domingo, 28 de setembro de 2014

A AUDITORIA NOTURNA

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Benilson Toniolo 

Quase oito da manhã e nada de o relatório fechar. A diferença estava no setor de telefonia. Eu tinha trabalhado a noite inteira na auditoria do hotel e nada de os números entrarem num acordo. Vamos pela ordem. Room service, ok. Bar da UH, ok. Lavanderia, ok. Boutique, sem movimento. Segunda feira é assim. Hotel vazio, ninguém compra nada. Mas e telefonia? Vamos voltar. Diárias, que é o mais pesado. Tudo certo. Poucos hóspedes, tarifas de acordo,  sem descontos indevidos ou estornos que necessitem justificativas. Eu saía às sete, já davam oito horas e eu lá, debruçado sobre o relatório de auditoria noturna. Que diabos. Daqui a pouco começariam a chegar os funcionários e iam começar as perguntas e o estranhamento. O que aconteceu? Tá aí até agora? Tá com diferença? Algum problema? Não, estúpida, eu é que gosto de ficar aqui olhando para o relatório até esta hora. Não, é que eu e os números nos apaixonamos e não conseguimos nos largar. Voltando. Taxa de ocupação, diária média, chart de reservas sem over. Agora, as contas. Saldos elevados, ok. Restaurante, ok. Custo médio do café-da-manhã. Tudo certo. Só a telefonia que não bate. Oito e dez. A esta altura, eu já devia estar dormindo. Até encontrar esta diferença, se for logo, nove horas. Pego o ônibus das dez, uma hora até chegar em casa, já serão onze da manhã, já terei perdido três horas de sono. A menina do administrativo chega, deposita a bolsa sobre a mesa de trabalho e me lança um olhar que acusa: “incompetente, não consegue nem fechar o relatório de auditoria”. Insuportável. Em três meses de hotel isso nunca tinha acontecido. E bem na folga do meu chefe. Vão dizer que, depois de período de experiência, não aprendi nada, e que não tenho condições de assumir sozinho a auditoria noturna com um hotel com pouco mais de vinte por cento de ocupação. Incompetente, inexperiente, burro. Ela me manda um bom dia, respondo com uma disposição inventada (simulo descontração  e despreocupação no tom de voz), ela pergunta se deu diferença na auditoria e eu respondo que sim, mas já achei. Mentira. Oito e vinte. Passam o almoxarife, o chefe de contas, o chefe de reservas. Jogaram futebol ontem à noite, hoje comentam os lances e morrem de rir. Quando acabaram de jogar, provavelmente eu já estava aqui trabalhando. Acabaram o jogo, tomaram cerveja, fora para casa, tomaram banho, dormiram, acordaram, tomaram banho de novo, comeram, voltaram para o trabalho e eu ainda estou aqui. Room service, ok. Lavanderia, ok. Diárias, ok. Taxa de ocupação, diária média, Bar da UH, Restaurante, chart de reservas, custo médio, tudo ok. Telefonia. Telefonia não. Diferença. Com esse sono que estou, não raciocino. Passa a secretária do gerente, aquela gostosa.   Passa a Governanta, o chefe de recepção afeminado. Camareiras, o pessoal de compras, controladoria. Posso procurar o administrativo e pedir ajuda. Prepotente, ele vai me pedir para esperar enquanto vai tomar café e bater um papinho com todo mundo. Vai dar sua volta diária no hotel sem esconder que está se preparando para o dia em que chegar à gerência. Só tem um jeito, se eu quiser embora e não passar por incapaz. Igualar os números. Meu chefe já me havia confidenciado que dá pra fazer. A gente entra no sistema e simplesmente altera o número. Vai mexer no acumulado. A única forma de alguém descobrir é comparando o relatório anterior com o atual. Mas isso ninguém faz, segundo me disse o chefe. Mas minha senha não tem acesso. A dele tem. E eu sei a senha dele, de tanto vê-lo digitar. O sono, quase nove horas, uma hora para chegar em casa, se eu entrar no sistema logo ainda pego o ônibus das nove. E se alguém descobrir? Digo que estava com diferença, e que eu pensei que este seria o procedimento correto. Entro no sistema com a senha do chefe, e o nome dele aparece como usuário. Ele está de folga. Sou um farsante, penso. Mas um farsante que está prestes a ser vencido pelo sono e pela necessidade de ir embora. Trabalhei a noite toda sozinho, cobrindo a folga do chefe. E não consigo fechar a auditoria. Ainda preciso imprimir os relatórios para encaminhar à gerência. Quando o gerente chega, os relatórios devem estar sobre sua mesa. Acesso a conta de telefonia, corro sobre os números com o cursor e me preparo para igualar os números e burlar o relatório quando ouço a voz do gerente que chega para o trabalho. Só estive com ele no dia da contratação. Depois, nunca mais. Chama-se Gomes. Ele entra na sala, cumprimenta a todos, me acena com a mão e pergunta se está tudo bem. Digo que sim, mas que gostaria de falar com ele. Claro, ele responde. Se aproxima, eu saio do sistema e entro de novo, para me certificar que a senha do chefe foi mesmo retirada. Ele chega à mesa e falo Seu Gomes, desculpe mas não consegui fechar a auditoria até agora porque está dando diferença na conta de telefonia. Por este motivo, quando o senhor entrar em sua sala os relatórios não estarão em cima da mesa. Por favor, me desculpe, mas continuarei tentando descobrir o que houve. A barriga acusa fome, os olhos ardem, a cabeça lateja. Ele responde Telefonia? Eu falo Sim, telefonia. O resto está tudo certo, menos a telefonia. Ainda de pé, ele me pede para ver o relatório analítico. Mostro, ele corre os números com o indicador da mão direita e para em um determinado número. Depois vira a página, vai até o último número e fala Tá aqui, ó. Esta ligação foi estornada, então você tem que deduzir do lançamento, senão vai dar diferença mesmo. Olha só, tem o valor da ligação, não tem? Agora você vem aqui no final do relatório e confere: tem o estorno. O estorno anula aquele valor. Agora bate. Viu? Enrubesço, estremeço, me ponho a ponto de chorar. Não encontro o que dizer. Em dez segundos, ele achou uma diferença que demorei quase uma noite inteira de trabalho para encontrar. Estou sentado, e ele às minhas costas, de pé. Ele pergunta se o chefe não me explicou isso. Não me lembro, respondo. E não me lembro mesmo. Ele ainda diz Agora está certo, pode imprimir os relatórios. Mas antes faça a justificativa do estorno. Dá um tapinha amigável nas minhas costas, ri e diz A culpa não é sua, é de quem te contratou. Estou arrasado. Sou mesmo um incompetente. Não sei o que será de mim no futuro. Um sujeito de quem se esperava tanto, que no entanto não consegue fechar sozinho um relatório de auditoria num hotel com pouco mais de vinte por cento de ocupação. Hoje à noite o chefe vai me dar uma bronca. Isso, se não decidir me mandar embora. Imprimo os relatórios, confiro os números da telefonia, tudo está conforme. Aponho minha assinatura no rodapé de todas as folhas. Separo em blocos, grampeio, organizo no escaninho. Nove e cinco. Perdi o ônibus. Saio sem bater o cartão de ponto, pois a ordem da administração é que, mesmo ficando até mais tarde no serviço, deve-se bater o cartão no horário previsto para a saída para evitar horas extras. A justificativa dada pela gerência é que, se o funcionário precisou ficar mais tempo, é porque não conseguiu dar conta de suas tarefas durante o horário de expediente. Saio e o dia me cega a visão. A cabeça lateja mais forte e a barriga volta a dar sinais de impaciência –e de fome. Se me mandarem embora pelo que aconteceu hoje, será uma injustiça. Seja o que Deus quiser. E como meu ônibus só voltará a passar em quarenta minutos, a melhor maneira de lutar contra o cansaço é caminhar e assim ir adiantando o retorno para casa. E é o que começo a fazer, evitando olhar para cima para que a luz do sol não me volte a escurecer as vistas.

