sábado, 26 de abril de 2014

A HORA DE SEO TOLENTINO


Benilson Toniolo

O caso se deu nas Alagoas, meados dos anos 1940. Aos setenta e seis anos, vô Tolentino começou a sentir o peso da idade. Não nos braços e nas pernas, no coração, na vista e nos ouvidos, que por ali estava tudo certo. O vô continuava firme e forte. O problema era, digamos assim, mais centralizado. A potência não era mais a mesma. O negócio andava esquisito. Aquela fraqueza toda. Vô Tolentino nunca tinha ouvido falar que isso acontece com todo homem. Nunca tinham lhe explicado nada. Estivera internado somente uma vez na vida, pra retirar da perna uma bala do revólver disparado, sem querer, pelo irmão Euclides, quando ambos ainda eram moços e Tolentino ensinava o mano a atirar. Mas nem naquela ocasião, nem em outra qualquer, alguém tinha lhe dito que o negócio ia, simplesmente, parar de enrijecer. De ficar duro. Pronto para a batalha.
Aquilo não entrava na cabeça iletrada e sertaneja do vô. Homem é homem desde que nasce até quando morre. Não tem esse negócio de ser meio homem. Tinha tido nove filhos, dezessete netos, três bisnetos. Saíra tudo dele, do seu corpo, dos seus bagos. Da sua força de homem sertanejo. Como é que agora isso acabava? Só tinha uma explicação. Dona Santinha. A mulher. A esposa que se entregou a ele aos doze anos de idade. A mulher que ele raptara da casa do sogro e que se deitava com ele há sessenta anos. O problema era ela. Só podia ser. Desde que deixara de freqüentar os cabarés de raparigas, vô Tino só fazia as coisas com a mulher. E aquela esquisitice toda que com ele se passava só podia ser culpa dela, que não estava se esforçando. Que não ajudava. Que não se preocupava em satisfazer o marido. O vô ficou bravo com a constatação.
Todas as noites, tentava e não acontecia nada. Irritava-se. Ameaçava dar em dona Santinha. Acusava, praguejava, xingava com nomes feios. Dizia que ia voltar ao cabaré se ela não ajudasse. Dona Santinha chorava. Não tinha mais idade para esse sofrimento. Setenta e dois anos. Queria descansar e o marido aporrinhando a noite toda. Um dia, no auge da danação, vô Tino empurrou a mulher da cama.
Dona Santinha procurou os filhos. Estava saindo de casa. Não agüentava mais. Mas quem é que ia falar com o pai? Homem bruto, sem instrução, homem da roça, não ia entender nada. Combinaram de levá-lo ao médico. Mas, antes, fizeram uma visita ao doutor, para antecipar o assunto e fazer com que o pai entendesse de vez o que é que se passava.
Chegou o dia da consulta. Os dois filhos mais velhos acompanhavam vô Tino. O médico fazia as perguntas de praxe. Sente dores, seu Tolentino? Que não. Incômodo? Que não. Zonzeira, vertigem, sono em demasia, cansaço, vontade de morrer? Que não. Tremedeira nas pernas, falta de apetite, esquecimentos, pesadelos? Que não, que não, que não.
Para surpresa geral, quem introduziu o assunto da impotência foi o velho. Contou tudo. Até de ter derrubado a esposa da cama. Estava arrependido e a ponto de enlouquecer com aquilo. O que é que está acontecendo comigo, doutor?
O médico explicou. Seu Tino não entendia. O médico disse, redisse, falou, explicou, rabiscou num papel, desenhou, e nada do homem entender. Não queria entender. Não aceitava. Aquilo era coisa nova, de medicina nova, que alguém inventou para prejudicar os outros. Que não. Que não. Que não.
Uma hora de consulta e nada. Até que o doutor achou de fazer uma proposta inusitada. Pediu aos meninos pra que saíssem da sala. Que esperassem lá fora. Ôxe, que diabo, pensaram os dois. Saíram. Ficaram só o médico e seu paciente queixoso. Seo Tino, o senhor vai em cabaré? Já fui muito, doutor. E lá o senhor teve este problema? Ôxe. Nunca não, doutor. Faz tempo que não apareço por lá. E por que o senhor não volta lá? Ié? Faz o seguinte: o senhor volta lá e pega uma menina bem bacana, do jeito que o senhor gosta. Mas não conte nada a ela de seu problema. Capriche na rapariga. Tem que ser do jeito que o senhor achar bom. Se quiser, tome umas duas canas antes, pra descontrair. E tenta com ela. Se der certo e o negócio sair direito, ao sim poder que o problema até seja com sua patroa. Eita, peste. E se não der certo, doutor? Aí, seu Tolentino, não tem jeito. O senhor vai ter que procurar umas ervas aí pra ver se o negócio levanta.
Os filhos voltaram à sala, deram-se as despedidas, os agradecimentos, o pagamento da consulta. No caminho não tocaram no assunto, nem mesmo perguntaram do que havia tratado com o doutor quando tiveram que deixá-los sozinhos. Se o pai não contava, era porque ninguém tinha que saber. Tomaram o café preparado por dona Santinha, deixaram o homem  em casa e voltaram com a sensação da missão cumprida.

Na noite de sexta-feira vô Tolentino banhou-se, vestiu-se, aperfumou-se e saiu-se em direção à rua das meretrizes. O que se passou lá dentro ninguém sabe. Há quem diga que viram o homem sair, três horas depois de ter entrado, cabisbaixo e sem destino. Não voltou para casa, e passou a noite sentado num banco da estação dos barcos, olhando para o céu, para a cidade atrás de si e para o rio. E, pelo que consta, foi visto por mais de uma vez enxugando as lágrimas dos olhos. Assim que amanheceu, levantou-se e caminhou em direção à sua casa e aos braços sempre abertos de sua adorada Santinha.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

