domingo, 19 de julho de 2015

GLEISON, UM BRASILEIRO

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Foi enterrado ontem em Teresina, Piauí, o brasileiro Gleison Vieira da Silva, de apenas dezessete anos.
Vivia com a família em um casebre na cidadezinha de Castelo do Piauí, de pouco mais de dezoito mil habitantes. Sua mãe Elisabete, de 35 anos, está grávida do sétimo filho. Uma de suas filhas, de quinze anos, também está grávida –do primeiro. O padrasto de Gleison é alcoólatra e vive de bicos eventuais. Um de seus irmãos, de dezenove anos, é deficiente mental e passa parte do dia tentando estuprar as irmãs mais novas, a saber: duas gêmeas de seis anos, uma de nove e outra de doze. Quando estava em casa e não havia usado drogas, a função de Gleison era manter o irmão doente afastado das irmãs pequenas.
A principal renda da casa vem do Bolsa Família.
Gleison experimentou drogas pela primeira vez, segundo ele mesmo contava, aos doze anos. Aos treze, já se viciara. Começou com maconha, passou pela cachaça e estava no crack. Foi expulso de três escolas devido ao seu comportamento agressivo e era praticamente analfabeto: mesmo sua assinatura se assemelhava mais a um desenho do que propriamente à grafia do nome de alguém.
No dia 27 de maio passado, Gleison participou de um crime inominável: o estupro coletivo de quatro adolescentes, que depois de violentadas foram atiradas do alto do morro do Garrote. Uma delas, da mesma idade de Gleison, morreu dez dias depois. Dos quatro criminosos, três eram menores. O outro era um homem de 40 anos.
Gleison foi o primeiro a ser preso, e delatou os demais. Foram  mantidos por cerca de 45 dias em celas separadas até que, por falta de espaço no presídio, foram confinados no mesmo espaço. Gleison foi espancado até a morte por ter sido o responsável pela delação.
A morte de Gleison foi comemorada em sua cidade com foguetório. Seu corpo foi enterrado em Teresina (distante 184 de Castelo) devido a ameaças dos castelenses de que, se fosse para lá, não haveria enterro.

O Prefeito Zé Maia, acusado de irregularidades administrativas e que se mantém no cargo graças a uma liminar, informou que a Festa da Cachaça, principal atrativo turístico e cultural da Cidade de 252 anos, acontecerá normalmente no próximo mês de setembro. A cidade espera.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

PRIMEIRAS DOMINGÂNCIAS DO NOVO ANO

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Benilson Toniolo

A goleada de 7 a 1 sofrida pela seleção brasileira contra a Alemanha, na última Copa do Mundo, parece mesmo que interferiu –e continua interferindo- de forma traumática na vida da nação. Parece que, ainda sob o efeito da traulitada, a classe que tem por função pensar os destinos do País sentiu muito mais que as outras os efeitos da goleada.
Faltando cerca de dezoito meses para o início dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, alguns nomes convidados a conduzir as pastas públicas responsáveis pelos Esportes no Brasil chamam a atenção, digamos assim, pelo ineditismo e pela singularidade de seus históricos profissionais,  absolutamente estranhos à natureza do trabalho que os esperam.
George Hilton, o Ministro dos Esportes,  chamou atenção de todos ao assumir em seu discurso de posse não entender absolutamente nada dos assuntos da pasta. Pudera: trata-se de um pastor da Igreja Universal que, antes de ser nomeado para o primeiro escalão do governo, só tinha alcançado certa notoriedade ao ser flagrado pela Polícia Federal de posse de cerca de 600 mil reais, em dinheiro vivo, divididos em onze malas, sem conseguir explicar de forma convincente a origem da dinheirama.  Foi expulso do PFL e atualmente milita no PRB.
A prática de entregar o esporte brasileiro nas mãos de alguns dos escolhidos de Deus parece não ser exclusividade do Governo Federal. Geraldo Alckmin, em São Paulo, e Fernando Pimentel, em Minas Gerais, resolveram seguir os passos de nossa elegante chefe do Executivo e também entregaram as secretarias estaduais dos esportes a pastores da Igreja Universal, que pelo jeito tem notável capacidade de formar sacerdotes com singulares aptidões para a administração esportiva.
Melhor que isso só Luiz Pezão, governador do Rio de Janeiro, que entregou a titularidade da pasta para um dos filhos do ex-governador Sérgio Cabral –que pelo menos não é pastor, até onde se saiba.
Escolha tão ruim quanto a de Dilma, entretanto, as páginas e telas da imprensa ainda não registraram em 2015.
Ah, esses malditos alemães...

