terça-feira, 13 de novembro de 2012




RIO CUIABÁ
Benilson Toniolo

I
O rio que passa por mim
E me traga
É caudaloso e profundo
De palavras rasas.
Quanto mais me movo, mais me afogo,
Com a violência incontrolável das águas
E dos sentimentos.

II
O sol banha o rio
Com suas línguas de fogo
E seu perfume
De todos os tempos.
Eternidades amancebadas.

III
Aprendi uma nova cor
Que sabe a água e a folha,
Cuja profundidade de rios sobrepostos
Se anula à delicada pressão dos meus dedos.
Cor de ferro,
De pluma,
De árvore,
De menino em movimento e liberdade.
Uma cor adocicada me coube
Etérea como jamais pensei existir.
Uma cora onde residem
Todos os plenilúnios,
E as crianças todas.
Solene como um átrio,
E plena como o desejo
De liberdade.

IV
Nada é mais vivo que este rio,
De braços viris e veias caudalosas,
De curso violento e decidido,
A inundar a eternidade das pedras
E o musgo dos matagais.
A açoitar na noite os troncos das árvores
E a ignorar, sabiamente,
A irracionalidade de todos os homens.

V
A qualquer momento
Pode nascer um Poema dos olhos do rio.
Um poema devastado e purulento,
Coberto de pó dourado,
Coberto de séculos e musgos
Trazidos do Tempo.
A qualquer momento
O Poema do Rio atravessará a Terra
E fixará residência
No mais profundo do coração humano.
A iluminar, silencioso e eterno,
Todo Amor e todo Entendimento.

VI
A pedra lisa
Como o dorso do peixe
Observa a cabeleira
Alvoroçada do rio,
Que corre em sua volúpia
De criança libertada.

domingo, 11 de novembro de 2012

O RACISMO EM GRACILIANO RAMOS




Graciliano Ramos é um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Quem não sabe disso nunca leu Vidas Secas, ou Angústia, ou São Bernardo, ou Memórias do Cárcere, ou então lê, sim, mas lê muito pouco e o que não deve. Mas a maioria dos brasileiros que têm o hábito –ou o vício- da leitura certamente comunga desta afirmação.
Mestre da concisão, da objetividade, da clareza e declaradamente contrário ao uso da palavra “para enfeitar”, este alagoano de Quebrangulo foi Prefeito (em Palmeira dos Índios, no mesmo Estado) e notabilizou-se pelos relatórios de prestação de contas que enviava anualmente ao Governador, cuja qualidade literária fez com que um editor do Rio de Janeiro propusesse-lhe a publicação de seus livros. Exerceu inúmeros cargos públicos, foi preso e perseguido, falecendo no Rio de Janeiro, com 61 anos de idade.
Em suas obras, é comum a crítica ao sistema social e econômico estabelecido, que enriquece cada vez mais os poderosos (o Governo, os coronéis, os latifundiários) e condena à miséria, à fome e à morte os pobres sertanejos e seus filhos. Grande parte da obra de Graciliano (assim como, pode-se dizer, a de Lins do Rego, Jorge Amado, Paulo Dantas e tantos outros) trata dessa idiossincrasia e procura denunciar essas abissais injustiças. Mas não é só isso: é comum encontrar em sua obra, também, a busca do homem pela sua própria identidade, as angústias, o egoísmo, a fé, o amor, a relação com a natureza e as lutas diárias que moldam, transtornam e acabam por formar o próprio espírito humano, numa paisagem genuinamente brasileira. 
Mas eis que, ao reler sua coletânea de contos “Viventes das Alagoas”, de 1961, lamentavelmente constatei uma terrível faceta do notável escritor: o racismo. Isso mesmo. Graciliano, em determinado momento do texto, faz referência a uma minoria de forma irônica, sarcástica, faz troça de seu idioma e ainda a ofende com um epíteto que procura, descaradamente, atacar sua honra e colocar em dúvida sua integridade moral.
O texto em questão é o conto “Professores Improvisados” (página 138 da edição da Record), quando ele assim relata sua tentativa de se fazer passar por um professor de língua italiana para ganhar uns trocados: “Imaginando, sem grande esforço, que na Itália existia um língua, pedi catálogos e pus-me a estropiar o italiano. Isto deve ser fácil, pensei. É só arrumar no fim das palavras “one” ou “ine”. De estrangeiro cá na terra ninguém entende. E se aparecer por aí um carcamano, adoeço e perco a fala”.
Reparem na forma pejorativa e ofensiva como o ilustre alagoano se refere à cultura, às tradições, à língua e à índole dos italianos. Reparem na desfaçatez, na ironia já mencionada e descarada, no claro intento de ofender e humilhar uma raça em especial.
Agora imaginem o estado em que se encontrará um estudante ítalo-descendente, ao ser lido em sala de aula um texto como este. Seguramente dele caçoarão os colegas, e no intervalo das aulas encher-lhe-ão os ouvidos com centenas de “one”e “ine”, chamar-lhe-ão de “carcamano”, ofensa extensiva aos seus antecedentes e aos filhos que ele há de ter. E agredido por este bullying descabido o pobre cidadão ítalo-brasileiro, ainda púbere, prostrar-se-á de impotência e, corroído pelo sentimento de injustiça, renunciará à escola para o resto de sua vida, ganhando ainda uma incorrigível revolta contra a condição humana e, por tabela, uma vergonha danada de ser neto de italianos.
Portanto, se há ainda alguma réstia de dignidade na educação brasileira, é necessário que o Ministério retire imediatamente das estantes este acinte denominado “Viventes das Alagoas”, que vulgariza e diminuí a importância dos italianos na história do Brasil, além de gerar traumas incuráveis no coração e no espírito dos seus descendentes.
Quanto a mim, retirarei imediatamente da minha biblioteca todos os livros deste autor infame.