OS PALPITES DO ZÉ


Benilson Toniolo

Vinha eu da feira de sábado a cortar caminho por dentro do Mercado, quando avistei ali no Pesquinha, tomando um café e assuntando o acervo do Livro Livre o José Soromoço, carioca de boa cepa, filho de pai português e recém-chegado a Campos do Jordão. José é torcedor fiel da querida e estropiada –com o perdão do adjetivo, mas é bem isso mesmo- Portuguesa de Desportos. E do não menos estropiado e sempre glorioso Clube de Regatas Vasco da Gama.
E como as sacolas estavam pesadas e eu estava de ônibus, parei para uma prosa com o José. E sapequei: e a Copa, Zé? Você acha que a Seleção leva essa?
- Olha, eu até gostaria muito, mas não vai dar pra gente não.  
Estranhei aquele pessimismo todo. Não que o José fosse um exemplo de otimista, mas daí a tirar nosso escrete da parada logo assim, na primeira abordagem, era um pouco demais. Devia ser a má fase dos seus times do coração que estava deixando meu amigo portuga tão aborrecido. Pedi explicações, e ele as deu:
- Pra começar, não temos goleiro. Esse Julio Cesar aí já deu o que tinha que dar. Saiu da Inter de Milão porque já não dava mais no couro. O sujeito joga no campeonato canadense, onde é que já se viu uma coisa dessas?
Nem precisei perguntar quem o José levaria para ser nosso ‘guarda-redes’.
- O Fábio do Cruzeiro, o Vitor do Atlético Mineiro, o Fernando Prass do Palestra. Qualquer um, menos o que vai.
A coisa ia mal. Nem o Jefferson do Botafogo?
- Isso aí não é goleiro de seleção. Pra esquentar banco, serve até o Rogério Ceni. Que aliás até poderia ser convocado para receber uma espécie de homenagem, digamos, pelo conjunto da obra.
Mas a zaga inspira confiança, você não acha?
- Não, não acho. Tem que ter zagueiro botinudo. Os dois meninos, o cabeludo e aquele que era do Fluminense, só querem jogar bonito, matar no peito. Zaga tem que ter um zagueiro técnico e outro pra dar porrada. Nesse time ninguém dá porrada. É tudo Luís Pereira.
Mas os laterais são bons...
- São. Quer dizer, às vezes. Apoiam bem e têm velocidade. Mas são mascarados. Estão mais preocupados com o guarda-roupas e com a qualidade da água mineral que passam no cabelo do que em ganhar a Copa.
Aquele papo do portuga ia me deixando com a pulga atrás da orelha. Tem o Hulk, Zé.
- Nesse eu boto fé. Tem força, velocidade. Só que é grosso. Tecnicamente muito pobre.
Mas o Neymar...
- Nem me fale. Copa das Confederações é uma coisa, Copa do Mundo é outra. E está machucado. E o pai dele falou nessa semana que o menino está ‘triste’. Me diga você uma coisa. Jogador de futebol tem motivos para estar triste? Só em caso de queda de avião, doença contagiosa ou morte em família. O Neymar, triste?
Ah, Zé, mas o Felipão...
- Ultrapassado. O Felipão não é o mesmo de doze anos atrás, quando ganhou o penta. Ninguém é o mesmo depois de doze anos. É o mesmo discurso, os mesmos métodos e a mesma forma de pensar de 2002.
Guardei o trunfo para o final: a torcida brasileira.
- Torcida não ganha jogo. Ela reage de acordo com o que o time faz em campo. Torcedor de Copa, que tem grana pra pagar uma fortuna por um ingresso, não é igual ao torcedor de todo dia. Torcida de seleção vai pra ver o jogo. Torcer é ocasional. Se o time vai bem, ela aplaude. Se não, ela se cala. Estou mais ansioso para ver a hora de tocar o hino nacional. Aí vai ser lindo. Mas depois, é só um jogo de futebol.
Bom, se o Brasil não leva o caneco, então...
- O Brasil, na minha opinião, chega em terceiro. Vai cair na semi, e provavelmente nos pênaltis. Meus palpites para o título, pela ordem: Alemanha, Espanha e Argentina. O fiasco deve ser a Itália. A surpresa, o Japão. E pode dar uma zebra...
Que zebra, Zé?
- Ah, você vai ver só... Se a juizada deixar, você vai ver só...

E foi saindo, dando um tchauzinho e ajeitando a boina sobre a calva. Uma figura, esse Zé. Gente boa, mas deve estar meio chateado por causa dos problemas da sua Lusinha com a CBF, e quer descontar na nossa seleção canarinho. Agora, posso até estar enganado, mas aquele sorrisinho de despedida dele me pareceu estar meio colorido, meio esverdeado, meio encarnado...

LIÇÕES DOS QUE SE FORAM

                                                                    Benilson Toniolo

Numa grande empresa em que trabalhei, um dos funcionários faleceu de repente. Não consta que tivesse nenhum problema cardíaco, mas faleceu de um infarto fulminante. Pouco antes de iniciar-se o velório, sua filha nos pediu autorização para que ele fosse enterrado com o uniforme da empresa. Dizia ela que ele tinha muito orgulho de seu trabalho, e da empresa que o acolhera num momento de grande dificuldade profissional e financeira. Autorizamos, evidentemente. E a visão do nosso colega, já sem vida, envergando o uniforme de nossa empresa, levando no peito o nosso distintivo, emocionou a todos.
Nunca morri de amores por Luciano do Valle. Fiz parte dos que riram dele nos últimos anos quando, já doente, ele trocava os nomes dos jogadores e dos times nas transmissões. Apesar disso, faço parte da geração que cresceu ouvindo sua voz inconfundível a narrar os jogos, as partidas, as corridas, os gols, os pontos, os sets, as bandeiradas, as vitórias e as derrotas. Claro que sua morte me deixou, como a todos, consternado. A vida é assim. Com famosos e anônimos. Todos temos nossos prazo de validade. Uns mais curtos, outros mais compridos.
Luciano foi muito importante não somente para o jornalismo esportivo, mas principalmente para o esporte brasileiro. Graças a ele, somos o país do vôlei. E passamos a prestar mais atenção no basquete. Quem poderia imaginar que teríamos, em plena tarde de domingo, um campeonato de sinuca transmitido ao vivo, em rede nacional? E o improvável, mas possível, Adilson Maguila Rodrigues, o servente de pedreiro sergipano tranformado em ídolo do boxe? O maior, talvez, depois de Éder Jofre. Devemos tudo isso, sim, a Luciano do Valle -entre outros momentos mágicos de alegria e da emoção que só o esporte pode proporcionar.
Em meio ao turbilhão de emoções que nos atinge sempre que um passamento desta dimensão acontece, e com tamanha carga de dramaticidade, uma imagem me chamou a atenção: no caixão, Luciano do Valle estava vestido com o paletó de trabalho, com o distintivo da TV Bandeirantes. Jazente no esquife, cercado pela família, pelos amigos e admiradores, ele levava no peito o emblema da empresa para a qual trabalhava. Não consta que Luciano pudesse ter qualquer tipo de problema com seu guarda-roupa. Muito pelo contrário. Roupa é o que não devia faltar em sua casa, dado tratar-se de homem público sempre às voltas com viagens, cerimônias, eventos e homenagens. Então, por qual motivo Luciano escolheu –ou escolheram para ele- justamente o uniforme da empresa onde trabalhava no momento de sua despedida?
O motivo, presumo, talvez seja o mesmo que levou aquele humilde colaborador a desejar ser enterrado com o uniforme de nossa empresa: o orgulho de pertencer. O orgulho de ser. O orgulho de fazer parte. A identificação com a marca que lhes aprouve o sustento, seu e da família, o reconhecimento e a gratidão por uma organização cujos valores e ideais, provavelmente, sejam os mesmos das pessoas que, simplesmente, cumpriram seu ciclo e deixam de existir. É esta a imagem que quiseram deixar: a de pessoas que dedicaram suas vidas ao trabalho. Bonita mensagem.
Cada um se identifica com o que gosta, com aquilo que lhe provoca sentimentos e emoções que se sobrepõem ao ordinário.  Escolher deixar, como última imagem, seu corpo envolvido com o uniforme da empresa que por último lhe deu o sustento é uma grande demonstração de probidade que emociona e nos faz repensar em certos valores morais, que parecem muitas vezes estar se tornando cada vez mais raros.

Pelo menos para mim, a lição deixada pelo famoso jornalista é a mesma deixada pelo humilde porteiro. A de que o trabalho, mais do que um dever, é um direito do homem de bem que passa a vida a lutar, com a força de seus braços e da sua inteligência, por uma sobrevivência digna e honesta.

terça-feira, 22 de abril de 2014

ESCRITOS DO VINTE E UM DE ABRIL DE DOIS MIL E QUATORZE


Benilson Toniolo


- “Anatomia de Uma Maracutaia” é o titulo de um pequeno texto de Elio Gaspari na Folha de ontem. Antes de começar a leitura, matutei: qual será o assunto? Sim, porque tanto podia tratar-se desde o neo mensalão tucano, até a já quase esquecida versão petista, passando ainda pelas estripulias da OGX, pelas reações do Parlamento Nacional com doleiros no cárcere, a compra da refinaria de Pasadena, os rolos dos paulistas com a Alstom ou as sacanagens que marcam a preparação da Copa do Mundo. Mas me enganei. Elio, na verdade, discorre sobre o dispositivo da medida provisória 627, que aliviam as multas devidas pelos planos de saúde que negam aos clientes o atendimento contratado.
Muito brevemente deveremos ter um ‘dicionário de maracutaias’, onde nos encontraremos todos no afã de tentar entender o que se passa nas entranhas dos três poderes que balizam o funcionamento (ou o não-funcionamento) do Estado brasileiro.
 