Massimo Cavenacci é um antropólogo italiano radicado há vinte e cinco anos no Brasil, onde é professor convidado de algumas universidades, com destaque para a USP, onde atuou –e atua- num projeto de mobilidade urbana.
Tomei conhecimento de sua existência em uma entrevista dada por ele, em português lombardo, no programa de Mario Sergio Conti na Globonews. Simpático, eloqüente, conhecedor profundo do Brasil e sua fabulosa complexidade, Massimo ressaltou o que chamou de ‘fantástico crescimento’ do País nos últimos vinte anos, sobretudo após os governos FHC e Lula, um em continuidade do outro, que trouxeram a estabilidade e o crescimento econômico e a diminuição significativa da pobreza.
Quase ao final da entrevista, ele registra duas de suas maiores preocupações com relação ao Brasil. Uma, a proliferação de doutrinas religiosas, que impedem o livre pensamento e encontram na indigência acadêmica um terreno fértil para enraizar seu desenvolvimento. A outra, o desaparecimento da música genuinamente brasileira, conhecida universalmente por sua genialidade, e que no entanto parece ter morrido. E encerra com uma pergunta: ‘onde foi parar a grande música brasileira?’.
Boa pergunta. Aonde é que, afinal, estamos indo parar todos neste País?


De Elio Gaspari, na Folha, sobre o discurso de posse de Dilma no Congresso: ‘Quem falou aos brasileiros como presidente da República foi a representante de uma facção, porta-voz somente dos “nossos governos” (o dela e o de Lula)’. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

