foto: prof-guilherme.capesp.org
Benilson Toniolo
Jurema era loura, alta, olhos
verdes e um pouco feia. Simpática, como se diz. Mas tinha um corpão pra ninguém
botar defeito. Mulherão estava ali. Recém formada no curso técnico de tradutor
e intérprete, lecionava espanhol e português numa escola municipal. E tinha um
corpão, é bom que se repita. Uh.
Conheci-a numa exposição de arte.
Desempregado, inadimplente e sem dinheiro, mas simpatiquinho e metido a
intelectual, eu comparecia a todos os eventos para os quais era e não era
convidado: lançamentos de livros, aberturas de exposições, palestras, instalações,
e ficava ali, bestando pra ver se conhecia alguém interessado em ler meus
desinteressantes poemas, me dar um emprego ou, no caso de uma mulher bonita,
sair para dar um passeiozinho no calçadão da praia.
Alguém nos apresentou, uma
risadinha aqui, outra ali, e começamos a sair. A coisa andava muito bem,
progressos relevantes a cada saída indicavam que faltava pouco para nos
conhecermos mais intimamente, por assim dizer. Como diria o velho Gonzagão, “mulher
querendo é bom demais”. E Jurema dava claros sinais de que, sim, ela queria.
Faltava pouco, portanto. Se emprego estava difícil e minha poesia não
desempacava, pelo menos no amor eu estava me dando bem. Feia, não. Arrumadinha.
E tinha um corpão.
Só havia uma coisa que me
empolgava mais do que o namoro com a Jurema: a boa fase do time do Santos no
Campeonato Paulista daquele ano. Vínhamos há oito anos sem ganhar um
campeonatozinho sequer, uma seca danada –que duraria mais alguns anos, e justo
naquele ano o time parece que embalava. A zaga era pouco confiável, com Camilo
e Pedro Paulo, ambos revelados na base; os laterais marcavam e apoiavam com eficiência
(Ïndio na direita e Marcelo Veiga na esquerda), o meio campo não comprometia e,
no ataque, Almir e Paulinho McLaren barbarizavam as fortes defesas adversárias
(a saber: XV de Jaú, Ferroviária de Araraquara, Francana e América de Rio
Preto, entre outros), mas o maior destaque era na ponta-esquerda: um improvável
japonês chamado Kazu. Japonês de verdade, do Japão mesmo, que sabe-se lá como
acabou desembarcando na Vila Belmiro por um desses mistérios que só o futebol
explica (ou não explica).
Kazu de vez em quando jogava
muito. Baixinho, pernas grossas, driblador, fazia tudo olhando para baixo.
Corria, passava, lançava, finalizava. Chutava de esquerda com efeito. Estava
sempre sorrindo. O lateral vinha, dava uma sarrafada no joelho dele e o Kazu
levantava e sorria. O goleiro saía na bola, dava um cascudo na cabeça dele e o
Kazu sorria. Aquele jeito japonês. Faltava apertar a mão do adversário e
agradecer pela porrada. Tinha feito dois gols decisivos nos últimos dois jogos –o
que para nós, na fase em que o time andava, já era quase o caso de fazer um
apelo ao Presidente da República para naturalizar o cara e mandar pra Seleção
Brasileira.
Numa daquelas situações que só o
destino e os responsáveis pela tabela da Federação Paulista de Futebol podem
produzir, o próximo jogo seria em casa, contra o Guarani de Campinas, em plena
segunda-feira à noite. Dia de jogo, todo mundo sabe, é quarta, quinta, sábado e
domingo. Aquele jogo foi marcado para uma noite de segunda. Vendi uns livros num
sebo (Victor Hugo, Jorge Amado e outros de menor calibre) do Centro da Cidade,
reservei o dinheiro do ônibus e do ingresso e comecei a me preparar para sentar
na arquibancada da Vila pra ver o Peixe ganhar do time que, naquele momento, era
um dos líderes di campeonato. Era noite de Santos, era noite de Kazu, era noite
de Vila lotada.