- Meu artigo “Em Defesa dos Jornalistas” ainda vai me levar ao Nobel de Literatura. Já tem gente na internet mencionando minha “erudita cultura” ao criticar o que seria minha defesa à censura. Mal sabem que concluí o EM somente depois do curso técnico em Hotelaria, em 2006, e abandonei duas vezes a faculdade de Letras –ambas por falta de fundos para continuar pagando as mensalidades. De tal sorte que, o que sei, aprendi com os livros. Quanto à censura, lanço mão de meus conhecimentos eruditos para citar Zeca Pagodinho: ‘nunca vi, nem ouvi, só ouço falar’. Por mais que tivessem me avisado jamais imaginei que, depois de ser nomeado Secretário Municipal, um artigo meu renderia tanta atenção da parte de quem é contrário ao governo. Pode ser que seja algum equívoco na interpretação do que escrevi. Pode ser que eu não tenha sido claro o suficiente (meu estilo anda muito empolado, ultimamente). Pode ser. Mas, pelo que sinto, acho que é implicância, mesmo.


Há 29 anos era domingo e eu rezava pela recuperação do presidente Tancredo Neves. Os colegas da turma do primeiro colegial do Instituto Escolástica Rosa me botaram o apelido de ‘porta-voz’, porque todos os dias eu achava de atualizar a turma com as últimas notícias dadas pelo rádio sobre a saúde do presidente eleito pelo Congresso. Quando Antonio Britto deu a notícia por volta de 23h, eu já estava deitado, pronto para dormir, e chorei com o rosto escondido sob o lençol. No dia seguinte não houve aula, mas assim mesmo fui à escola –que estava vazia. Ainda assim entrei, subi as escadas, fui à sala de aula, sentei na minha cadeira e chorei sentido, de novo, sozinho, meu choro de catorze anos de idade. Tancredo ter morrido antes de assumir a Presidência era uma grande sacanagem do destino para com meu país. Ouvi gente caminhando no corredor e me recompus. Era o porteiro. ‘Que que tá fazendo aqui, moleque? Hoje não tem aula. Vai embora, vai". Voltei a pé para casa, para acompanhar pela tevê os funerais de Tancredo. Até hoje, o dia 21 de abril para mim se reveste de um sentimento misto de patriotismo, esperança e tristeza. E que, no fundo, é o mesmo sentimento que conservo com relação ao meu país.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

FELIZ PÁSCOA, BERNARDO


Benilson Toniolo

Neste domingo de Páscoa, penso em Bernardo.
Um pequeno brasileiro. De onze anos. Lindo. Um menino cuja mãe suicidou-se (pelo menos, é o que dizem) há quatro anos; um menino que reclamava o afeto dos pais –mais precisamente, do pai natural e da madrasta; um menino que gostava de pegar a meia-irmã, ainda bebê, no colo, mas que foi proibido de chegar perto da criança; um menino que procurou as autoridades para que seu problema familiar fosse resolvido –e que não foi atendido; um menino que, ao sair da escola, rumava para a casa de uma antiga amiga de sua falecida mãe, e lá brincava, fazia o dever de casa, descansava e era alimentado; um menino que orgulhosamente dizia que a profissão do pai era ‘salvar a vida das pessoas’ –e era mesmo, pois era médico; um menino que não aparecia nas fotos da família; um menino que não tinha sequer as chaves de sua própria casa, e que para entrar nela tinha que escalar um muro de quase dois metros de altura, conforme informou uma conhecida. Um menino como qualquer outro, um pequeno brasileiro cuja curtíssima vida foi tragicamente ceifada por aqueles que deveriam, justamente, defendê-lo e preparar-lhe a carne e o espírito para as rudezas e as maldades do mundo.
Como morreu Bernardo, aquele menino tão bonito que aparece nas fotos dos jornais e da tevê? Quem o matou? Difícil saber, e desnecessário saber. A única informação realmente importante nesta história é que o menino foi assassinado. Simples assim.
Neste domingo de Páscoa, penso em Bernardo. E em Isabella, e em Juan, e em João Hélio, e nos inúmeros brasileirinhos terrivelmente assassinados por quem deveria justamente cuidar deles –a família e o Estado.
Neste domingo de Páscoa do ano dois mil e quatorze, penso que o futuro de um país também pode ser medido pela forma com que nele são tratadas e cuidadas suas crianças. E a impressão que tenho é que  existem milhões de pequenos brasileiros que são literalmente despejados a cada dia para as ruas, pelas avenidas, pelas escolas. É como se os chutássemos de casa a cada manhã com um pontapé no traseiro e disséssemos: ‘tente voltar vivo’. E eles voltam. De um jeito ou de outro, eles acabam voltando.
A casa é o refrigério. Se dentro dela as nossas crianças não tiverem segurança, alimentação e afeto, elas simplesmente vão embora. Vão para outras casas. Vão para a rua. Aí, sim, elas não voltam. Nunca mais.
No caso do lindo Bernardo, foi diferente. Apesar da falta de afeto e atenção diária, ele sempre quis voltar para casa. A casa de seu pai. E encontrava a porta trancada. Pulava o muro, batia à porta, entrava. E sabe Deus o que encontrava lá dentro.
Neste domingo de Páscoa do ano de dois mil e quatorze, o rosto do lindo Bernardo insistentemente permanece em nossas mentes. Está presente durante as refeições, nas páginas do jornal, no sorriso de nossos filhos, nos cartazes de ovos de chocolate expostos exaustivamente nas vitrines das lojas. Bernardo é aquela menina que acena no carro que passa velozmente na avenida. Bernardo é o garoto com a camisa da seleção. Bernardo é o menino que faz birra e se atira no chão da loja de brinquedos. É o menino que não gosta de comer verduras. Bernardo é o filho do vizinho que chora desesperado porque não consegue defender com as luvas novas os chutes que o pai dá na bola de borracha –cada vez de um lado, só para irritar mais o menino. Bernardo é tudo isso. É dele o rosto exangue na cruz do calvário esperando para ser ressuscitado.
A justiça julgará rapidamente o caso –afinal, o apelo da mídia é altíssimo. Poucos assuntos são mais ‘ricos’ para a imprensa do que um menino assassinado pela própria família. Os suspeitos serão presos. O delegado ficará famoso e aparecerá na televisão. Psicólogos serão entrevistados. A casa da família será pichada. O rosto lindo do menino estampará as capas das revistas semanais. Até a próxima tragédia envolvendo um dos nossos pequenos brasileiros, mortos pela família ou pelo Estado. No momento, já deve ter alguém escrevendo um livro a respeito.  
A gente fica procurando Deus no meio disso tudo. E, independentemente das doutrinas confusas e geralmente ilógicas das religiões, nossa verdadeira esperança é que Bernardo esteja neste momento em algum lugar tranqüilo –talvez, sentado sobre um nuvem desenhada pelo Maurício de Sousa- de mãos dadas com a mãe, a celebrar, com seu sorriso lindo, o milagre do reencontro e da verdadeira ressurreição.
Não há muito o que dizer, como diria o poeta. No fim deste domingo de Páscoa, provavelmente desistiremos novamente de tentar entender certas coisas.