MINHA HISTÓRIA COM O PT


Benilson Toniolo

Ouço no rádio o escândalo do dia. No Brasil do PT, é assim: os escândalos se sucedem na escala de um por dia. Desta vez, carteiros a serviços dos Correios foram flagrados distribuindo material de campanha da candidata Dilma Rousseff. Ou seja, funcionários de uma estatal (apesar de existirem varias franquias) a serviço de um partido político. Constrangedor, no mínimo. Os folhetos com a cara sorridente de Dilma não foram selados. Não foram pagos. Ao invés de cumprirem suas jornadas de trabalho entregando correspondências à população, os entregadores uniformizados distribuíam material de campanha da presidente da República candidata à reeleição. Se alguém ainda não sabia o significado da expressão “aparelhamento do Estado”, acabou de descobrir.
Somem-se a este caso os escândalos da Petrobras, as mentiras deslavadas, as calúnias dirigidas aos demais candidatos à Presidência, a incapacidade de gerir a economia do País (chegam a inventar uma crise internacional para justificar a estagnação econômica do Brasil, quando sabemos que até a Bolívia apresenta crescimento mais elevado do que o nosso), um sistema de saúde falido, a inoperância frente ao triunfo do narcotráfico que age livremente em nossas fronteiras e dentro do território brasileiro, a falência das polícias, um sistema educacional arcaico, oneroso e ultrapassado, um sistema de concessão de bolsas que é mais um instrumento de garantia de votos do que qualquer outra coisa, o sucateamento das instituições (que o diga o Itamaraty), a compra de apoio do Legislativo, o cerceamento da imprensa, a difamação de jornalistas, e por aí vai. Posso dizer sem medo de errar que nunca houve um grupo de pessoas no comando do País mais corrupto do que este do PT. E, no entanto, Dilma lidera as pesquisas de intenção de voto para a presidência. Deve inclusive ser reeleita. Só posso concluir: o povo brasileiro e o Partido dos Trabalhadores se merecem. São iguais. Um é reflexo do outro. Porque quem se alia a bandido, a ele se equivale. E quem vota em bandido não é simpatizante. É comparsa. É cúmplice.
Conheço o PT não é de hoje. Mais precisamente, de meados de 1991, quando comecei a me envolver com literatura e com o pessoal da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Santos. Passei mesmo a colaborar com alguns projetos de cultura nos bairros, ciclos de poesia e prosa, reuniões de escritores, teatro, música, dança. Aquilo para mim era um deslumbramento.
Através do trabalho do pessoal que atuava na Secretaria, passei a nutrir grande admiração pela prefeita, Telma de Souza, de quem até hoje sou admirador.
Conheci Beatriz Rota-Rossi, Valdir Alvarenga, Jair dos Santos Freitas e outros batalhadores. Aprendi um bocado com esta turma. Passei a freqüentar a faculdade de Filosofia e Letras da Unisantos. Não o curso, que eu não tinha dinheiro para bancar, mas o ambiente universitário. Frequentava a faculdade vários dias por semana. Tinha ali um monte de namoradinhas. Afora isso, o pessoal do Teatro Municipal, o Núcleo de Convivência Literária, o pessoal da dança ensaiando sobre textos de Maiakovski. Minha alma começou a pulsar e a entender o idioma da Arte.
Meus poemas, apesar de ruins e imaturos –não que os de hoje não o sejam, ruins e imaturos- saíam publicados no Clips, depois no D.O. Urgente. Santos não era como o Guarujá, onde eu morava. Eu não conhecia nenhum artista de Guarujá. Mas de Santos, conhecia muitos. Não todos. Mas muitos.
Minha admiração pelo trabalho desenvolvido pela Prefeitura não tinha fim. Veio a greve dos Estivadores, e vi Telma de Souza, no alto das escadarias da Prefeitura na Praça Mauá, bradar: “vamos parar esta Cidade! Enquanto os trabalhadores do Porto não forem valorizados, vamos até o fim!”. Reparei que não havia nenhuma câmera, nenhum microfone por perto. Ela, a prefeita de Santos, conclamava sua equipe a apoiar os grevistas. Subi num caminhão na General Câmara, íamos parando e fechando o comércio. Paramos no Gonzaga. Me deram o megafone. Fechei dois restaurantes –o dono de um deles, um português, queria me bater alegando que ele não tinha nada a ver com aquela greve- e duas agências bancárias. Só no gogó. Me levaram para a sede do Sindicato, na Rua João Pessoa. Me apresentaram para um monte de gente. Perguntaram onde eu trabalhava. Em lugar nenhum, respondi. Desempregado. As pessoas riram.