Observação: é claro que o texto acima é uma brincadeira. Mas que é bom para que a gente reflita sobre certas coisas que andam acontecendo por aí, isso é... Modestamente falando, naturalmente.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A FEIRA





Devem haver poucos lugares no mundo mais democráticos que a feira livre. Bom, tem a praia. Mas não é a mesma coisa. A praia tem a questão dos elementos naturais -o mar, a areia, as montanhas- e o apelo da pouca roupa, que num lugar como aquele é imperativo. Há também as preocupações estéticas, com o bronzeado, a silhueta, etc. Na praia, todo mundo se acha na obrigação de se divertir. Na feira, não. Está certo, cada coisa na sua hora.
Quando eu era menino, a feira do nosso bairro era às quintas-feiras. E como era gostoso chegar da escola na hora do almoço, abrir o forno e encontrar lá o pacotinho marrom, engorduradíssimo, contendo em seu interior o esperadíssimo pastel de carne -até hoje, o meu preferido. Devorava-o mesmo antes do almoço, como uma espécie de primo piatto que acabava sendo mais saboroso que o prato principal.
Era salutar evitar, na saída do colégio, a Rua da Feira, em função das infames guerras de tomates e de laranjas. No dia da feira, todos ficavam excitados, as salas de organizavam a tramar planos e estratégias para dar uma verdadeira "lavada" nas outras salas. Pobres dos que tinham que, obrigatoriamente, passar por aquela rua para retornar para casa. O jeito era, nesse dia, pedir à mães que fossem nos buscar. Porque mãe, ainda  mais a a mãe alheia, era coisa que muito se respeitava, naquela época. Hoje, não sei mais se é assim.
Na feira todos se encontram, se cumprimentam, conversam, pechincham, consultam, calculam, especulam. Pobres e ricos, negros, brancos e amarelos, católicos, protestantes e ateus, lulistas e tucanos, empregados e patrões, vegetarianos e carnívoros, cristãos e budistas, todos usufruem e compartilham o mesmo espaço, as mesmas barracas, os mesmos toldos, o mesmo cheiro do peixe fresco, a mesma tranquilidade. Se existe um espaço capaz de irmanar e neutralizar as diferenças, este espaço é justamente a feira livre. Preferencialmente num sábado jordanense, de céu azul e sol generoso, com amigos se reencontrando e se abraçando espontaneamente num ambiente de fraternidade e alegria.
Há quem diga que a feira é cara. Concordo. Tem feirante que abusa. Mas onde encontrar alimentos mais frescos, mais saborosos, mais tenros e puros do que lá? Sem a impessoalidade dos corredores refrigerados dos supermercados, a frieza das etiquetas a marcar o preço, a fila dos caixas, o estacionamento apertado, a severidade dos uniformes ou o sorriso forçado dos atendentes? Na feira tudo é mais amplo, mais natural e amigável.
E depois das compras feitas, nada melhor que saborear o pastel - ele, de novo- frito na hora, acompanhado de uma caçulinha. Tudo ali, em pé, à beira da barraca, jogando conversa fora com quem a gente não via há um tempão. Ou que a gente vê todo santo dia, mas que ali está numa outra situação, mais amistosa, mais gentil, mais... humana.
Se um dia os líderes de Israel e Palestina, por exemplo, ao invés de discutirem a paz em seus territórios em gabinetes acarpetados e diante de milhões de microfones e câmeras, se convidassem um ao outro para juntos comer um pastel e uma caçulinha, num sábado de manhã, no Pólo do Estacionamento,  a possibilidade de haver paz entre eles seria muito maior.
Foi na feira -ia esquecendo de contar- que um sujeito se aproximou de mim outro dia e disse que achava uma "sacanagem"  eu não ter sido eleito para a Câmara Municipal. Quando eu disse que não tinha me candidatado, e nunca tinha me ocorrido tal possibilidade, ele fez um ar de muxoxo, balançou a cabeça negativamente, me deu as costas e fez o quê? Pediu um pastel.
Reservemos, portanto, nossos sábados, a este verdadeiro exercício de cidadania que é a feira. E cujo nome composto traz em si aquilo que a maioria de nós procura durante toda a vida. Porque a feira, pelo menos ela, é livre.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O PRESENTE DO PAÍS DO FUTURO