VOTAR, VOTAR, VOTAR...


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Benilson Toniolo

Faltando sete dias para a o dia da votação, tem uma coisa nestas pesquisas de intenção de voto para presidente da República que me incomoda muito. Segundo divulgado, a presidente Dilma tem 40% das intenções de voto, contra 27% de Marina Silva e 18% de Aécio Neves. Resultado, dizem, do verdadeiro apedrejamento a que foi submetida a segunda colocada. Tanto PT quanto PSDB trataram de difamar, maldizer, caluniar e declarar mentiras descaradas sobre a personalidade, a trajetória e os planos de governo da candidata do PSB. Só faltou responsabilizá-la pela goleada sofrida pela Seleção na Copa do Mundo e acusá-la de fazer parte do rol de terroristas do Estado Islâmica. Tudo isso pelo simples fato de Marina representar, hoje, uma oportunidade real de derrotar Dilma e desalojar o PT do Palácio do Planalto.
A pesquisa mostra que a estratégia de insultos e difamações deu certo. Dilma e Aécio cresceram e Marina perdeu votos. Mas é neste ponto que reside uma questão: por quê? E a resposta é simples: porque o eleitor brasileiro é, em grande parte, uma figura que aparentemente pouco lê, quase nada se informa e nada reflete. Parar para pensar na conjuntura política eleitoral não é prática do eleitor brasileiro, que prefere decidir seu voto pela aparência dos candidatos e pelo que vê na propaganda gratuita da tevê. Grande parte do eleitorado brasileiro não votará em Marina porque ela é feia, evangélica e nunca administrou nada, como ouvi por aí.  Não vota em Aécio porque ele é gago e não convence em seus pronunciamentos, como também já me disseram. E não vota em Dilma porque ela é da “quadrilha do PT”. Ou seja, mais superficial, impossível.
Poucos votam pelas propostas, pelo planejamento ou pelos nomes dos coordenadores  envolvidos nas campanhas de cada um. Poucos consideram contextos e planos de governo. Grande parte dos brasileiros ainda vota levando em conta questões de nenhuma profundidade, como a empatia dos candidatos ou a sinceridade dos seus sorrisos. Boa oratória não faz de ninguém um administrador competente, nem permitirá que os dependentes do Bolsa Família passem a viver com dignidade, com dinheiro oriundo do próprio trabalho. Vestir vermelho não resolve a conjuntura econômica nem o caos em que se transformou a saúde pública. Ser neto de um político que marcou a história do País por sua morte inesperada não voltará a aumentar nossa taxa de exportações, nem mostrará a saída para o labirinto em que e Educação se encontra.
Votar em Dilma é aceitar que o ladrão continue a tomar conta do cofre.
Votar em Marina é aceitar seu passado de 30 anos como filiada do PT e sua pífia atuação como Ministra do Meio-Ambiente, além do fato de que ela se tornou candidata somente do dia 13 de agosto para cá devido à trágica morte do primeiro nome da chapa.
Votar em Aécio é endossar um partido que, provavelmente por também ter o telhado de vidro, se omitiu quando tinha tudo para, como oposição, impedir que o PT continuasse a sangrar com ferocidade incontrolável os cofres públicos da  Nação.
E quando as mesmas pesquisas mostram que Paulo Maluf, o palhaço Tiririca e Celso Russomanno são os lideres nas intenções de voto para deputado federal no Estado de São Paulo, confesso que desanimo.
É duro admitir, mas estou quase convencido que ainda não será desta vez que as urnas nos mostrarão uma sociedade amadurecida e verdadeiramente comprometida com nosso futuro político.

E quem diz isto não sou eu. São as pesquisas.