Quando Lula ia a Santos para algum compromisso, o pessoal da Secretaria me ligava. Eu ia. Ele não. Trabalhei pela eleição de Capistrano, o secretário da Saúde de Telma. Lembro da musiquinha da campanha até hoje, um sambinha desses que grudam na cabeça da gente. E gruda tanto que até hoje me ocorre. O governo da Telma foi tão bom que conseguiu fazer seu sucessor, um médico preto e nordestino.
Passei a andar com a estrela do PT na camiseta e numa boina branca que eu gostava de usar. Eu votava em Lula. Votei para deputado federal. Para presidente, em 89. Sempre acreditei no seu discurso, na sua vontade de fazer um Brasil mais justo para todos. Acreditei até quando o vi chorar. Lula era nordestino como meu pai. Operário. Trazia a esperança de um futuro diferente. Representava exatamente o oposto do que se conhecia como política.  ossde Souza, de quem atetaria, passei a nutrir grande admiraçia e prosa, reunioes cretaria de Cultura da Pr
Em 1997, no Nordeste –eu gerenciava um hotel lá- soube que Lula estarei na Cidade. Falei com o pessoal de Santos, que me colocou em contato com o PT de lá. Consegui levar Lula para gravar um programa no nosso Centro de Convenções. Tirei uma foto com ele. Chamei-o de Presidente Lula. Fiquei impressionado com seu mau humor e a quantidade de palavrões que ele proferiu nos cerca de trinta minutos em que lá esteve. Ofereci-lhe um apartamento para descansar, comer alguma coisa, tomar um banho. Ele me olhou e não respondeu. Olhou  fixamente para as pernas de minha mulher, que tirava as fotos. Depois, foi embora sem se despedir de ninguém. E falando palavrões. Lula, dizem, fala muito palavrão até hoje.
Lula teve nas mãos a grande chance de promover a revolução institucional e moral que este País precisava em 2005, por ocasião do escândalo do Mensalão. Deflagrada a crise, poderia ser o protagonista das reformas necessárias que finalmente  colocariam o Brasil nos trilhos do desenvolvimento. Ele tinha a seu lado o apoio da opinião pública, da mídia, do povo, do mundo inteiro. Era um país inteiro na expectativa de que o presidente assumisse sua condição de grande estadista. E ele refugou. Alegou desconhecimento. Disse que não sabia, Que não tinha sido informado. Agiu como agiriam todos aqueles a quem atacou durante toda a sua vida. Foi covarde, leviano, mesquinho. Foi pequeno. Foi ridículo. Fugiu para a Europa e escondeu-se nos carpetes felpudos dos hotéis estrelados e dos palácios. Porque o Lula operário e defensor dos pobres  morreu no dia da posse, em 2003. A partir dali, surgiu o político deslumbrado e de rabo-preso.
Lula revelou-se não o pior, mas o mais maquiavélico de nossos presidentes. Inescrupuloso, teceu complicadas alianças com algumas das figuras mais abjetas e reacionárias da República. Ajoelhou-se perante Jader Barbalho, e beijou-lhe as mãos. Abraçou Maluf, pediu conselhos a Sarney, mancomunou-se com Calheiros.
O PT comprou parlamentares, criou ministérios e secretarias para presentear aliados. Comprometeu o patrimônio nacional ao distribuir dinheiro público a Cuba, Venezuela, Paraguai, Bolívia. Fez a alegria dos ditadores africanos perdoando dívidas. Subjugou a soberania italiana ao recusar-se a extradição de Battisti. Ignorou os perseguidos políticos do regime de Fidel.
Lula para mim, como estadista, é um perfeito desastre. Como homem público, um farsante. E como político, um caluniador e difamador como poucas vezes vimos na história deste País. Enganou-nos a todos, nós que vimos seu nascimento político e ascensão. Tornou-se igual, e até pior, aos que combatia. Vendeu-se. Nivelou-se ao que há de pior. Mente. Lula mente o tempo todo.
Dilma, por sua vez, provavelmente será reeleita. Por quê? Porque, apesar de todos os escândalos, governa um País onde não há oposição (neste sentido, a atuação do PSDB é patética), onde a maioria das pessoas não dá a mínima para a política (a educação está falida, lembram-se?) e que ainda sofre com a falta de líderes com idéias inovadoras e preparo técnico adequado –reflexo ainda dos males da ditadura.
A dois dias do pleito presidencial, meu voto é declarado: não voto no PT. Porque o que conheci como PT morreu, não existe mais, e já faz tempo. O PT de hoje representa uma ditadura velada, que faz apologia à ignorância (a educação está falida, lembra?) e persegue seus poucos opositores. E de ditadura nós, os brasileiros, já deveríamos estar fartos.