Feliz Páscoa, Bernardo. Que Deus te acolha e te faça dormir. 

domingo, 13 de abril de 2014

EM DEFESA DOS JORNALISTAS

Benilson Toniolo

Já contei esta história aqui, mas vale a pena relembrar. Quando eu era moleque e alguém me perguntava o que eu ia ser quando crescesse - e Deus sabe quantas vezes uma pessoa ouve isso ao longo da vida- eu dizia que queria ser professor, escritor ou jornalista. Invariavelmente alguém caçoava da resposta: ‘coitado, vai morrer de fome’. E como morrer de fome deve ser uma das formas mais terríveis de morrer, aquilo me aterrorizava. Acontece que já naquela época eu gostava muito de livro, de revista em quadrinhos, de desenhar e de escrever. Então, aquilo é o que me dava prazer. Logo, eu queria fazer aquilo pelo resto da vida. Natural.
Se deu certo ou não, é outra história. Escrevi meus livrinhos, tenho uma coluna num jornal local e ainda não desisti de ser professor. Quem sabe um dia?
Nessa toada, sucede que passei a nutrir, ao longo dos tempos, grande respeito pelos jornalistas. Aliás, numa análise bem rápida e superficial, arriscaria dizer aqui da fundamental importância da imprensa na denúncia dos grandes escândalos políticos no País nas últimas décadas. Graças ao trabalho dos jornalistas, políticos, empresários, atravessadores, lobbystas e outros componentes da diversificada fauna pública brasileira foram identificados e julgados. Se bem ou mal, é outra história. Mas foi graças ao trabalho desta classe que a população foi informada e pôde acompanhar o desdobramento de fatos obscuros até então desconhecidos da maior parte das pessoas.
No mundo todo jornalistas são ameaçados, intimidados, agredidos, massacrados e mortos simplesmente por fazerem seu trabalho. Jornalista só não morre mais do que policial. E ambos assumem este risco assim que se sentam para aprender seu ofício. Não dá pra dizer que não sabiam.
Jornalista não torce pra time nenhum e não milita em nenhum partido político. Deve ser neutro, imparcial e observar a tudo com olhos críticos e lente própria.
O fato de um jornalista entrevistar determinado político não significa que ele é a favor do que o entrevistado está dizendo.
O fato de um jornalista sorrir diante de um gol bonito não significa que ele torça para aquele time.
O fato de um jornalista ser eventualmente fotografado, em meio a um mar de outros profissionais de imprensa, durante a entrevista de um candidato à Presidência da República não quer dizer que ele vai votar, ou é simpático, àquele candidato.
Vejam o caso, por exemplo, do escritor Carlos Drummond de Andrade, que saiu de sua cidade natal, Itabira, para  o Rio de Janeiro, a então capital da República, convidado por seu amigo Gustavo Capanema que assumiria, na capital, o comando do ministério da Educação e nomearia o amigo como seu assessor. Corriam os anos da ditadura de Getúlio Vargas e, anos depois, surgiu a 'tese', torpe e injusta, de que Drummond havia servido à ditadura. Ora, o cargo ocupado pelo mineiro correspondia a de média chefia, e é bem possível que tenha se encontrado com o ditador gaúcho algumas poucas vezes e, assim mesmo, em eventos públicos. Ou seja, Carlos Druimmond de Andrade, nosso 'poeta maior', não serviu à ditadura, e sim durante. 
Acusar um jornalista de defender este ou aquele governo, ou candidato, pelo simples fato do profissional ter sido fotografado ao lado dele, e no cumprimento de suas funções, não chega a ser ignorância –porque ignorância tem conserto.
O que não tem conserto é mau-caratismo e má-fé. 

AH, OS TORCEDORES...


Benilson Toniolo

Quem pensa que torcedor de Copa do Mundo é igual ao torcedor diário, cotidiano, que acompanha seu time o ano inteiro, está equivocado. Apesar de o esporte ser o mesmo, ambos são muito diferentes.
Torcedor comum veste a camisa do time do coração, no mínimo, uma vez por semana.
Torcedor de Copa, só de quatro em quatro anos.

Torcedor comum assiste ao maior número possível de programas esportivos.
O de Copa, só sabe de alguma coisa pelo Jornal Nacional.

O comum calça, quando muito, um tênis usado –isso quando não é o chinelo de todo dia.
O de Copa compra um tênis novo com as cores da seleção brasileira.

O comum tem a tabela do campeonato que seu time disputa na ponta da língua – e mais a classificação, resultados que lhe interessam, tabela de artilheiros e contra quem precisa torcer.
O de Copa consulta a tabelinha que baixou no celular sempre que se lembra que futebol existe.

A última coisa que o torcedor comum pensa quando está indo para o estádio é se vai chover ou não.
O de Copa consulta a meteorologia e, na dúvida, compra capinhas de plástico para se proteger em caso de não conseguir ingressos para a área coberta.

A camisa do time que o torcedor comum usa, geralmente, está com algumas manchas: de cerveja, da gordura do churrasquinho de gato, do giz da sinuca, e amassada de tanto abraçar desconhecidos na hora do gol.
A do torcedor de Copa é geralmente comprada no shopping e aguarda na gaveta para ser usada no jogo de abertura, e nos outros jogos que virão.

O torcedor comum não suporta o Galvão Bueno e detona o Neto.
O de Copa canta a musiquinha da Globo e não sabe quem é o Neto.

O torcedor do dia-a-dia estremece sempre que, nas noites de quarta-feira em que a televisão não está transmitindo o jogo do seu time, surge a bolinha e o barulhinho avisando que ‘tem gol na rodada!’, e beira uma síncope quando o narrador anuncia que é ‘gol importante e que muda a classificação’.
O torcedor de Copa, ao ouvir o barulhinho, acha que é do celular de alguém avisando que chegou mensagem.

Torcedor comum torce pelo Brasil, sim, mas não vê a hora de a Copa acabar pra continuar o Campeonato Brasileiro.
Torcedor de Copa é capaz até de chorar se o Brasil for eliminado.

Torcedor comum parte do pressuposto de que todo juiz é ladrão.
Torcedor de Copa gosta de comentar cada lance do jogo com os presentes, como se só ele estivesse entendendo alguma coisa do que se passa no gramado.

Torcedor comum sabe de cor todas as musiquinhas e coreografias das organizadas.
O de Copa baixa no celular a música-tema da Coca-Cola.

Torcedor comum compra jornal às segundas e quintas –menos quando o time perde feio.
Torcedor de Copa dá uma passada rápida pela página de esportes, quando em geral já leu o jornal inteiro.

Torcedor de Copa acha que, se o Brasil perder a Copa, a Dilma perde a eleição.
Torcedor comum, em geral, não consegue estabelecer ligação entre uma coisa e outra –no que não deixa de estar certo –ou errado.

Ambos, entretanto, e em linhas gerais, torcem para a mesma coisa: que independente de Copa, ou de campeonatos regionais, ou nacionais, ou continentais, ou interplanetários, não é possível que um país dependa do resultado de um jogo de futebol para recuperar sua auto-estima e celebrar seu patriotismo.  

E concordam que, com Copa ou sem Copa, coisas muito erradas estão acontecendo e  precisam ser urgentemente esclarecidas e solucionadas.

Neste ponto, não importa como um e outro torçam: o que importa é agir para que chegue logo o dia em que não precisemos de um campeonato para lembramos que somos um País.

E que o futebol –que, no fundo é só um jogo, por mais apaixonante que seja- não tem nada a ver com isso.