MIRIAM

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Benilson Toniolo

Há os que enumerem seus atores preferidos, atrizes prediletas, personagens, fazem ranking de diretores, colecionem filmes, novelas e trilhas sonoras. Há os que admiram jogadores e treinadores de futebol, preenchem tabelas de campeonatos e tenham guardada na memória,  com inequívoca exatidão, todas as escalações que fizeram a história de glórias e fracassos do seu clube do coração. Sem falar nos que citam de cor, com riqueza de detalhes e em ordem alfabética, os nomes de todas as pessoas (homens ou mulheres, ou mesmo os dois ao mesmo tempo) com quem se envolveu sexualmente durante a vida. Eu também tenho minhas listinhas, que vai de postais a livros, passando por credenciais e CD´s.
Entretanto, jornalista frustrado que sou, tenho afeto especial pelos profissionais da imprensa. E, como todo apaixonado por qualquer assunto, também eu tenho meus apetecimentos. Coleciono artigos, sublinho frases que eles escrevem e que julgo indispensáveis para minha melhor compreensão das coisas, paro o que estou fazendo para ouvir o que dizem quando surgem na tela os rostos de meus queridos –aqueles que, no fundo, eu gostaria de ser quando crescesse. Já cresci e nada construí de substancioso, mas me dedico a enumerar meus preferidos. E gosto de saber-lhes a naturalidade, a filiação, a formação, a história de vida.
Dentre os meus jornalistas preferidos, nunca apareceu o nome de Miriam Leitão, talvez pelo fato de que a economia, área em que ela atua, não esteja entre os assuntos de minha predileção e entendimento. Aliás, até bem pouco tempo, sequer considerava o caderno de Economia do jornal. Hoje, não. Não me aprofundo, pois de conhecimento prévio e técnico careço, mas também não ignoro. Informação continua sendo o que diferencia os homens em nossos dias úteis. Num futuro bem próximo, estar bem informado será equivalente a ter concluído o ensino superior. Exagero? Veremos.
Recentemente, notícias relacionadas a Miriam Leitão me fizeram deitar um olhar mais demorado e atento sobre sua biografia. O primeiro fato a causar espécie foi o fato de seu nome constar de uma suposta lista de dez jornalistas “indesejáveis” elaborada no sub-mundo do Palácio do Planalto. Ora, se o valor de um homem também pode ser medido pela qualidade das inimizades que amealhou durante sua caminhada, podemos entender que figurar numa espécie de “lista negra” do PT, apenas pelo cumprimento de sua função, que no caso de Miriam é o de trazer ao povo brasileiro a verdade sobre o que se passa na economia de seu país,  é equivalente a ganhar um Oscar.  Ser mal visto pelo PT é um atestado de idoneidade e tanto.
A segunda notícia tem ligação direta com a primeira. Um usuário de um dos computadores do Palácio do Planalto usou a rede de internet oficial para alterar os dados de Miriam na wikipedia, a enciclopédia da rede mundial. Entre os dados suprimidos, estava o fato de Miriam ter sido presa e torturada durante o regime militar. Ou seja, um servidor do governo federal, durante o seu horário de expediente, tentou retirar da biografia de Miriam um fato que ela sofreu na carne, e que ela há de levar para sempre, e cuja dor há de ecoar por suas gerações: a dor de ter sido espancada, violada e violentada pelas forças de governo de seu próprio país. A motivação do fraudador de biografias? O fato de Miriam dizer a verdade sobre os rumos de nossa economia estagnada e deficitária, em contraponto ao mar de rosas (ou céu de brigadeiro, tanto faz qual a expressão popular de que o Governo lança mão para tentar enganar a nós todos) apregoada pela voz oficial corrente.
Se o fato acima tem relação com o anterior, o próximo está também diretamente ligado a ambos. Trata-se de detalhes da tortura sofrida por Miriam quando foi presa, tornados públicos pela imprensa nacional no último final de semana. Presa enquanto caminhava, grávida, ao lado do namorado estudante de medicina em uma praia de Vitória, no início dos anos 1970, ela foi violentamente agredida por todo o corpo, esteve muito próximo de ser vítima de estupro coletivo e ficou trancada durante horas em um quarto escuro na companhia de uma serpente, uma jiboia que ela não sabia onde exatamente se encontrava –só sabia que estava lá, no mesmo quarto onde nada podia ver.
Miriam foi premiada com o Jabuti 2012 pelo livro Saga, que conta a história da estabilidade econômica alcançada pelo Brasil a partir de 1994 e que nos livrou definitivamente da inflação. Isto é, havia nos livrado, não fosse o fato de Dilma Roussef e seu governo estapafúrdio ter nos trazido de volta esta praga que tanto atraso traz ao País. Dilma, como todos sabemos, já entrou para a história como a primeira (e esperemos, última) presidente pós-ditadura a entregar o governo numa situação pior do que quando entrou.
 Além de tudo, Miriam também é autora de livros infantis, conforme fiquei sabendo ontem, durante o bate-papo de quase uma hora dela com alunos da rede municipal de ensino da cidade de Monteiro Lobato, por ocasião da quinta edição do Festival de Literatura Infantil da simpática e pequenina cidade vale-paraibana. Miriam riu, contou histórias, falou dos netos, da literatura, da importância do Sítio do Pica-Pau Amarelo em sua trajetória de vida e do amor pelos passarinhos, em especial dos passarinhos de sua Minas Gerais, retratados em sua obra de maneira tão lúdica e encantadora.
Nem os militares com seus coturnos com ponta de ferro a açoitar sua barriga de jovem grávida, nem as mãos grosseiras a ferir-lhe o corpo, nem a agonia de dividir um quarto escuro com uma serpente posta ali pelos torturadores e nem a injustiça e a covardia de governantes desleais e corruptos foram, e nem são, capazes de macular a trajetória de uma brasileira que nasceu sob o signo da denúncia e se dedica a trazer luz ao enlameado e obscuro mundo de falsas verdades que permeia a voz oficial do Brasil.

Bem vinda, pois, Miriam, ao meu seleto grupo de “admiráveis” –o que não quer dizer rigorosamente nada, mas me deixa feliz à beça.