Quanto à foto que tirei com Lula, não sei onde guardei. Mas desconfio que está perdida entre as páginas d´O Príncipe, de Machiavelli, ou de Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter, de Mario de Andrade. O que, podem estar certos, é uma atitude deliberada.

O RADINHO DE PILHA

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Benilson Toniolo

Cheguei do horário do jantar, fechei a porta da cabine e voltei ao trabalho de programação do sistema. Após alguns minutos, alguém bateu à porta da sala, fui abrir e era o Gerente de plantão, que trazia um radinho de pilha, vermelho, na mão.
- É você que é o Benilson? Então, enquanto você estava fora seu pai passou por aqui e pediu para lhe entregar este rádio. Ele disse que você queria ouvir o jogo desta noite e resolveu te trazer o rádio.
Seo Benício nunca foi muito chegado a futebol. Não dava importância. Naquela noite, voltava para casa de ônibus depois de mais um dia de trabalho quando resolveu descer no meio do caminho para me entregar um radinho de pilha para que eu pudesse ouvir o jogo.
Meu pai era um sertanejo macho, que entre outras coisas dizia que não dava carinho aos filhos para que, quando ele morresse, ninguém sentisse falta dele. Falácia. Era através de carinhos como este que ele deixava sua marca com a gente. Quando eu era menino, lembro que ele gostava de se deitar em sua cama depois da janta. Eu ia lá, me deitava sobre seu peito e ficava brincando com seus pelos do tórax. Ele imitava um leão e abria uma bocarra enorme, fingindo me morder e me fazendo cócegas. Também brinquei assim com meus meninos. Pai é tudo igual –mesmo depois de sacolejar por onze dias em cima de um pau-de-arara, fugindo da seca que incendiava o sertão das Alagoas.
Quase não pude ouvir o jogo direito naquela noite por conta da interferência que as máquinas produziam na transmissão –afinal de contas, eu estava trabalhando. Mas quando o juiz apitou uma falta para o Santos na entrada da grande área aos quarenta e cinco do segundo-tempo, saí da sala e me posicionei de pé na porta de entrada, do lado de fora, esperando o apito do juiz. E não deu outra: Mendonça bateu à meia-altura, no canto, longe do alcance do goleiro adversário. Dois a um para nós, fim de papo na Vila. Vibrei muito com aquela vitória e, assim que girei para baixo o botãozinho preto e ouvi o “clic” indicando que o rádio estava desligado, cerrei o punho com força  e sussurrei, agradecido: “valeu, pai!”.
São estas as pequenas memórias de que somos feitos, e das quais dependemos para continuar vivendo e palmilhando cada centímetro desta caminhada de sacrifícios, esperanças e alegrias chamada Vida.

Valeu, pai.

"Ô, CORINTHIANO!"

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Benilson Toniolo

No comecinho da rua era a casa do seo Afrânio, um homem gordo que trabalhava nas Docas. Tinha duas filhas adolescentes e sua esposa, a dona Lurdes, era uma portuguesa bigoduda que só usava vestido escuro e tinha fama de encrenqueira e de não gostar de tomar banho.
Aos domingos pela manhã, seo Afrânio varria seu quintal e a calçada, onde caíam muitas folhas das árvores próximas. Também pendurava as gaiolas dos seus pássaros  nos galhos do chapéu-de-sol que havia defronte sua casa. Depois, se sentava em uma cadeira de vime e ficava ouvindo um rádio de pilhas, que eventualmente alojava sobre sua grande barriga enquanto girava o botão seletor em busca de suas estações preferidas.
Meu pai de vez em quando parava para conversar com ele. Minha mãe, sempre que passava, o cumprimento e nos mandava fazer o mesmo. Bom dia, seo Afrânio. Boa tarde, seo Afrânio. Olá, seo Afrânio.
O problema é que ele tinha mania de chamar todo mundo de corinthiano. E a gente, que não era corinthiano, ficava bravo. Passávamos e ele provocava: “ô, corinthiano”. A gente ficava bravo e com vontade de mandar o homem à merda. Um dia, passava com um amigo palmeirense e, diante da provocação, o repreendi. “que corinthiano o quê, ô!”. Depois temi que ele contasse à minha mãe –ou pior, ao meu pai. Acho que nunca me entregou. Mas continuava provocando a gente. Um dos meus amigos, são-paulino, um dia me disse que se a provocação fosse com ele ia atacar pedras no homem. “Tá louco?”, respondi.
Um dia eu vinha da venda com meu irmão quando vimos um carro preto, enorme, com o desenho de uma cruz nos vidros, parado na frente da casa dele. Passamos rapidinho e nem olhamos para o lado. Contamos à mãe que, horas depois, comunicou com aquela fisionomia grave que caracteriza as mães quando vão anunciar aos filhos um acontecimento muito sério: “seo Afrânio morreu, coitado. Estava bem, acabou de almoçar e foi tirar um cochilo. Dona Lurdes chamou ele para tomar café e nada de o homem responder. Foram ver, estava morto. Já pensou? Coitada da dona Lurdes”.

Isso foi há muito tempo. Ainda assim, por via das dúvidas, até hoje evito dormir depois do almoço. Vai que me encontro de novo com seo Afrânio e ele vai estar lá, de asinhas e vestido branco, a me receber no Paraíso com a vassoura na mão e me saudando com um “ô, corinthiano!”?


