domingo, 6 de abril de 2014

JUREMA E O PONTA-ESQUERDA JAPONÊS

foto: prof-guilherme.capesp.org

Benilson Toniolo

Jurema era loura, alta, olhos verdes e um pouco feia. Simpática, como se diz. Mas tinha um corpão pra ninguém botar defeito. Mulherão estava ali. Recém formada no curso técnico de tradutor e intérprete, lecionava espanhol e português numa escola municipal. E tinha um corpão, é bom que se repita. Uh.
Conheci-a numa exposição de arte. Desempregado, inadimplente e sem dinheiro, mas simpatiquinho e metido a intelectual, eu comparecia a todos os eventos para os quais era e não era convidado: lançamentos de livros, aberturas de exposições, palestras, instalações, e ficava ali, bestando pra ver se conhecia alguém interessado em ler meus desinteressantes poemas, me dar um emprego ou, no caso de uma mulher bonita, sair para dar um passeiozinho no calçadão da praia.
Alguém nos apresentou, uma risadinha aqui, outra ali, e começamos a sair. A coisa andava muito bem, progressos relevantes a cada saída indicavam que faltava pouco para nos conhecermos mais intimamente, por assim dizer. Como diria o velho Gonzagão, “mulher querendo é bom demais”. E Jurema dava claros sinais de que, sim, ela queria. Faltava pouco, portanto. Se emprego estava difícil e minha poesia não desempacava, pelo menos no amor eu estava me dando bem. Feia, não. Arrumadinha. E tinha um corpão.
Só havia uma coisa que me empolgava mais do que o namoro com a Jurema: a boa fase do time do Santos no Campeonato Paulista daquele ano. Vínhamos há oito anos sem ganhar um campeonatozinho sequer, uma seca danada –que duraria mais alguns anos, e justo naquele ano o time parece que embalava. A zaga era pouco confiável, com Camilo e Pedro Paulo, ambos revelados na base; os laterais marcavam e apoiavam com eficiência (Ïndio na direita e Marcelo Veiga na esquerda), o meio campo não comprometia e, no ataque, Almir e Paulinho McLaren barbarizavam as fortes defesas adversárias (a saber: XV de Jaú, Ferroviária de Araraquara, Francana e América de Rio Preto, entre outros), mas o maior destaque era na ponta-esquerda: um improvável japonês chamado Kazu. Japonês de verdade, do Japão mesmo, que sabe-se lá como acabou desembarcando na Vila Belmiro por um desses mistérios que só o futebol explica (ou não explica).
Kazu de vez em quando jogava muito. Baixinho, pernas grossas, driblador, fazia tudo olhando para baixo. Corria, passava, lançava, finalizava. Chutava de esquerda com efeito. Estava sempre sorrindo. O lateral vinha, dava uma sarrafada no joelho dele e o Kazu levantava e sorria. O goleiro saía na bola, dava um cascudo na cabeça dele e o Kazu sorria. Aquele jeito japonês. Faltava apertar a mão do adversário e agradecer pela porrada. Tinha feito dois gols decisivos nos últimos dois jogos –o que para nós, na fase em que o time andava, já era quase o caso de fazer um apelo ao Presidente da República para naturalizar o cara e mandar pra Seleção Brasileira.
Numa daquelas situações que só o destino e os responsáveis pela tabela da Federação Paulista de Futebol podem produzir, o próximo jogo seria em casa, contra o Guarani de Campinas, em plena segunda-feira à noite. Dia de jogo, todo mundo sabe, é quarta, quinta, sábado e domingo. Aquele jogo foi marcado para uma noite de segunda. Vendi uns livros num sebo (Victor Hugo, Jorge Amado e outros de menor calibre) do Centro da Cidade, reservei o dinheiro do ônibus e do ingresso e comecei a me preparar para sentar na arquibancada da Vila pra ver o Peixe ganhar do time que, naquele momento, era um dos líderes di campeonato. Era noite de Santos, era noite de Kazu, era noite de Vila lotada.
Até tinha me esquecido da Jurema. Prioridade é prioridade, meu amigo. Entre o Santos e ela, a Jurema que esperasse. O time naquela fase, e eu ia perder por causa de mulher? Tudo bem, tinha um corpão. Mas era o Santos. E na Vila. E era o Kazu.
Santos é muito quente, todo mundo sabe. A gente fica meio à vontade. Daí que, para o embate daquela noite, a indumentária escolhida foi a bermuda única, a camisa do Rei –a dez- e chinelos. Porque facilita na hora de comemorar.  Chinelo não tem cadarço. Vou saindo de casa, o coração já dando os pulos de quem vai ao encontro da mulher amada –no caso, o Santos- e o telefone toca. Era Jurema, toda chorosa. Que tinha que falar comigo. Que não era nada grave, mas que tinha que ser naquele dia. Ou melhor, naquela noite. Que ia me encontrar, se fosse o caso, onde eu estivesse. Que isso. Que aquilo. Que aquilo outro. Que era importante. ‘Mas tem que ser hoje, Jureminha?’. Tinha. Fazer o quê?  E ela falava com uma vozinha tão triste, coitada, que sequer me ocorreu comentar sobre o jogo.
Marcamos para as sete e meia, no ponto de ônibus defronte à balsa. Pensei: ‘pode ser que ela me dê o cano. Não venha, desista, falte ao encontro’. Uma luz de esperança brotou em meu coração. ‘Se ela não aparecer, vou pro jogo!”. Por isso nem troquei de roupa. Camisa do Santos –a branca, claro, imaculada, chinelo e bermuda. Mulher, quando ama, não liga para essa besteira de roupa. Ela ama e pronto. E outra, e se ela não aparecesse e, na sorte, o circular 94, justo o que deixa a gente na porta da Vila, aparecesse? Melhor não arriscar. Vai com essa roupa, mesmo.