CRER

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Benilson Toniolo

Não almoçava há pelo menos três dias. Quando abriu os olhos naquela manhã de domingo, já sabia que o jejum forçado se estenderia por, pelo menos, mais  vinte e quatro horas. Na véspera, tomara um café pela manhã, quando ainda o comércio do centro funcionava. Depois do meio-dia, nada. Havia se recolhido pouco depois e dormira um pouco. Por volta de cinco da tarde, tomou o banho gelado do chuveiro da casa em que sozinho habitava, armou-se da pasta do consórcio e saiu à rua. Já o haviam alertado para que não circulasse à noite pela Presidente Kennedy, que era perigoso, ponto de travestis, traficantes, puttanas. Mas ele foi, confiante de que naquela noite de sábado venderia um consórcio e receberia a primeira parcela à vista. Até as putas compram consórcio, certamente sonham com um carro, um vídeo-cassete, uma linha telefônica. Puta também sonha, afinal de contas. Saiu da casa na Riachuelo, desceu três quadras, chegou na avenida. Direita ou esquerda? Esquerda, sempre esquerda, apesar de se considerar de centro com tendência à direita. Mas ali ele era esquerda. Continuou caminhando, a pasta sob o braço, sozinho, aparentando pressa, homem deslocado no início da noite de sábado a caminho de um negócio. Prédios comerciais, oficinas, bares, uma padaria, funilaria, salão de cabeleireiro, garagem, tudo fechado. Cheiro de diesel. Na primeira esquina, um posto de gasolina sem clientes, dois empregados encostados em uma bomba conversavam e o encararam de longe, quando passou. Assaltante, devem ter pensado, sozinho e a  pé naquela escuridão, provavelmente trazia um revólver dentro da pasta. Passou por eles de cabeça baixa. Não olhou para trás. A fome desaparecera. Começava pela hora do almoço, depois sumira. Acordou com a barriga roncando, bebeu água da torneira, a fome sumiu de novo e não voltara. Se eu vender um consórcio hoje e receber a primeira parcela à vista, faço um lanche e na hora de prestar contas na segunda-feira digo que precisei do dinheiro para uma emergência médica. Digo que comprei remédios pra sinusite, gastrite, dor de cabeça. Peço ainda pra me adiantar a comissão da venda e descontar o que peguei. A calçada cheirava a óleo e gasolina. O céu escureceu de vez e a noite soprava um vento quente: chuva para amanhã. Presidente Kennedy movimentada, mais tarde haveria show de pagode no Independente, ele detestava pagode. Passou defronte a um hospital e seguiu caminhando sem saber para onde. Alguns metros adiante, um estalo. Porra, o hospital. Um monte de gente trabalhando. E àquela hora provavelmente o plantão estaria ainda calmo. Os acidentados, os atropelados, os suicidas e os violentados só costumam aparecer mais tarde, quando os efeitos do álcool e da cocaína já avançaram. Arquitetou seu plano e voltou. Entrou, cumprimentou o funcionário da portaria e dirigiu-se ao balcão da recepção, onde travou o seguinte diálogo com a recepcionista: Boa noite. Boa noite. Meu nome é Antonio Alvarenga, muito prazer. Sou representante do Consórcio Alfa e fui autorizado pelo doutor Paulo a vir aqui hoje a esta hora para apresentar nossos planos diferenciados de compras aos funcionários do hospital. Autorizado por quem, moço? Pelo doutor Paulo. Ele comprou quatro consórcios de nossa empresa, pedi autorização para demonstrar o plano para a equipe e ele disse que tudo bem, desde que fosse sábado, neste horário. Doutor Paulo? Sim, o doutor Paulo. O doutor Paulo pediatra? Bom, não sei se ele é pediatra, desconheço a especialidade dele. Eu até nem queria vir, veja, trata-se de um sábado à noite e minha família está toda reunida em um churrasco de batizado de minha sobrinha, mas trabalho é trabalho, você sabe, e acabei vindo. Posso entrar? Um momento, por favor. A recepcionista pegou o telefonou e discou o número um e o número dois, doze, portanto, e ele percebeu que ninguém atendeu. Ela depôs o fone, coçou ligeiramente a cabeça e disse Bom, se o doutor Paulo autorizou, o senhor pode entrar. Mas se chegar alguma emergência o senhor vai ter que sair. Claro, entendo perfeitamente, creio que posso começar por este corredor à frente. Sim, é este mesmo, só não suba as escadas porque a partir do primeiro andar ficam os pacientes internados, aqui no térreo é que ficam os consultórios. Muito obrigado. Por nada. Golpe perfeito. Em todo lugar tem alguém que responde pelo nome de Paulo. E doutor Paulo, estando-se em um hospital, é uma certeza. A excitação da genial mentira fez voltar a fome. O cheiro forte de comida que tomava conta de tudo, entretanto, causou-lhe náusea. Na primeira porta que encontrou entreaberta, duas senhoras negras e vestidas de branco conversavam. Intimidou-se. Boa noite. Boa noite. Continuou caminhando, uma jovem sentada fazia anotações. Não atrapalharia. Boa noite. Boa noite. Chegou ao fim do corredor, voltou, fez o caminho de volta e no fim do corredor deu com uma escada, e desceu os degraus até chegar á garagem, vazia e escura. Uma porta aberta e uma voz de mulher que cantava. Aproximou-se. Era a lavanderia, e uma senhora também negra como as que havia na primeira porta o recebeu com um sorriso. Ele se apresentou, apertou-lhe a mão, ficou de pé no balcão e explicou todas as vantagens do plano de consórcios. Ela agradeceu, disse que era tudo muito bom e ele teve vergonha de fazer a pergunta final: Posso preencher o contrato? Agradeceu pela atenção e saiu pela porta da garagem, tomando cuidando para não ser atropelado por alguma ambulância que eventualmente pudesse trazer, a toda velocidade, um drogado, um assassinado, um esfaqueado, um atropelado, um suicida. Voltou para casa e, antes de se lembrar de sentir fome outra vez, adormeceu ouvindo João Gilberto no walk-man.