Até tinha me esquecido da Jurema.
Prioridade é prioridade, meu amigo. Entre o Santos e ela, a Jurema que
esperasse. O time naquela fase, e eu ia perder por causa de mulher? Tudo bem,
tinha um corpão. Mas era o Santos. E na Vila. E era o Kazu.
Santos é muito quente, todo mundo
sabe. A gente fica meio à vontade. Daí que, para o embate daquela noite, a indumentária
escolhida foi a bermuda única, a camisa do Rei –a dez- e chinelos. Porque facilita
na hora de comemorar. Chinelo não tem
cadarço. Vou saindo de casa, o coração já dando os pulos de quem vai ao
encontro da mulher amada –no caso, o Santos- e o telefone toca. Era Jurema, toda
chorosa. Que tinha que falar comigo. Que não era nada grave, mas que tinha que
ser naquele dia. Ou melhor, naquela noite. Que ia me encontrar, se fosse o caso,
onde eu estivesse. Que isso. Que aquilo. Que aquilo outro. Que era importante. ‘Mas
tem que ser hoje, Jureminha?’. Tinha. Fazer o quê? E ela falava com uma vozinha tão triste,
coitada, que sequer me ocorreu comentar sobre o jogo.
Marcamos para as sete e meia, no
ponto de ônibus defronte à balsa. Pensei: ‘pode ser que ela me dê o cano. Não
venha, desista, falte ao encontro’. Uma luz de esperança brotou em meu coração.
‘Se ela não aparecer, vou pro jogo!”. Por isso nem troquei de roupa. Camisa do
Santos –a branca, claro, imaculada, chinelo e bermuda. Mulher, quando ama, não
liga para essa besteira de roupa. Ela ama e pronto. E outra, e se ela não aparecesse
e, na sorte, o circular 94, justo o que deixa a gente na porta da Vila,
aparecesse? Melhor não arriscar. Vai com essa roupa, mesmo.
Cheguei ao local do encontro com antecedência
de dez minutos. Sete e meia, nada de Jurema aparecer. Sete e trinta e cinco, nada.
Sete e quarenta, vem vindo um ônibus. E era justamente o meu. Circular 94, o
que me deixaria na frente da Vila. Dentro, um monte de gente com a camisa do
Santos. Torcida unida, fase boa, contra o líder do campeonato, vínhamos de duas
vitórias consecutivas, time jogando sem desfalques, jejum de títulos... A Jurema
que me desculpasse, mas nem eu nem o Santos tínhamos culpa se ela não cumpria
horários –apesar de aquele ser sua primeira atrasada comigo. Embarquei. Santos,
sempre Santos.
O jogo foi difícil, como se
previa. O adversário era duro, marcava bem e atacava com contundência. Até que
houve um lançamento do lado esquerdo –o lado em que eu estava- que caiu
justamente nos pés dele. Kazu. Ele dominou com o pé esquerdo, trouxe para o
direito, deu um corte no marcador e bateu de primeira. Um a zero. Festa na
Vila. Assumíamos a vice-liderança do campeonato. Não tinha para ninguém.
Naquele ano, o caneco voltaria para a Baixada. Fim de jogo. Nos arredores do
estádio, os torcedores gritavam; ‘chora, freguês: é gol do japonês!”. Santos,
sempre Santos.
Fui caminhando até a praia,
peguei o ônibus até a balsa. Atravessei o Atlântico a bordo da catraia e fui percorrendo
a pé o caminho de casa, pensando no estádio lotado, na euforia da torcida, nos
cantos, na vitória, no Kazu. E fui lembrando de outras coisas: do desemprego,
da falta de dinheiro, do futuro incerto, e... da Jurema. E eis que, ao virar na
primeira esquina, quem é que vejo, caminhando resoluta na minha direção? Pois é.