FANATISMO DE OCASIÃO



Benilson Toniolo


Ninguém aguentava mais o fanatismo do Romildo por futebol. Era demais.
Entre outras coisas, ele praticamente não vestia outra roupa que não fosse a camisa do seu time. Qualquer que fosse a ocasião, ele sempre dava um jeito de usar alguma peça de roupa com o símbolo ou as cores do seu clube do coração. Era demais.
Romildo jogava futebol com os amigos sempre que podia –pelo menos, duas vezes por semana. Na praia, na rua de terra, na rua de asfalto, na quadra do colégio. Só lia as páginas de esportes. Assistia a todos os programas esportivos da tevê.  Seu assunto preferido, e o que ele mais dominava era, obviamente, o futebol. Enjoava. Tabelas de campeonatos eram esquecidas por ele em cima da mesa da cozinha. Ele anotava os resultados dos jogos, fazia prognósticos, somava e anotava os pontos dos clubes num papel para conferir com o jornal do dia seguinte.
Como todo fanático que se preze, Romildo tinha a sua tribo, cujos componentes pode até ser que não torcessem para o mesmo time uns dos outros, mas comungavam  da mesma paixão. Todos se reuniam na casa do seu líder – o Romildo, claro- para assistir aos jogos pela tevê nas tardes de domingo. Os encontros só não aconteciam nas noites de quarta-feira porque os jogos só começavam depois da novela, ou seja, às dez horas, e aí ficava tarde para o pessoal ir embora, e corria-se o risco de algum deles achar de dormir por lá mesmo. E ainda querer jantar. Dona Nica, mãe do Romildo, reclamava:
- Só me faltava essa.
A família já andava sem paciência com aquela fixação do Romildo por futebol. E, com o tempo, aquele passou a ser um assunto desagradável dentro de casa. De onde o Romildo tinha tirado aquilo? Ninguém na família ligava para isso, salvo um tio remoto e distante que, na juventude,  tinha sido zagueiro num time de várzea e hoje era funcionário público municipal. Romildo até discorria bem sobre, por exemplo, economia e a história recente do Brasil. Mas era só. Mãe, pai, irmãos, sobrinhos, cunhado, todos os que viviam sob o mesmo teto nas duas casas que compunham o terreno comentavam entre si, à boca pequena, que não tinha cabimento um sujeito daquela idade perder tanto tempo com futebol. Chegou ao cúmulo de o Romildo organizar um campeonato de futebol de botão entre as crianças da vizinhança que durou um domingo inteiro, e que ele chamou de ‘torneio início infantil’. Tudo bem que ele não jogou o campeonato, que teve troféu para o campeão, medalha para o vice, juiz, tabela e regulamento -só organizou, segundo ele, ‘a pedido da própria molecadinha’. Mas ninguém acreditava, e nem ouvia mais, o que o Romildo dizia quando o assunto era futebol.
Na verdade o que incomodava a todos, mas que ninguém assumia, é que o Romildo, há quase um ano, estava desempregado. Perdera o emprego num escritório de advocacia e não conseguira, até aquele momento, se recolocar. Não que não tentasse. Saía duas ou três vezes por semana percorrendo o comércio e escritórios do Centro atrás de uma oportunidade, mas não conseguia nada. É que ele só sabia trabalhar em escritório. Não aprendera mais nada. E, enquanto não estava procurando emprego, dedicava-se à sua paixão: o futebol.
Vai daí que um belo dia a Luciana, sobrinha mais nova do desempregado fanático e xodó da família, arrumou um novo namorado. Só que desta vez, ao contrário dos namoricos anteriores, parece que era sério. Ricardo Augusto, pelo que se sabia, era um belo, jovem e promissor engenheiro da Petrobrás, filho de um português dono de padaria. A novidade, para Romildo, nem era tão digna de atenção assim, não fosse um comentário que ele ouvira certa noite no jantar: Ricardo Augusto era corinthiano fanático. De perder a compostura quando alguém roubava –segundo ele- o Timão. Romildo, claro, não gostou. Um corinthiano freqüentando sua casa? E ainda fanático? Problema. Ah, sim. Romildo era santista.
Para apresentar oficialmente o ‘noivo’, como já era chamado, foi organizado um almoço em família. O que ninguém atentou foi que justamente aquele domingo era dia de Santos e Corinthians. Semi-final de campeonato brasileiro e com o Corinthians jogando em casa, com a vantagem do empate.
A coisa era séria. Romildo  tinha um problema, e algumas possibilidades para lidar com ele. Podia ficar em casa  e inevitavelmente arranjar uma saia justa com o futuro sobrinho –que até podia, quem sabe, arranjar-lhe um emprego, como disse a dona Nica. Podia abrir uma exceção e tentar fingir indiferença com a rivalidade e ser cortês somente naquele dia –o que era impossível. Podia pendurar a bandeira do seu time na parede da sala, já para ir intimidando o convidado logo na chegada, e mostrar quem ali afinal era o dono da casa. Podia ser o mais gentil dos gentis, cativando o inimigo –inimigo!- e fazendo-o entender que o futebol, antes de mais nada, é uma oportunidade de celebrar a amizade e a paz entre os homens. E podia, finalmente, ver o que é que ia dar. Afinal, era dia de semi-final. De Campeonato Brasileiro. Contra o Corinthians. O time do Ricardo Augusto. Aquele estúpido. Optou pela última possibilidade. Fosse o que Deus quisesse.
No domingo, Romildo levantou cedo, vestiu o manto sagrado –que era como ele chamava a camisa do time- e foi dar uma volta de bicicleta para ‘sentir o clima’ do clássico. Voltou quase na hora do almoço e não acreditou no que viu. Na parede da sala, bem acima do sofá-cama onde ele dormia, alguém teve a infeliz idéia de, para agradar ao ilustre e engenheiro visitante, pendurar uma bandeira do Corinthians. Romildo perdeu o chão. A vista escureceu, a mão formigou, um calafrio lhe percorreu a espinha de cima a baixo. Mas ficou quieto e resolveu agir. Sem sequer perguntar quem tinha sido o autor do execrável ato –certamente o cunhado, pai da noiva, que nem time tinha-, pegou a bandeira do Santos e, prego e martelo na mão, botou em cima da do eterno rival. Dona Nica viu aquilo, balançou a cabeça negativamente e foi tratar da lasanha no forno. Voltou:
- Rô, meu filho, não vai arranjar confusão com teu cunhado logo hoje. A sala tem quatro paredes. Ele já usou uma. Pega a tua bandeira e pendura na outra parede.  Não vai me estragar o domingo. Ninguém tem culpa das tuas manias.
Como todo fanático que se preze, Romildo a principio discordou e nem considerou pensar na proposta da mãe -mas serenou, pensou um pouco e viu que ela tinha razão. A sala ficou parecendo um estádio de futebol, com o detalhe que a bandeira dedicada ao visitante era cerca de 10 centímetros maior do que a do ‘dono’ da casa. Absurdo. Para Romildo, aquela situação era quase uma guerra. Uma afronta à sua pessoa, dentro de sua própria casa. Tudo por causa do Ricardo Augusto. Que, com um nome daqueles, ‘não sei não’.
Perto da uma da tarde, chegou o doutor Ricardo Augusto. Romildo postou-se na cozinha e  ficou ali, tenso, conferindo o movimento. A sobrinha correu a abrir o portão, ambos se abraçaram e ele pode vir o inimigo sorrindo resoluto pelo corredor do quintal, de mãos dadas com a noiva (que parecia tão pequenininha ao seu lado) em direção à porta da sala. Verdade seja dita: o cara era bonitão. Alto, cabelos encaracolados, sorriso de ator de novela, simpático. Seria uma histeria silenciosa quando as mulheres da casa o conhecessem. E um detalhe: vestia roupa normal. Nada do Corinthians. Camiseta bege, calça jeans, tênis, não fazia o tipo de fanático por futebol. Entrou, cumprimentou todo mundo, elogiou as plantas no quintal, a cor da parede da casa, a tranqüilidade da rua, por um segundo observou as bandeiras penduradas e nada disse, além das frases habituais de quem está sendo apresentado à família da namorada. Era a hora de Romildo entrar em cena. Estufou o peito –para o distintivo na camisa ficar evidente- e veio apresentar-se. Apertaram as mãos, o doutor sorria sempre e não pareceu dar a mínima, nem para o Romildo e muito menos para a camisa que ele usava. Dona Nica foi à cozinha buscar um copo de suco, os noivos sentaram-se de mãos dadas e Romildo, na poltrona à frente, tomou a dianteira do primeiro diálogo:
- Jogão hoje, hein, Ricardo?
O visitante não tinha ouvido, estava concentrado em conversar com a namorada.
- Como?
- Jogão hoje, hein? Santos e Corinthians.
- Ah, sim. Não sei, não acompanho muito futebol. Não tenho muito tempo, sabe? Mas deve ser um jogo bom, sim. Aliás, não precisa nem perguntar pra quem você vai torcer, né?
- É.
- Por mim, que vença o melhor.