Agora era domingo, havia sol lá fora (ele podia ver pelas frestas da veneziana), ele havia acabado de despertar e sentia muita fome. Quarto dia sem uma moeda no bolso. Quarto dia sem comida. Podia ir à Santa Casa, simular um mal-estar, dar-lhe-iam um fortificante, uma vitamina, uma comida. Pensou na família, pai e mãe, cuja casa ele havia deixado para tentar a sorte como representante comercial em uma empresa nova de consórcios que prometia revolucionar o mercado. Morava nos fundos da empresa. Não havia salário, apenas a comissão pelas vendas. Permitiram-lhe residir temporariamente na edícula existente nos fundos. Devia cuidar do imóvel em troca de poder residir ali. Omitiu tudo de todos. Não poderia assumir perante a família que havia cometido um erro. Outro erro. Ficaria ali por mais alguns dias na tentativa de, pelo menos, fazer umas duas ou três vendas que lhe permitissem passar o final de semana em casa com dinheiro no bolso. Depois voltaria, gastaria o que ainda restava da sola do único sapato, empaparia a camisa de seda com o suor de suas caminhadas sob o sol em busca de pessoas que alimentassem o sonho de obter coisas novas (uma tevê, um forno de micro-ondas, uma filmadora, um vídeo-cassete, um aparelho de som três-em-um) mas que não tinham dinheiro vivo. Para eles, só havia uma solução: adquirir um carnê de consórcio. E era o que ele tinha para vender. Era questão de sorte. Bastava saber vender para quem quisesse comprar. Mas isso era a partir de amanhã. Naquela hora ele sofria uma grande dor, que atendia pelo nome de fome. E a fome o atacava com voracidade, uma voracidade lenta e definitiva. Seria um dia a mais sem comer. Amanhã pediria a algum colega de vendas que o convidasse para almoçar em sua casa. Mais um dia sem comer ele talvez agüentasse. Pensou novamente em bater na Santa Casa. Se ficasse em observação por algumas horas poderia receber comida. Sentia sono, e sentia fome. Olhou o relógio: nove e cinqüenta. Fez as contas: se voltasse a dormir às nove da noite, seriam menos de doze horas sem comida. Afastou as cobertas, levantou-se do colchão, foi ao banheiro, urinou, penteou os cabelos e escovou os dentes. Bebeu água da torneira. Calor. Pensou que poderia ficar de plantão na esquina da padaria que havia no fim da rua. Pensou em fazer um cartaz: adquira seu consórcio aqui. Plantão de vendas. Mas plantão de vendas num domingo, na porta da padaria, ele de pé segurando uma pasta e dando bom dia para as pessoas que entravam segurando uma bolsa e saiam com a mesma bolsa, um pacote de pães fresquinhos e quentinhos e um ou dois litros de leite? Um plantão de vendas requer uma mesa, um escritório com ar refrigerado, cadeiras para que os clientes se sentem e se acomodem, pastas de documentos, um aparelho telefônico, som ambiente, panfletos. Um sujeito parado, em pé, na esquina de uma padaria, oferecendo consórcios para os transeuntes, pode até ser denunciado e preso por vadiagem, estelionato, essas coisas. Mas nada o impedia, por exemplo, de procurar um clube e pedir autorização. Pensou na aventura no hospital na noite anterior. Vergonha, mentir daquele jeito. A que ponto havia chegado. A que havia se sujeitado. Mentir, enganar pessoas. Maquiavel. Por que diabos havia se metido a fazer uma esquisitice daquelas? A fome. Só podia ser efeito da fome. Tentou evacuar, e não havia o que evacuar. Abriu a única janela do aposento, o sol ardeu-lhe a vista, sentiu breve vertigem que logo se dissipou. Vestiu bermuda e chinelo, uma camiseta, atravessou o corredor e, de posse das chaves do único portão do imóvel onde funcionava a sede da empresa, olhou a rua. Vazia. O semáforo mudava de cor sem que veículo algum passasse. Um homem de bicicleta passou assobiando. Um silêncio tomava conta do mundo na rua Riachuelo, onde morava. Do outro lado da rua, alguns metros adiante, a banca de jornais, onde ele diariamente parava para ver as manchetes do dia, estava estranhamente fechada, com as portas baixadas.  Então ele percebeu que, no pé da árvore que havia defronte à banca, qualquer coisa brilhava pelo reflexo do sol. Segundos de estranhamento. Vidro, pensou. Chaves perdidas, presilhas, um relógio ou coisa que o valha. O coração deu um salto: moedas. Moedas. Na rua, o semáforo se movimentava para veículo nenhum. Atravessou a rua e foi até a árvore. Moedas. Eram moedas. Estranhou, olhou para os lados. Ninguém. As moedas estavam depositadas cuidadosa e ordenadamente, umas sobre as outras. Ele recolheu-as, depositou-as no bolso do lado direito da bermuda e voltou para “casa”. Fechou o portão, correu para sua edícula, contou as moedas. Voltou a depositá-las no bolso, retornou ao portão, abriu somente uma pequena parte. A banca estava aberta, veículos passavam a todo instante em alta velocidade –como sói acontecer em uma rua tão movimentada como a Riachuelo. Fechou os olhos. Fome. Apertou as moedas na mão direita, limpou o suor da testa e saiu. Dirigiu-se à padaria, onde pediu um queijo quente, um suco de laranja e um café.

