Benilson Toniolo
Neste domingo de Páscoa, penso
em Bernardo.
Um pequeno brasileiro. De onze
anos. Lindo. Um menino cuja mãe suicidou-se (pelo menos, é o que dizem) há
quatro anos; um menino que reclamava o afeto dos pais –mais precisamente, do
pai natural e da madrasta; um menino que gostava de pegar a meia-irmã, ainda
bebê, no colo, mas que foi proibido de chegar perto da criança; um menino que procurou
as autoridades para que seu problema familiar fosse resolvido –e que não foi
atendido; um menino que, ao sair da escola, rumava para a casa de uma antiga
amiga de sua falecida mãe, e lá brincava, fazia o dever de casa, descansava e
era alimentado; um menino que orgulhosamente dizia que a profissão do pai era ‘salvar
a vida das pessoas’ –e era mesmo, pois era médico; um menino que não aparecia
nas fotos da família; um menino que não tinha sequer as chaves de sua própria
casa, e que para entrar nela tinha que escalar um muro de quase dois metros de
altura, conforme informou uma conhecida. Um menino como qualquer outro, um
pequeno brasileiro cuja curtíssima vida foi tragicamente ceifada por aqueles
que deveriam, justamente, defendê-lo e preparar-lhe a carne e o espírito para
as rudezas e as maldades do mundo.
Como morreu Bernardo, aquele
menino tão bonito que aparece nas fotos dos jornais e da tevê? Quem o matou?
Difícil saber, e desnecessário saber. A única informação realmente importante
nesta história é que o menino foi assassinado. Simples assim.
Neste domingo de Páscoa, penso
em Bernardo. E em Isabella, e em Juan, e em João Hélio, e nos inúmeros
brasileirinhos terrivelmente assassinados por quem deveria justamente cuidar
deles –a família e o Estado.
Neste domingo de Páscoa do ano
dois mil e quatorze, penso que o futuro de um país também pode ser medido pela
forma com que nele são tratadas e cuidadas suas crianças. E a impressão que
tenho é que existem milhões de pequenos
brasileiros que são literalmente despejados a cada dia para as ruas, pelas
avenidas, pelas escolas. É como se os chutássemos de casa a cada manhã com um
pontapé no traseiro e disséssemos: ‘tente voltar vivo’. E eles voltam. De um
jeito ou de outro, eles acabam voltando.
A casa é o refrigério. Se
dentro dela as nossas crianças não tiverem segurança, alimentação e afeto, elas
simplesmente vão embora. Vão para outras casas. Vão para a rua. Aí, sim, elas não
voltam. Nunca mais.
No caso do lindo Bernardo, foi
diferente. Apesar da falta de afeto e atenção diária, ele sempre quis voltar
para casa. A casa de seu pai. E encontrava a porta trancada. Pulava o muro,
batia à porta, entrava. E sabe Deus o que encontrava lá dentro.
Neste domingo de Páscoa do ano
de dois mil e quatorze, o rosto do lindo Bernardo insistentemente permanece em
nossas mentes. Está presente durante as refeições, nas páginas do jornal, no
sorriso de nossos filhos, nos cartazes de ovos de chocolate expostos
exaustivamente nas vitrines das lojas. Bernardo é aquela menina que acena no
carro que passa velozmente na avenida. Bernardo é o garoto com a camisa da
seleção. Bernardo é o menino que faz birra e se atira no chão da loja de
brinquedos. É o menino que não gosta de comer verduras. Bernardo é o filho do
vizinho que chora desesperado porque não consegue defender com as luvas novas
os chutes que o pai dá na bola de borracha –cada vez de um lado, só para
irritar mais o menino. Bernardo é tudo isso. É dele o rosto exangue na cruz do
calvário esperando para ser ressuscitado.
A justiça julgará rapidamente
o caso –afinal, o apelo da mídia é altíssimo. Poucos assuntos são mais ‘ricos’
para a imprensa do que um menino assassinado pela própria família. Os suspeitos
serão presos. O delegado ficará famoso e aparecerá na televisão. Psicólogos serão
entrevistados. A casa da família será pichada. O rosto lindo do menino
estampará as capas das revistas semanais. Até a próxima tragédia envolvendo um
dos nossos pequenos brasileiros, mortos pela família ou pelo Estado. No
momento, já deve ter alguém escrevendo um livro a respeito.
A gente fica procurando Deus
no meio disso tudo. E, independentemente das doutrinas confusas e geralmente ilógicas
das religiões, nossa verdadeira esperança é que Bernardo esteja neste momento
em algum lugar tranqüilo –talvez, sentado sobre um nuvem desenhada pelo
Maurício de Sousa- de mãos dadas com a mãe, a celebrar, com seu sorriso lindo,
o milagre do reencontro e da verdadeira ressurreição.
Não há muito o que dizer, como
diria o poeta. No fim deste domingo de Páscoa, provavelmente desistiremos
novamente de tentar entender certas coisas.
Feliz Páscoa, Bernardo. Que
Deus te acolha e te faça dormir.
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