Em seguida, o doutor Ricardo Augusto voltou-se para a namorada, beijou-lhe a testa e perguntou-lhe o que achava de irem tomar sorvete na praia, depois do almoço. ‘Bem na hora do jogo’, pensou Romildo, achando tudo muito estranho. E considerando seriamente a possibilidade de, quando ninguém estivesse olhando, retirar as bandeiras da parede.

terça-feira, 8 de abril de 2014

KUKA

Benilson Toniolo


A casa já tinha um cão de guarda, o Tóbi. Quando este completou três anos o dono da casa, achando que ele andava muito sozinho e ‘humanizado’ –já estava se vendo a hora de o Tóbi falar ‘bom-dia’ ao primeiro que abrisse a porta pela manhã-, arranjou-lhe companhia: um filhote a quem chamaram de Kuka.
Quando o pai anunciou a novidade em casa, o único a manifestar-se em contrário –pelo menos, foi o que pareceu- foi o caçula de doze anos, que protestou com veemência:
- Pô!
Até hoje não se sabe o que é que ele quis dizer com aquilo.
Kuka, enfim, chegou, e cedo constataram que era igual a todo filhote de cachorro. Foi vacinado, vermifugado, batizado, castrado e ganhou um quintal enorme, que era o da casa. No começo, Tóbi estranhou aquela coisa preta e gorducha aporrinhando-lhe a vida o dia todo e, por que não dizer, a noite toda também. Kuka subia-lhe nas orelhas, mordia-lhe o rabo, lambia-lhe a cara. Tóbi passou a expressar sua irritação emitindo um som que até então ninguém na casa jamais tinha ouvido. Algo como um gemido longo, um choro miúdo, uma indignação característica de quem teve seu espaço invadido e subtraído em grande parte, sem sequer ter sido consultado. Aos poucos, Kuka foi tomando conta do pedaço.
A família, por sua vez, ia se acostumando à, vamos dizer assim, juventude do animalzinho. Arrancava as toalhas do varal e arrastava pela grama, destruía os cadarços dos tênis, mordiscava a barra das calcas, mordia o calcanhar das pessoas, destruía chinelos, inutilizava cabos de vassoura, abocanhava passarinhos pequeninos e besouros, criava verdadeiros túneis nos canteiros de terra, exterminava as plantas. Ou seja, era um filhote normal e saudável.
Na primeira partida da final do campeonato daquele ano, o pai fez o que sempre se faz em casa –felizmente, quase todo ano: ia pendurar a bandeira do Santos do lado de fora da casa. Sinal de fidelidade, de fé e de esperança na nova conquista do clube do coração. Está certo que a bandeira estava já bem usada: fora adquirida após uma empolgante vitória num clássico no Morumbi, há quase vinte anos. Mas era a bandeira que havia, e que trazia em seu histórico anos de finais e de dedicação à causa alvinegra. Na vitória ou na derrota, lá estava ela. Na testeira da casa, na janela, na churrasqueira, no portão. A bandeira a dar seu testemunho, ano após ano. Com o Santos, onde e como ele estiver, é um dos nossos lemas.
Naquele ano, casa nova e pé direito alto, ficava difícil para o pai botar a bandeira no ponto mais alto da casa, que é o que, na teoria, manda o manual do torcedor fanático. Ele, então, optou por prendê-la com cinco pequenos pregos na sacada, na lateral da casa, que é onde batia menos vento e, portanto, seria menor o risco de ela sair voando pelo bairro. O problema é que, no local escolhido, pouca gente da rua podia perceber que no meio daquele pano branco e preto havia o distintivo do time. E o que é pior, do jeito que as coisas andavam, podiam até mesmo confundir com o distintivo de outro time, o maior rival, o... toc, toc, toc. O filho mais velho, também fanático, protestou:
- Pô!
Mas a bandeira lá ficou, e muito bem afixada nas grades da sacada.
Veio o primeiro jogo da grande final, e o time levou uma sapecada de dar dó: dois a zero, fora o baile, e jogando como mandante. A torcida acusou o golpe. Vaias no final do jogo, explicações do técnico, pequenas torcedoras apareceram na tevê numa desolação aparente e num choro inexplicável e precoce. Tinha a volta, no domingo seguinte, quando o time precisava ganhar de uma diferença de três gols para ficar com o título. Senão seria a vergonha, a tragédia, o fim do mundo.
Na casa, ninguém titubeou: apesar da derrota, a bandeira permaneceria onde estava por mais uma semana, num sinal de esperança na virada e fé na capacidade histórica do clube em superar-se e virar resultados desfavoráveis. Santos, o time da virada. Santos, o time do amor. Este, o nosso lema. Mais um.
Ao longo da semana, a expectativa foi crescendo, a  confiança também. A bandeira na sacada seguia firme em sua obrigação de representar a certeza da vitória.
Até que chegou o domingo do jogo. Todos levantaram da cama mais cedo do que o habitual, e quando o mais velho abriu a porta da sala para alimentar os cachorros, soltou um grito desesperado e alarmante, que arrancou da cama os que ainda nela estavam e assustou a mãe, que veio ao seu encontro com o coador pingando pela casa o resto do café que faltava passar. O menino repetiu o mesmo grito, cheio de indignação:
- Pô!
O que se viu foi um espetáculo terrível. A sacrossanta bandeira alvinegra totalmente destroçada, rasgada, mordida, jazia ao chão, e seu imaginário sangue escorria violentamente do corpo inerte, confundindo-se ao rubro da lajota do piso. Kuka havia, durante a noite, na falta do que fazer, arrancado o manto e simplesmente o dizimado, como se ele não passasse de um trapo qualquer, de um ordinário pedaço de pano sem função nenhuma a cumprir neste mundo.
Kuka olhava alheio a tudo  e, achando que aquele raro ajuntamento de pessoas à sua frente era motivo de festa, começou a querer brincar, no que foi imediatamente repelido pelos presentes. Tomou até um chega pra lá do caçula, que desta vez não disse nada.
A família se reuniu diante da mesa do café para resolver o que fazer. O pai propôs devolver o animalzinho, cujo crime merecia, sem dúvida, julgamento sumário e pena capital. A mãe foi contra. Os meninos olhavam para baixo e não se manifestaram, nem olharam para ninguém. Tinham, aparentemente, perdido o apetite para sempre. A menina do meio –eram três, os filhos- se manifestou pela primeira vez:
- Acabou a geléia?
Os restos do corpo sem vida da bandeira jaziam sobre a poltrona da sala, à espera da decisão do que fazer com o cão. Lá fora, Tóbi reclamava das brincadeiras sem propósito e inoportunas de Kuka.
Num rápido e democrático plebiscito, a resolução tomada foi a seguinte: se o time ganhasse o campeonato, Kuka ficava. Se perdesse,  teria sido muito provavelmente ela a grande responsável pela derrota, e não havia outro jeito: ela seria expulsa de casa.
Kuka acabou ficando, porque o time ganhou o jogo, mas perdeu nos pênaltis. Ganhou, mas não levou. Vice, portanto. E no momento em que o meia direita Paulinho se preparava para bater o último pênalti e dar a vitória ao time adversário, o pai deu uma olhadela, por acaso,  pela janela da sala, e viu que Kuka, decidido, tentava puxar a toalha de mesa do varal.