A terça-feira surpreendeu-o na estação rodoviária, comprando passagens para voltar à casa dos pais, a quem disse que a empresa havia fechado as portas por falência, que não lhe tinham pago os direitos trabalhistas mas que ele ia no dia seguinte procurar um advogado para poder fazer valer seus direitos. Ah, isso ia. 

Após contar esta história, o homem pousou o café sobre a mesa, mastigou o último pedaço da fatia do bolo de cenoura com chocolate e, olhando nos olhos de seu interlocutor, disse calmamente:

- E você ainda quer me convencer de que Deus não existe?   

TONINHO E SEUS PROBLEMAS

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Benilson Toniolo

Atravessou a moto alguns metros à minha frente, na exata direção onde eu caminhava e que necessariamente haveria de passar. Noite avançando, entre nove e dez horas, eu voltava a pé para casa por alguma impossibilidade de estar de automóvel. Tremi:  “ou é meu conhecido ou vai me assaltar”. Segui em sua direção (até porque não havia outra escolha), ele tirou o capacete e me saudou, chamando-me pelo nome. Como não o reconhecesse daquela distância, retribuí com um protocolar “opa!”.
Era o Toninho, com quem eu havia trabalhado há alguns anos. Disse que vinha para casa com um baita problema a atormentá-lo, pedindo a Deus que encontrasse alguém “esclarecido” (palavras dele) com quem pudesse conversar e abrir seu coração e, de repente, me vira caminhando. Milagre, só podia ser. Deus tinha ouvido suas preces.
- O senhor me desculpe interromper sua caminhada, mas é que eu gostaria de me abrir com o senhor. A situação é a seguinte. Tem um sujeito aí que está me ameaçando. Diz que vai me matar. Diz que vai ser minha sombra. Que descobriu onde eu moro, sabe quem é minha esposa, quem é minha filha e disse que antes de acabar comigo vai acabar com a minha família. Já descobriu o telefone da firma onde eu trabalho e disse que vai ligar lá amanhã pra me esculachar. Diz que antes de me matar vai me fazer perder o emprego.  Já sabe que minha mulher trabalha na Prefeitura e vai lá contar tudo pra ela, vai chamar de corna e humilhar na frente de todo mundo.
- Tá louco, Toninho, esse cara é algum doido?
- Para o senhor ver.
- Você o conhece?
- É meu amigo do facebook, mas pessoalmente eu não imagino quem é.
- E como é que ele te disse tudo isso, então?
- No facebook. Deixou tudo escrito lá.
- E há quanto tempo isso está acontecendo?
- Começou anteontem. Minha vida está um inferno. Não sei o que fazer. Estou desesperado.
- Vai na delegacia, ué. Registra um Boletim de Ocorrência. Urgente. Imprima as ameaças e anexa na queixa.
- É, né? Bem que eu já tinha pensado nisso.
- Faça isso, Toninho, com urgência. Mas afinal, ele está te ameaçando por qual motivo?
- Ele diz que estou saindo com a mulher dele.
- Então faça o seguinte. Vai lá na sua página do facebook e diga a ele, com muita educação,  que isso é uma mentira, que você não o conhece, não conhece a mulher dele, que isso é uma calúnia e que se as ameaças não pararem você será obrigado a processá-lo.
Toninho ficou quieto. Cismei.
- Peraí, Toninho. Você está saindo com a mulher dele? 
- Pois é, tem isso também.
- Isso o quê?
- Eu não sei se estou “pegando”  a mulher dele ou não.
- Como é que é isso, Toninho? Como, não sabe?
- É que o senhor sabe, né? Homem não vale nada, mesmo. Somos um bando de sem-vergonha. A gente não vale o que o gato enterra. O senhor sabe.
- Poxa, mas então é bem capaz que o sujeito que está te ameaçando tenha razão.
- Não, não, aí o senhor se engana. Se ele não dá conta do serviço, outro vem e dá. Quem não dá assistência, abre concorrência. E isso não dá razão pra ele me matar. Se ele é corno, a culpa é da mulher dele, e não minha. Tem que matar é ela, não eu.
- Mas como é que você não sabe, Toninho? Você sai com tanta mulher assim, a ponto de não saber quem é quem?
- Ah, o senhor sabe como é, né? A gente que é homem não vale nada, mesmo. A gente é tudo sem vergonha.
Depois disso, achei que era hora de retomar o rumo, afinal ainda faltava quase meia hora de caminhada no escuro e de sapatos. Ainda reforcei a necessidade de ele registrar a queixa mesmo assim, ou seja, apesar de ser grande a possibilidade de o marido estar mesmo sendo traído pela mulher. E fui imaginando que bom seria se um dia, afinal, ambos os enganados se conhecessem, já separados dos cônjuges atuais, sem nem saber quem era um e quem tinha sido o outro, e se apaixonassem, e fossem felizes e fieis. Pensando bem, a gente é que não vale nada, mesmo.
Por via das dúvidas, tratei de acertar o passo. Vai que o marido traído ainda passa pela avenida e me pega ali, batendo papo com o Toninho...