A própria. Linda num vestidinho verde, provocante, decotado, justo, cabelos
presos, olhinhos verdes destacados por um negócio que não sei se era sombra,
rímel, enfim. Alcinhas deixando o ombro à mostra. Batom rosa. Sandalhinha de
saltinho. Simpatiquinha. Mas um corpão. Foi direto:
- O que aconteceu?
- Te esperei, ué, você não
apareceu...
- Mas me esperou a que horas?
- Sete e meia, a gente não marcou
sete e meia? Esperei, e como você não apareceu, fui pro jogo.
- Mas eu cheguei às sete e vinte!
- Não é possível, Jureminha. Sete
e vinte e cinco eu estava no ponto, te esperando!
-
Mas você ia me encontrar com essa roupa? Com roupa de futebol?
- Qual o problema, meu anjo
(aquele vestidinho verde merecia o celestial chamamento)?
- Imaginei que, para sair comigo,
você se arrumaria um pouco melhor.
- Espera um pouco. Em qual ponto
você estava?
- O da farmácia, ué. O de sempre.
- Ah, então foi isso, Jureminha!
A gente se desencontrou! Eu estava te esperando no outro ponto, o da padaria.
- E por que você não me avisou
que desta vez você estaria me esperando num outro lugar?
- Avisei, meu bem. Você que não
prestou atenção.
Primeira –e única- mentirinha
alvinegra da noite.
Ela me explicou que saiu
perguntando para as pessoas que encontrava pela rua onde ficava o endereço que trazia
na agenda –que era o meu. Foram indicando, indicando,m ela acanou não achando,
desistiu e acabamos topando um com o outro ao acaso, ali na esquina, ambos
voltando para casa, ela furiosa e agora vitoriosa, eu vitorioso e agora sem
saber onde enfiar a cara.
Jurema insistiu para que, em
função do adiantado da hora (quase meia-noite), eu a acompanhasse na volta até
sua residência. Numa situação daquelas, não
tinha como recusar. Além do quê, podia até ser que o assunto que ela tanto
queria tratar comigo fosse, finalmente, aquele que eu tanto esperava que fosse
logo acontecer, e ela, decidida, passaria por cima da raiva que certamente
sentia, e que seu desejo por mim fosse mais forte que um mal-entendidozinho
futebolístico. Se fosse isso, seria a glória. Teria, na mesma noite, a liderança
do campeonato e Jurema todinha em meus braços.
Fomos andando de volta até a
balsa –que, àquela hora, só saía de hora em hora, assim como os ônibus. Quando
quase duas horas depois, já na frente do prédio em que morava, ela resolveu
desenvolver para mim uma verdadeira aula de literatura espanhola e gramática da
língua portuguesa –das quais eu não entendia bulhufas. Num dos raros
intervalos, arrisquei:
- Mas o que é que você queria
falar comigo, afinal, de tão urgente?
- Depois eu falo. Mas então, o
Unamuno...
Não falou. Ela me liberou às
quatro da manhã, com a garganta seca de sede, com fome, dor de cabeça, sem me
dar nem um beijinho e sem nem um tostão no bolso pra pagar a passagem de volta –o
que nem adiantaria muito, porque àquela hora os ônibus já não circulavam mais.
Caminhei do canal dois até a balsa, o que deve dar aí, por baixo, uns cinco
quilômetros, mais ou menos. Quando cheguei em casa, já amanhecia para os lados
do cais.
Na semana seguinte, Kazu torceu o
joelho esquerdo –logo o esquerdo- e o
Santos ainda ganhou uma ou duas partidas até ser desclassificado na semi-final.
Jurema, ainda vi uma única vez,
na praia, na garupa de uma moto conduzida por um garotão que, por sinal,
parecia muito bem vestido. E que não trajava –pelo menos não parecia- o sagrado
manto alvi-negro.
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