domingo, 6 de abril de 2014

JUREMA E O PONTA-ESQUERDA JAPONÊS

foto: prof-guilherme.capesp.org

Benilson Toniolo

Jurema era loura, alta, olhos verdes e um pouco feia. Simpática, como se diz. Mas tinha um corpão pra ninguém botar defeito. Mulherão estava ali. Recém formada no curso técnico de tradutor e intérprete, lecionava espanhol e português numa escola municipal. E tinha um corpão, é bom que se repita. Uh.
Conheci-a numa exposição de arte. Desempregado, inadimplente e sem dinheiro, mas simpatiquinho e metido a intelectual, eu comparecia a todos os eventos para os quais era e não era convidado: lançamentos de livros, aberturas de exposições, palestras, instalações, e ficava ali, bestando pra ver se conhecia alguém interessado em ler meus desinteressantes poemas, me dar um emprego ou, no caso de uma mulher bonita, sair para dar um passeiozinho no calçadão da praia.
Alguém nos apresentou, uma risadinha aqui, outra ali, e começamos a sair. A coisa andava muito bem, progressos relevantes a cada saída indicavam que faltava pouco para nos conhecermos mais intimamente, por assim dizer. Como diria o velho Gonzagão, “mulher querendo é bom demais”. E Jurema dava claros sinais de que, sim, ela queria. Faltava pouco, portanto. Se emprego estava difícil e minha poesia não desempacava, pelo menos no amor eu estava me dando bem. Feia, não. Arrumadinha. E tinha um corpão.
Só havia uma coisa que me empolgava mais do que o namoro com a Jurema: a boa fase do time do Santos no Campeonato Paulista daquele ano. Vínhamos há oito anos sem ganhar um campeonatozinho sequer, uma seca danada –que duraria mais alguns anos, e justo naquele ano o time parece que embalava. A zaga era pouco confiável, com Camilo e Pedro Paulo, ambos revelados na base; os laterais marcavam e apoiavam com eficiência (Ïndio na direita e Marcelo Veiga na esquerda), o meio campo não comprometia e, no ataque, Almir e Paulinho McLaren barbarizavam as fortes defesas adversárias (a saber: XV de Jaú, Ferroviária de Araraquara, Francana e América de Rio Preto, entre outros), mas o maior destaque era na ponta-esquerda: um improvável japonês chamado Kazu. Japonês de verdade, do Japão mesmo, que sabe-se lá como acabou desembarcando na Vila Belmiro por um desses mistérios que só o futebol explica (ou não explica).
Kazu de vez em quando jogava muito. Baixinho, pernas grossas, driblador, fazia tudo olhando para baixo. Corria, passava, lançava, finalizava. Chutava de esquerda com efeito. Estava sempre sorrindo. O lateral vinha, dava uma sarrafada no joelho dele e o Kazu levantava e sorria. O goleiro saía na bola, dava um cascudo na cabeça dele e o Kazu sorria. Aquele jeito japonês. Faltava apertar a mão do adversário e agradecer pela porrada. Tinha feito dois gols decisivos nos últimos dois jogos –o que para nós, na fase em que o time andava, já era quase o caso de fazer um apelo ao Presidente da República para naturalizar o cara e mandar pra Seleção Brasileira.
Numa daquelas situações que só o destino e os responsáveis pela tabela da Federação Paulista de Futebol podem produzir, o próximo jogo seria em casa, contra o Guarani de Campinas, em plena segunda-feira à noite. Dia de jogo, todo mundo sabe, é quarta, quinta, sábado e domingo. Aquele jogo foi marcado para uma noite de segunda. Vendi uns livros num sebo (Victor Hugo, Jorge Amado e outros de menor calibre) do Centro da Cidade, reservei o dinheiro do ônibus e do ingresso e comecei a me preparar para sentar na arquibancada da Vila pra ver o Peixe ganhar do time que, naquele momento, era um dos líderes di campeonato. Era noite de Santos, era noite de Kazu, era noite de Vila lotada.
Até tinha me esquecido da Jurema. Prioridade é prioridade, meu amigo. Entre o Santos e ela, a Jurema que esperasse. O time naquela fase, e eu ia perder por causa de mulher? Tudo bem, tinha um corpão. Mas era o Santos. E na Vila. E era o Kazu.
Santos é muito quente, todo mundo sabe. A gente fica meio à vontade. Daí que, para o embate daquela noite, a indumentária escolhida foi a bermuda única, a camisa do Rei –a dez- e chinelos. Porque facilita na hora de comemorar.  Chinelo não tem cadarço. Vou saindo de casa, o coração já dando os pulos de quem vai ao encontro da mulher amada –no caso, o Santos- e o telefone toca. Era Jurema, toda chorosa. Que tinha que falar comigo. Que não era nada grave, mas que tinha que ser naquele dia. Ou melhor, naquela noite. Que ia me encontrar, se fosse o caso, onde eu estivesse. Que isso. Que aquilo. Que aquilo outro. Que era importante. ‘Mas tem que ser hoje, Jureminha?’. Tinha. Fazer o quê?  E ela falava com uma vozinha tão triste, coitada, que sequer me ocorreu comentar sobre o jogo.
Marcamos para as sete e meia, no ponto de ônibus defronte à balsa. Pensei: ‘pode ser que ela me dê o cano. Não venha, desista, falte ao encontro’. Uma luz de esperança brotou em meu coração. ‘Se ela não aparecer, vou pro jogo!”. Por isso nem troquei de roupa. Camisa do Santos –a branca, claro, imaculada, chinelo e bermuda. Mulher, quando ama, não liga para essa besteira de roupa. Ela ama e pronto. E outra, e se ela não aparecesse e, na sorte, o circular 94, justo o que deixa a gente na porta da Vila, aparecesse? Melhor não arriscar. Vai com essa roupa, mesmo.
Cheguei ao local do encontro com antecedência de dez minutos. Sete e meia, nada de Jurema aparecer. Sete e trinta e cinco, nada. Sete e quarenta, vem vindo um ônibus. E era justamente o meu. Circular 94, o que me deixaria na frente da Vila. Dentro, um monte de gente com a camisa do Santos. Torcida unida, fase boa, contra o líder do campeonato, vínhamos de duas vitórias consecutivas, time jogando sem desfalques, jejum de títulos... A Jurema que me desculpasse, mas nem eu nem o Santos tínhamos culpa se ela não cumpria horários –apesar de aquele ser sua primeira atrasada comigo. Embarquei. Santos, sempre Santos.
O jogo foi difícil, como se previa. O adversário era duro, marcava bem e atacava com contundência. Até que houve um lançamento do lado esquerdo –o lado em que eu estava- que caiu justamente nos pés dele. Kazu. Ele dominou com o pé esquerdo, trouxe para o direito, deu um corte no marcador e bateu de primeira. Um a zero. Festa na Vila. Assumíamos a vice-liderança do campeonato. Não tinha para ninguém. Naquele ano, o caneco voltaria para a Baixada. Fim de jogo. Nos arredores do estádio, os torcedores gritavam; ‘chora, freguês: é gol do japonês!”. Santos, sempre Santos.
Fui caminhando até a praia, peguei o ônibus até a balsa. Atravessei o Atlântico a bordo da catraia e fui percorrendo a pé o caminho de casa, pensando no estádio lotado, na euforia da torcida, nos cantos, na vitória, no Kazu. E fui lembrando de outras coisas: do desemprego, da falta de dinheiro, do futuro incerto, e... da Jurema. E eis que, ao virar na primeira esquina, quem é que vejo, caminhando resoluta na minha direção? Pois é. A própria. Linda num vestidinho verde, provocante, decotado, justo, cabelos presos, olhinhos verdes destacados por um negócio que não sei se era sombra, rímel, enfim. Alcinhas deixando o ombro à mostra. Batom rosa. Sandalhinha de saltinho. Simpatiquinha. Mas um corpão. Foi direto:
- O que aconteceu?
- Te esperei, ué, você não apareceu...
- Mas me esperou a que horas?
- Sete e meia, a gente não marcou sete e meia? Esperei, e como você não apareceu, fui pro jogo.
- Mas eu cheguei às sete e vinte!
- Não é possível, Jureminha. Sete e vinte e cinco eu estava no ponto, te esperando!
-  Mas você ia me encontrar com essa roupa? Com roupa de futebol?
- Qual o problema, meu anjo (aquele vestidinho verde merecia o celestial chamamento)?
- Imaginei que, para sair comigo, você se arrumaria um pouco melhor.
- Espera um pouco. Em qual ponto você estava?
- O da farmácia, ué. O de sempre.
- Ah, então foi isso, Jureminha! A gente se desencontrou! Eu estava te esperando no outro ponto, o da padaria.
- E por que você não me avisou que desta vez você estaria me esperando num outro lugar?
- Avisei, meu bem. Você que não prestou atenção.
Primeira –e única- mentirinha alvinegra da noite.
Ela me explicou que saiu perguntando para as pessoas que encontrava pela rua onde ficava o endereço que trazia na agenda –que era o meu. Foram indicando, indicando,m ela acanou não achando, desistiu e acabamos topando um com o outro ao acaso, ali na esquina, ambos voltando para casa, ela furiosa e agora vitoriosa, eu vitorioso e agora sem saber onde enfiar a cara.
Jurema insistiu para que, em função do adiantado da hora (quase meia-noite), eu a acompanhasse na volta até sua residência.  Numa situação daquelas, não tinha como recusar. Além do quê, podia até ser que o assunto que ela tanto queria tratar comigo fosse, finalmente, aquele que eu tanto esperava que fosse logo acontecer, e ela, decidida, passaria por cima da raiva que certamente sentia, e que seu desejo por mim fosse mais forte que um mal-entendidozinho futebolístico. Se fosse isso, seria a glória. Teria, na mesma noite, a liderança do campeonato e Jurema todinha em meus braços.
Fomos andando de volta até a balsa –que, àquela hora, só saía de hora em hora, assim como os ônibus. Quando quase duas horas depois, já na frente do prédio em que morava, ela resolveu desenvolver para mim uma verdadeira aula de literatura espanhola e gramática da língua portuguesa –das quais eu não entendia bulhufas. Num dos raros intervalos, arrisquei:
- Mas o que é que você queria falar comigo, afinal, de tão urgente?
- Depois eu falo. Mas então, o Unamuno...
Não falou. Ela me liberou às quatro da manhã, com a garganta seca de sede, com fome, dor de cabeça, sem me dar nem um beijinho e sem nem um tostão no bolso pra pagar a passagem de volta –o que nem adiantaria muito, porque àquela hora os ônibus já não circulavam mais. Caminhei do canal dois até a balsa, o que deve dar aí, por baixo, uns cinco quilômetros, mais ou menos. Quando cheguei em casa, já amanhecia para os lados do cais.
Na semana seguinte, Kazu torceu o joelho esquerdo –logo o esquerdo-  e o Santos ainda ganhou uma ou duas partidas até ser desclassificado na semi-final.
Jurema, ainda vi uma única vez, na praia, na garupa de uma moto conduzida por um garotão que, por sinal, parecia muito bem vestido. E que não trajava –pelo menos não parecia- o sagrado manto alvi-negro.

