem que ir lá, visitar seu neto, não é verdade?
- Um dia eu vou, mas agora não. Acho que não posso. É que eu só choro, de dia e de noite.
- Tem que reagir, dona...
- Ana.
- Tem que reagir, dona Ana.
Devolvo a foto do filho morto. Ela guarda no envelope menor.
- Eu tento, doutor, mas é tão difícil. O senhor tem filho?
- Tenho, sim, dona Ana. Tenho, sim.
Poupo os detalhes.
- A senhora não quer um café, mesmo?
- Não, doutor, obrigada. O senhor vai ficar com a foto, então?
- Vou, sim. Deixa aqui comigo e pode vir buscar amanhã à tarde.
- Olha, o senhor me desculpe.
Me ocorre a Macabéa, da ‘A Hora da Estrela’.
- Não há o que desculpar, já disse. Está tudo bem.
Vou acompanhando a senhora até a saída. No pequeno trajeto, voltamos a falar da rua, do tempo, da cidade, das atrações.
- Olha, a senhora gosta de Arte?
- Gosto um pouco, sim.
- Então a senhora deixa aí o telefone com a secretária, que quando tivermos uma exposição eu convido a senhora, o que acha? Assim a senhora distrai um pouco.
- Mas essas exposições devem ser à noite, não?
- São, sim, dona Ana, em geral são à noite.
- É que eu não tenho carro. Dependo de ônibus, e lá no meu bairro tem pouco ônibus. Depois, sair sozinha é ruim.
Depois de uma pausa, ela volta a falar.
- E eu não vim aqui atrás dessas coisas.
Fazemos, ambos, um novo, lento e pesado silêncio. E quando percebeu que eu não faria a pergunta que me cabia fazer, ela arrematou.
- Sabe, o senhor lembra muito o Augusto. Eu nunca tinha visto o senhor, nem o senhor nunca tinha me visto. Mas um dia eu passava na rua, distraída, quando ouvi uma voz atrás de mim. Estremeci, porque eu tive a clara impressão que era meu filho Augusto falando. E parecia que ele falava comigo. E na hora me deu uma felicidade tão grande, tão maravilhosa, que o senhor não pode fazer idéia. Para mim, era como se ele não tivesse morrido, como se ele estivesse ainda aqui, e tinha me visto na rua, e tinha falado comigo. Então parei e fiquei esperando a voz aparecer de novo. E aí vi o senhor parado há alguns metros de onde eu estava, conversando com uma moça. O nome dela era Ana, pelo que eu vi. E aí o senhor falou de novo, e eu vi que não era o meu filho Augusto. Aí eu vi que era o senhor. E aí eu sofri muito aquela hora, doutor, porque era o senhor falando, e não ele. E quando cheguei em casa eu desabei a chorar de novo, porque eu já tinha prometido pra mim mesma que eu não ia mais chorar pela morte dele, e que eu ia ser forte e continuar vivendo a minha vida. Mas aí veio a sua voz. Por isso vim aqui. Para ouvir a voz do meu filho de novo.
Dona Ana parou de chorar. Até sorriu um pouco, enquanto contava sua história de amor a uma lembrança e a uma voz. Tinha mudado. A mulher que se despediu de mim com um aceno e um meio sorriso era muito diferente da que havia entrado, dois quartos de hora antes. Prova disso é nosso último diálogo.
- Dona Ana, como é que a senhora me descobriu aqui?
Ela olhou pra baixo, sorrateira, carinha de menina quando faz arte.
- Essas coisas a gente descobre, meu filho. Mulher, quando quer, descobre até o que não existe.
E saiu, prometendo voltar no dia seguinte para buscar seu envelope e ainda outras vezes, ‘pra gente prosear’.
Por fim, e uma vez que eu não era mais o ‘doutor’, e sim ‘meu filho’, acompanhei sua saída com o inevitável amuo dos olhos e do coração. Voltei à sala, retirei novamente a foto antiga do envelope e chamei a recepcionista: ‘escaneia isso aqui pra mim, por favor’.

A redação do documento importante teria que esperar até o dia seguinte.