Cheguei ao local do encontro com antecedência de dez minutos. Sete e meia, nada de Jurema aparecer. Sete e trinta e cinco, nada. Sete e quarenta, vem vindo um ônibus. E era justamente o meu. Circular 94, o que me deixaria na frente da Vila. Dentro, um monte de gente com a camisa do Santos. Torcida unida, fase boa, contra o líder do campeonato, vínhamos de duas vitórias consecutivas, time jogando sem desfalques, jejum de títulos... A Jurema que me desculpasse, mas nem eu nem o Santos tínhamos culpa se ela não cumpria horários –apesar de aquele ser sua primeira atrasada comigo. Embarquei. Santos, sempre Santos.
O jogo foi difícil, como se previa. O adversário era duro, marcava bem e atacava com contundência. Até que houve um lançamento do lado esquerdo –o lado em que eu estava- que caiu justamente nos pés dele. Kazu. Ele dominou com o pé esquerdo, trouxe para o direito, deu um corte no marcador e bateu de primeira. Um a zero. Festa na Vila. Assumíamos a vice-liderança do campeonato. Não tinha para ninguém. Naquele ano, o caneco voltaria para a Baixada. Fim de jogo. Nos arredores do estádio, os torcedores gritavam; ‘chora, freguês: é gol do japonês!”. Santos, sempre Santos.
Fui caminhando até a praia, peguei o ônibus até a balsa. Atravessei o Atlântico a bordo da catraia e fui percorrendo a pé o caminho de casa, pensando no estádio lotado, na euforia da torcida, nos cantos, na vitória, no Kazu. E fui lembrando de outras coisas: do desemprego, da falta de dinheiro, do futuro incerto, e... da Jurema. E eis que, ao virar na primeira esquina, quem é que vejo, caminhando resoluta na minha direção? Pois é. A própria. Linda num vestidinho verde, provocante, decotado, justo, cabelos presos, olhinhos verdes destacados por um negócio que não sei se era sombra, rímel, enfim. Alcinhas deixando o ombro à mostra. Batom rosa. Sandalhinha de saltinho. Simpatiquinha. Mas um corpão. Foi direto:
- O que aconteceu?
- Te esperei, ué, você não apareceu...
- Mas me esperou a que horas?
- Sete e meia, a gente não marcou sete e meia? Esperei, e como você não apareceu, fui pro jogo.
- Mas eu cheguei às sete e vinte!
- Não é possível, Jureminha. Sete e vinte e cinco eu estava no ponto, te esperando!
-  Mas você ia me encontrar com essa roupa? Com roupa de futebol?
- Qual o problema, meu anjo (aquele vestidinho verde merecia o celestial chamamento)?
- Imaginei que, para sair comigo, você se arrumaria um pouco melhor.
- Espera um pouco. Em qual ponto você estava?
- O da farmácia, ué. O de sempre.
- Ah, então foi isso, Jureminha! A gente se desencontrou! Eu estava te esperando no outro ponto, o da padaria.
- E por que você não me avisou que desta vez você estaria me esperando num outro lugar?
- Avisei, meu bem. Você que não prestou atenção.
Primeira –e única- mentirinha alvinegra da noite.
Ela me explicou que saiu perguntando para as pessoas que encontrava pela rua onde ficava o endereço que trazia na agenda –que era o meu. Foram indicando, indicando,m ela acanou não achando, desistiu e acabamos topando um com o outro ao acaso, ali na esquina, ambos voltando para casa, ela furiosa e agora vitoriosa, eu vitorioso e agora sem saber onde enfiar a cara.
Jurema insistiu para que, em função do adiantado da hora (quase meia-noite), eu a acompanhasse na volta até sua residência.  Numa situação daquelas, não tinha como recusar. Além do quê, podia até ser que o assunto que ela tanto queria tratar comigo fosse, finalmente, aquele que eu tanto esperava que fosse logo acontecer, e ela, decidida, passaria por cima da raiva que certamente sentia, e que seu desejo por mim fosse mais forte que um mal-entendidozinho futebolístico. Se fosse isso, seria a glória. Teria, na mesma noite, a liderança do campeonato e Jurema todinha em meus braços.
Fomos andando de volta até a balsa –que, àquela hora, só saía de hora em hora, assim como os ônibus. Quando quase duas horas depois, já na frente do prédio em que morava, ela resolveu desenvolver para mim uma verdadeira aula de literatura espanhola e gramática da língua portuguesa –das quais eu não entendia bulhufas. Num dos raros intervalos, arrisquei:
- Mas o que é que você queria falar comigo, afinal, de tão urgente?
- Depois eu falo. Mas então, o Unamuno...
Não falou. Ela me liberou às quatro da manhã, com a garganta seca de sede, com fome, dor de cabeça, sem me dar nem um beijinho e sem nem um tostão no bolso pra pagar a passagem de volta –o que nem adiantaria muito, porque àquela hora os ônibus já não circulavam mais. Caminhei do canal dois até a balsa, o que deve dar aí, por baixo, uns cinco quilômetros, mais ou menos. Quando cheguei em casa, já amanhecia para os lados do cais.
Na semana seguinte, Kazu torceu o joelho esquerdo –logo o esquerdo-  e o Santos ainda ganhou uma ou duas partidas até ser desclassificado na semi-final.
Jurema, ainda vi uma única vez, na praia, na garupa de uma moto conduzida por um garotão que, por sinal, parecia muito bem vestido. E que não trajava –pelo menos não parecia- o sagrado manto alvi-negro.

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