TEMPO DA POESIA

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Benilson Toniolo
O dorso branco da árvore sobre o rio repousa sobre o infinito.
Há em tudo a espera frágil do Tempo: as leves cortinas alçam seu voo aprisionado sobre a tarde lenta.
O mesmo sorriso de todo-o-dia.
Ela dorme, ou apenas repousa seu tronco, e os dois galhos superiores e desertos se cruzam a  sustentar-lhe a cabeleira de folhas negras e amorosas.
Os galhos inferiores distraidamente se entreabrem e degustam a brisa da tarde, e o breve arrepio  das coxas à nuca insinuam que a manhã já se foi, o dia pleno se despede e a tarde prepara as vestes do mundo para a imensidão da primeira lua depois que ela adormeceu.
Nem só de amor, nós vivemos.
Ela, a árvore, meneia o rosto e me olha. Ainda uma vez sorri, e sem mais gesto algum oferece seu tronco –assim mesmo, boiando, de costas e azulada como uma estrela de amuos e opacidades- para que eu registre com a tinta invisível do indicador direito o desenho de uma palavra.
Obedeço.
E eternizo na primeira curva a oração “silêncio”. O rio agora se move molemente em direção à úmida margem, levando consigo o tronco que conduz.
O que faço residir na segunda curva é o  “poema”, inédito e indizível. O rio estanca, espera que o  verso vaze todo seu sumo, e um novo arrepio das coxas à nuca anuncia que estamos sozinhos, eu e a árvore, sobre o rio.
Arrisco um “ sonho”, que apago, pois este momento requer um caminhar mais amargo.
Deito sobre a epiderme da terceira margem o signo do “tempo” e, na quarta, componho a canção “mar e montanha”. Há espaço.
Mas nem só de amor vivemos, e arrisco na última curva a sentença da “espera”.
Ela adivinha, fecha os olhos de onde o rio precipita a primeira gota de chuva, enquanto a árvore se move em soluços carregados pelas pedras que transportamos até aqui, por estradas poeirentas e distintas, provenientes de caminhos diferentes, mas que o Amor trouxe a dar no mesmo sítio.
Entre uma e outra guerra há poetas que discutem política, e o que vai nos jornais é maior que a sabiá que do pinheiro espreita o muro.
O aparelho celular desligado parece querer voltar à vida de todo dia.
As cortinas se aquietam pensativas.
E nada mais nos resta a não ser morrermos abraçados enquanto não começa a primavera.   

sábado, 27 de setembro de 2014

O ANIVERSÁRIO DO CARLÃO


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Benilson Toniolo

Meu amigo Carlão fez aniversário e no dia seguinte o convidei para um café na Abernéssia. Uma das melhores coisas de se morar em Campos do Jordão é esta possibilidade de contatos quase diários com os amigos. A gente para no meio do expediente, toma um café, conversa, de repente um outro amigo chega, participa do papo, e em quinze minutos a gente resolve todos os problemas conhecidos e parte dos desconhecidos também –se não do mundo, pelo menos da cidade. 
Chegando, dou-lhe um abraço de sinceras felicitações e um livro do Pondé –coisas que a gente só faz com quem a gente gosta muito, uma espécie de brinde à inteligência das pessoas. Carlão é desses sujeitos que, se um dia a amizade acabar por qualquer motivo, quem sai perdendo é a gente.
Ele contava que ganhara de presente um CD com a Maria Callas cantando árias célebres, entre elas a Morte da Isolda, de Wagner, uma de suas preferidas e que ele não ouvia há um tempão.  Falou do telefonema dos parentes, das mensagens dos colegas, de como ficou ouvindo o CD até tarde, dos abraços da mulher ao longo do dia, do bolinho que ela comprara no supermercado, do vinho chileno que eles abriram para brindar mas que ela disse na verdade preferir “aquele docinho da Serra Gaúcha” e de como, neste dia, ele fica comovido ao lembrar dos pais que já se foram. O Carlão é daquele tipo de gente que, à medida que envelhece, vai ficando mais interessante. É assim com certas pessoas. À medida que o tempo passa, vão revelando o que são por dentro. E o Carlão, além de ser gente finíssima, dono de uma cultura notável e um gosto artístico apurado, é um sujeito simples, pouco afeito a etiquetas sociais e que se revelava, a cada dia, um sentimental de primeira.
E a prova disso foi uma mensagem que o filho de dezessete anos postou no facebook acerca do aniversário do pai. Carlão tirou o celular do bolso, acessou o site, encontrou o texto e me mostrou. O menino fazia uma declaração de amor em que mencionava as qualidades do pai, seu temperamento, sua sabedoria e ensinamentos, a sorte que ele tinha em ser seu filho e o desejo de que o pai vivesse ainda por muito tempo. Terminava deixando um beijo no “maior pai de todos”. Lindo, eu disse, que alegria, Carlão, parabéns. Isso aí é colheita, meu amigo. Mas o Carlão não sabia se era isso. Estava tudo muito bem, tudo muito bom, mas algo não estava correto.
- Que que é, Carlão?
- Eu queria que ele tivesse falado tudo isso pra mim, entendeu? Não postar na rede social, para todo mundo ver. Queria que ele tivesse me falado tudo isso depois de um grande e apertado abraço, ou no meio dele, e me falasse tudo isso aí olhando no meu olho. Na verdade, nem sei se eu sou tudo isso aí que ele escreveu. Ele nem precisava falar tudo isso. Só um abraço e um “parabéns, pai” já seria muito bom.
Silencei por um instante. Estranhamente, o doce do café ia amargando.
- Mas ele não te deu um abraço de aniversário?
- Deu nada. Nem falou comigo. Ficou o dia inteiro trancado no quarto, acho que jogando videogame, entrando no internet, assistindo a shows no youtube. A mãe disse que ele estava estudando. Pode ser. Perto da hora do almoço saí para comprar refrigerantes e quando voltei ele tinha ido almoçar na casa de uma namorada, que na verdade eu não sei nem quem é.
- E quando voltou?
- Quando voltou, ele foi até a sala, onde eu estava, apertou minha mão e disse algo como “parabéns”. Acho que foi isso. Depois se trancou de novo.
- Mas então não foi tão ruim assim, ué!
- Mas não estou dizendo que foi ruim. Longe disso. Eu só não queria que tivesse sido desse jeito.
Ponderei: olha, Carlão, hoje em dia é assim mesmo, as pessoas se falam muito pouco, é muito diferente da nossa época, é tudo virtual, esquece essa neura e pensa nas palavras que teu filho disse, olha quanta coisa bonita, todas as pessoas que leram a postagem sabem que ele te ama, te admira, tem orgulho de ser seu filho. A diferença é que ao invés de falar, ele escreveu e botou na rede social. Mas o efeito é o mesmo, com a vantagem de que todo mundo leu. Hoje em dia é assim mesmo, é um caminho sem volta, a internet promoveu uma profunda mudança no comportamento das pessoas e nós, que somos de uma geração anterior que preza o relacionamento –olha só a gente aqui tomando cafezinho e batendo papo- acaba sentindo um pouco. Mas é questão de se habituar, fica frio. Teu filho faz parte dessa geração nova que está aí, meu amigo. O que importa é o sentimento, e não a forma como ele escolheu para expressar o que sente por você. E blá, e blá, e blá...