Sou um sujeito, como diria meu pai, meio fuçado. Não é questão de ser isso ou aquilo, esses rótulos que existem por aí e que as pessoas procuram o tempo todo impingir aos outros. Mas é que sempre gostei de ler notícias de jornais e revistas de outros países, e de preferência na língua deles. Entretanto, como meu inglês é mais pífio do que o de muito aluno de nono ano de escola pública, recorro a outras línguas que, consideradas minhas limitações, me são menos complicadas, posto que latinas, para poder lê-los.
Então ocorre que, em determinadas ocasiões, começo meu dia acessando sites de jornais em língua italiana ou espanhola, além dos periódicos portugueses. Me faz um bem danado. Exercito meus parcos conhecimentos dos idiomas, me atualizo sobre o mundo através de olhares distintos daqueles com os quais estou acostumado e, claro, aprendo um monte de coisas novas. A geografia destes países, por exemplo, me atrai muito, além das notícias de cultura.
E foi justamente através desses "olhares estrangeiros" que observei no último domingo que, em cada um dos cinco jornais sobre os quais passei os olhos, havia notícias sobre o Brasil, que gostaria de compartilhar neste espaço.
No italiano Corriere Della Sera, por exemplo, o escritor Roberto Saviano -autor do polêmico livro Gomorra- declarou que o Brasil é o único farol confiável a apontar para o futuro do mundo, e que é incrível como uma ex-colônia de pouco mais de 500 anos se tornou uma potência para onde se dirigem as atenções de todo o planeta.
No La Stampa, alunos de uma faculdade de Nocera Superiore responderam em uma pesquisa que, se tivessem que emigrar para qualquer país do globo, era para cá que a maioria gostaria de vir, pelo clima, pelos atrativos naturais e pelas possibilidades de trabalho e crescimento profissional.
O espanhol El País chamava atenção para o caso do Mensalão, que eles chamaram de "O  Julgamento do Século". Dizem eles que somente em uma nação soberana, democrática e de sólidas instituições constituídas pode haver lugar para um acontecimento tão relevante, e de curso tão pacífico -verdadeiro exemplo a ser seguido pelas demais democracias do mundo.
No português Diário de Notícias, o destaque era o segundo turno das eleições em 50 cidades brasileiras, transcorrido de forma harmoniosa e equilibrada -apesar da obrigatoriedade do voto.
Por fim, o também lusitano Público destacava a realização da Feira do Livro de Frankfurt, que nesta edição homenageia a literatura brasileira, abrindo espaço não somente para nossos escritores consagrados como também para o que tem a dizer a nova safra de escribas tupiniquins.
Refletindo sobre o que li, me ocorreu um pensamento de Millôr Fernandes, notável intelectual recentemente falecido: "Se você chegar a um país e quiser saber da liberdade política que têm seus cidadãos, basta ler os jornais desse país. Se dizem que o governo é admirável, seus mentores maravilhosos, dignos e capazes, é porque os governantes são déspotas que liquidaram  com a liberdade de expressão. Agora, se os jornais dizem que os governantes são incapazes, hipócritas e estão levando o país à ruína, o país está, pelo menos politicamente, muito bem".
A verdade é uma só: o Brasil mudou, e mudou muito. Para melhor. E, apesar de ainda haver quem queira reduzir a 'paternidade da criança' a este partido ou àquele Presidente, a questão é que todos somos responsáveis pela transformação havida no País nos últimos dezoito anos: partidos políticos, instituições, empresas, trabalhadores, empreendedores... enfim, o povo brasileiro. 
Não posso negar que, depois disso, reacendeu-se em mim um sentimento de brasilidade que, confesso, andava meio esquecido. E me ocorreu também que, para que essa transformação seja permanente e continue a levar o País adiante, é necessário que eu reveja meu comportamento. Afinal, às vezes meu país está com a bola na frente do gol para ganhar uma partida importantíssima, e eu, que sou um dos jogadores, insisto em querer parar o jogo para reclamar do técnico. É chegada a hora de parar de reclamar e a ajudar a ganhar o jogo. Ou então mudar de time.

Benilson Toniolo