ANTÍGONA


Benilson Toniolo

Julinho foi com a namorada ao Teatro da Praia, numa tarde de domingo, assistir a Antígona, de Sófocles, encenada por um grupo de Artes Cênicas de uma universidade local. De cara, apaixonou-se pela atriz principal, loura, peituda e canastrã. Na saída do espetáculo, procurou se informar e descobriu que o grupo se reunia de quarta a sexta-feira para ensaios na faculdade. Não deu outra: na quarta-feira, meia-hora antes de o ensaio começar, lá estava o Julinho perambulando pela faculdade com cara de intelectual que tinha um compromisso cultural muito importante. Viu Rebeca –era esse o nome de sua Antígona- entrar cumprimentando alegremente os colegas e subir as escadas que levavam ao auditório, com semblante muito sério. Bonita ela não era muito não. Mas era Antígona. E usava sutiã.
Julinho assistiu às duas horas de ensaio sozinho na platéia e, no final, deu um jeito de ficar no caminho da amada quando ela saía. Olhou-a de frente, estendeu a mão e apresentou-se, solene: “Rebeca Souza? Prazer. Júlio Márcio, escritor”.
Bom, escritor não era bem o termo. Depois de fazer algum sucesso arriscando uns versinhos na escola aos doze anos, ele resolvera aos vinte apostar no que julgava ser seu talento e se dedicar à poesia. Desempregado, tinha tempo de sobra. E, com os hormônios em contínua efervescência, resolvera “investir” na agitada vida cultural da cidade para ver se aprendia alguma coisa de cultura e, de quebra, tentava arrumar umas menininhas. Estava dando certo.
Julinho, que em geral se apaixonava uma vez por semana, não era do tipo que se declarava abertamente e ia direto ao ponto, por assim dizer. Fazia o tipo dissimulado, aquela história do “sem querer, querendo”. Ficava ali, num cerca-lourenço danado, só cercando. E mandava flores, dava presentinhos fora de hora, encontrava a menina “por acaso” na saída do trabalho dela, telefonava para dizer que havia acabado de ouvir uma música do Caetano e também “por acaso” dela se lembrara, essas coisas. Quando a presa já tinha arriado todos os escudos e armaduras, aí o Julinho dava o bote, de preferência numa noite esplendorosa à beira-mar, intercalando beijos desesperados com  versos do Vinicius de Moraes. Aí era covardia. Julinho era cruel. Se bem que, não raro, a “presa” resolvia acabar com aquela embromação e tomava a iniciativa, ou cedendo aos seus encantos ou mandando o Julinho ir ver se ela estava na esquina. O Julinho, nestes casos, ia e não voltava. Podia até ser meio doido, mas não era besta.
O problema é que a tal da Rebeca estava inflexível e, ao saber das intenções do moço, propôs que vivessem juntos uma “paixão literária”. Nada mais natural, uma vez que ela já tinha um namorado –o Florisvaldo- a quem não pretendia trair nem abandonar e também pelo fato de ambos, ela e Julinho, serem apaixonados pelos mesmos poetas, a saber: Rimbaud, Baudelaire, Neruda e Leminski. Julinho estranhou. Esse negócio de “paixão literária”, afinal de contas, incluía sexo ou não?
A esta altura o rapaz, que já tinha dado aviso-prévio para a namorada, pôs-se a investigar quem era o tal do Florisvaldo que impedia sua conquista. Quando descobriu, ficou perplexo: o rival era baixinho, usava óculos com um grau muito acima do seu, magrelo, com sinais de calvície precoce, fumava, trabalhava como cobrador de ônibus, era recém-separado e andava com três filhos pequenos a tiracolo, que inclusive o acompanhavam  nos seus encontros com Rebeca. Além disso, não tinha carro, não gostava de poesia e falava “menas”. Julinho se invocou e resolveu tirar satisfações com sua Antígona:
- Pô, Rebeca.
Mas não teve jeito. Sua diva grega se manteve insensível às investidas e continuou firme com Florisvaldo. Estava apaixonada, o que ele queria que ela fizesse? Julinho aos poucos foi desistindo e, numa noite solitária de sábado de pouquíssima poesia, resolveu telefonar para a antiga namorada para “ver se a boiada ainda estava no pasto”, como se diz. Atendeu o pai:
- Ela não está. Foi ao teatro com o namorado.
“Esse negócio de teatro é um problema”, concluiu Julinho, entre desconsolado e conformado.

Então ele coçou a cabeça, conferiu o relógio e sentou-se no sofá da sala ao lado da mãe, que anunciou que já estava quase na hora do programa do Gugu.