ARTE E CIÊNCIA DE CATAR PINHÃO

                                                              foto: jairclopes.blogspot.com                                                              
Benilson Toniolo

Numa manhã de um domingo magistral de outono, sem sequer uma nuvenzinha no céu azulzíssimo, um esplendor que só o céu de Campos do Jordão é capaz de proporcionar, saímos, Simone e eu, a catar pinhão.
Paramos nas ruzinhas pouco movimentadas de Capivari, sacola na mão, a buscar os mais graúdos. Já foi mais fácil catar pinhão nesta Cidade. Hoje em dia, a concorrência dos que catam a semente para vender na avenida (aliás, como aumentou o número de vendedores de pinhão!) faz com que a gente tenha que contar ainda com um bocado de sorte para pegar uns poucos graúdos. Quer dizer, antigamente a gente concorria com os serelepes. Hoje, tem também os inúmeros vendedores. Mas, vá lá, tem pinhão pra todo mundo.
Enquanto exercitava aquele abaixa e levanta característico da operação, fiquei pensando e concluí que poucas manifestações sejam talvez mais jordanenses do que sair pra catar pinhão. Você já parou pra pensar em quantas gerações de famílias alimentaram –e se alimentam, e se alimentarão- o hábito de sair de casa para, simplesmente, juntar as sementes que as imponentes araucárias despejam solenemente sobre o doce solo desta Cidade? Trata-se quase de uma celebração, um momento de reencontro  com a terra, um ato de humildade em que reconhecemos a superioridade da natureza a noss dar prazer e nos saciar a fome e o desejo pelo alimento.
O jordanense ama a sua terra, e tudo o que dela provém.  Felizes os que reconhecem a generosidade do Criador em dotar Campos do Jordão de tudo o que há de mais belo e harmonioso. Campos do Jordão é um eterno hino de amor, e o simples ato de sair para catar pinhão pode ser considerado um gesto de respeito e gratidão por tudo de bom que nela existe.
Não há como não se emocionar com o contato que temos com a terra, a proximidade do mato, da grama, da árvore, o cheiro verde e fresco que nos atinge em cheio no peito, na boca, nos olhos, no nariz, a felicidade de vislumbrar alguns metros adiante um pinhão enorme, graúdo, apetitoso, que se oferece ao toque de nossos dedos como a mãe que oferece do próprio corpo o alimento aos seus filhos queridos.
Ainda mais em tempos como o que vivemos, quando a pressa, a pressão por resultados, o trabalho insano, as contas a pagar, as desavenças familiares e profissionais, as falsas amizades, a calúnia, a difamação, a má-fé, o desamor e o desrespeito parecem prevalecer entre as pessoas e querer destruir a cada dia nossos valores. Num mundo como o que vivemos hoje, um simples ato de aproximação com a natureza pode ter o condão de renovar nossas forças para a dureza do cotidiano.
Portanto, aí vai uma dica. Aproveite o outono para aprender a amar –ou amar de novo- Campos do Jordão. Se já a ama, ame mais ainda. Preste atenção na sua natureza, nos seus contornos, nas suas cores e formas. Deixe de olhar para baixo, e olha para cima. E, sobretudo, saia para catar pinhão numa manhã qualquer, ao lado da pessoa amada, e deixe que a generosidade das coisas simples e desburocratizadas tome lugar em seu coração jordanense.