A MISSA DO VAQUEIRO

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Benilson Toniolo

Em Exu, interior de Pernambuco, o boiadeiro Raimundo Jacó era o zeloso guardador do numeroso rebanho do patrão. Sertanejo forte, corajoso e dominador de sua função, cuidava da boiada com rigidez e responsabilidade. Tinha um aboio que era uma beleza, no dizer da gente do lugar. Foi ficando conhecido por sua lealdade e competência. Na mesma fazenda, outro vaqueiro, Firmino, menino novo no ofício e muito a aprender na arte de aboiar e cuidar do gado, cuidava do reduzido rebanho da patroa.
Certa vez, uma rês da patroa se perdeu, e coube a Firmino embrenhar-se pela região atrás do bicho fugidio. Se andou muito ou se andou pouco, não se sabe. O que se sabe é que Firmino voltou de mãos vazias, balbuciando desculpas e justificativas. Então o fazendeiro chamou Raimundo: “saia em busca do boi e só volte aqui quando encontrar”.
Raimundo saiu a cumprir a ordem, e Firmino postou-se na porteira grande da fazenda na esperança de  ver Raimundo voltar fracassado. Não voltou. No fim da tarde do mesmo dia, vinha o vaqueiro trazendo pela mão o boi fugitivo. Aturdido e temendo perder o emprego, Firmino acercou-se de Raimundo e pediu: “me dê aqui este boi. Vamos dizer ao patrão que quem encontrou fui eu”. Raimundo negou: “oxe!”. Firmino implorou: “Pelo amor de Deus, Raimundo Jacó. Faça isso por um pobre. O patrão vai me botar no olho da rua”. Raimundo fez que não ouviu. Continuou seu caminho, decidido a entregar pessoalmente o boi recuperado ao patrão. Firmino, num ato de desespero, apanhou uma pedra que havia no chão e atacou Raimundo pelas costas, desferindo-a contra sua cabeça. Raimundo Jacó caiu sem vida em meio a uma poça de sangue.
O patrão, que tinha interesse em lançar-se candidato a uma vaga de deputado na Assembleia no Recife e não queria ver seu nome envolvido em escândalo, procurou o juiz, que inocentou Firmino alegando legítima defesa.
Luiz Gonzaga, o Rei do Baião e da música popular brasileira, chegava em Exu no exato momento em que terminava o inquérito, e Inteirou-se do caso pelo vigário local. Inconformado com a injustiça e com a crueldade do crime, o padre pediu a Gonzaga que fizesse uma música que servisse tanto de homenagem ao vaqueiro assassinado como de protesto pela decisão da Justiça. Gonzaga, em parceria com o poeta e médico potiguar Jandhy Finizola, mais do que uma música, compôs a Missa do Vaqueiro, que acabou por tornar-se uma verdadeira peça de protesto contra a opressão e violência que sofriam os trabalhadores pobres do Nordeste do Brasil. Raimundo Jacó e Luiz Gonzaga eram primos legítimos de primeiro grau.       
A primeira vez que a peça musical foi executada foi justamente na missa de 01 ano da morte de Raimundo. A partir daí, seu túmulo passou a ser local de peregrinação pelos moradores locais e das cidades vizinhas, havendo até mesmo relatos de milagres atribuídos a ele. A fé e a esperança do povo simples e sofrido serviam de consolo e refrigério naqueles cafundós ardentes e opressores.
A história de Raimundo Jacó foi sendo esquecida ao longo do tempo, principalmente após a morte de Luiz Gonzaga, em 02 de agosto de 1988. E consta que, enquanto expirava e se despedia da vida no leito do Hospital Santa Joana, no Recife, era com aboios que Gonzagão tentava superar a dor do câncer terminal que lhe roía os ossos.
Só nos restou A Missa do Vaqueiro, composta de nove partes: “Jesus Sertanejo, “Kyrie Eleison”, “Glória”, “O Credo”, “Ofertório”, “Sanctus Sanctus”, “Pai-Nosso”, “Comunhão” e “Canto de Despedida”. Vale ser ouvida, como exemplo vivo da cultura e da música popular deste País.



Obs.:  este texto é uma livre adaptação de parte do livro “O Fole Roncou – Uma História do Forró”, de Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues (Editora Zahar).