O Carlão ouviu tudo quieto, falou do campeonato brasileiro que estava quase no fim e pediu licença, que ainda tinha coisas pra fazer antes de buscar a esposa na saída do trabalho. Um vento quente subiu a serra e foi tomando conta da cidade, anunciando uma chuva que a gente estava pedindo faz tempo. E o Carlão saiu apressado, no meio do povo, levando consigo seu amor pelos filhos, pela esposa, pelos livros, pela música e uma saudade imensa de um tempo que sobrevive apenas no fundo do seu coração. Gente boníssima, esse meu amigo.


AS MEMÓRIAS DE GRACILIANO

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Benilson Toniolo

Dediquei os últimos meses à leitura atenta das Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos –um patrimônio inquestionável da literatura brasileira, ao lado de tantos outros. Tem quatro volumes, a obra, e narra a passagem do autor quando encarcerado sob a acusação de comunismo durante a ditadura Vargas.
O estilo direto, franco, culto, árido e áspero de Graciliano torna ainda mais crua e impactante a leitura, que vai desde a sua prisão ao momento em que, bastante debilitado, se preparava para narrar sua soltura, muito provavelmente obtioda graças ao trabalho abnegado do jurista Sobral Pinto.
A amizade com José Lins do Rego –a quem admoesta por tentar ajudá-lo-, as incertezas do futuro, a resistência às ofertas de corupção, o estado de conformismo e a revolta em permanente alternância, a doença, o tabagismo, as notícias da publicação de seus textos, todas estas passagens  servem de mote para que Graciliano registre, em sua longa narrativa, os conflitos existentes em um homem quando se vê vítima de um Estado totalitário e opressor; a finitude explícita do homem e sua condição miserável diante da injustiça e da tortura; a impotência e a desesperança que o assolam quando em contato com a ignorância, o medo e a desesperança.
Eu ignorava que Graciliano não havia concluído a obra. O leitor somente passa a tomar conhecimento disso graças ao apêndice Explicação Final, registrado por seu filho Ricardo Ramos para a edição de 1953 da José Olympio Editora, que primeiro trouxe à luz a obra do mestre. Não nego que esta descoberta, quando me preparava para encerrar a lenta e exigente leitura, tocou-me o coração de maneira singular, ao imaginar o filho preparando o final do livro que o pai não conseguiu terminar.
Tenho muito apreço por Graciliano, não somente pelo estilo e pela capacidade narrativa, mas por algumas características pessoais que parecem aproximar a sua história da minha. Primeiro, é sertanejo como meu saudoso pai. Ambos do Estado das Alagoas. Um de Palmeira dos Índios, onde foi prefeito, e o outro, de União dos Palmares, de onde saiu adulto e analfabeto, fugido da seca com os pais e mais de uma dezena de irmãos, para tentar a sorte neste inferno que chamamos de São Paulo.             

Nestes tempos de crise político-eleitoral, diria que a leitura desta obra seria como uma espécie de obrigação moral dos candidatos a algum cargo política. Diria, insisto, não fossem estes tempos não tão distantes assim daqueles em que os homens de bem eram (e são) calados à força.                                                                                                    

DE ATENDIMENTO EM ATENDIMENTO

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Benilson Toniolo

Uma coisa eu posso garantir, até mesmo por experiência própria: Campos do Jordão sempre foi reconhecida nacionalmente pela excelência dos serviços hoteleiros e gastronômicos. Quem já se hospedou nos nossos hotéis e pousadas, ou sentou-se para se dedicar à gastronomia em alguns de nossos restaurantes, pode sair reclamando de qualquer coisa, menos do atendimento dado pelos nossos profissionais. Nosso povo é ordeiro, hospitaleiro, aplicado, disciplinado e muito empenhado em atender, e em algumas vezes até em superar, as expectativas dos turistas. Não sou eu quem está dizendo. É uma constatação nacional. Quando viajo e digo que sou de Campos do Jordão, sempre tem alguém para me contar uma experiência inesquecível, e muito positiva, dos passeios que fez, das fotos que tirou, do hotel onde se hospedou, do restaurante onde comeu. Somos sinônimo de qualidade em serviços. E é isso que me preocupa.
Nas últimas duas semanas passei por nada menos do que três experiências de atendimento em restaurantes da cidade que me aborreceram bastante. Evidentemente não citarei seus nomes, mas não vai ser muito difícil, para os jordanenses, saber de quem estou falando.
Fui com a família (o pessoal de casa mais o de Guarujá, ao todo, nove pessoas) jantar em uma pizzaria de Abernéssia, que sempre freqüentávamos (reparem no tempo do verbo) pela honestidade da comida e do preço. Enquanto esperávamos a comida, os garçons, em rodinha, divertiam-se mostrando uns aos outros vídeos em seus respectivos celulares. A segunda rodada de pizza foi servida por mim, uma vez que o garçom desapareceu sem se preocupar em pedir a nenhum colega que o substituísse em sua ausência. Quando voltou, pedimos mais bebidas, que ele se esqueceu de trazer. Mas não esqueceu de voltar a se reunir com os demais garçons para continuar suas sessões de vídeos. Estávamos bem próximos de onde fica o forno. Três funcionários ali estavam, todos com celulares nas mãos, completamente alheios aos pedidos. Um entregador chegou, entrou no local onde fica o forno, retirou o capacete e o deixou sobre o balcão, exatamente onde ficam as pizzas depois de prontas. Como se não bastasse, retirava com suas próprias mãos algumas pequenas porções de azeitonas, frios e o que mais estivesse em seus respectivos potes e levava à boca. Tudo isso enquanto conversava com os colegas, num tom de voz excessivamente elevado. No caixa o filho do dono, que faz as vezes de gerente, mexia também no celular. Todos conversavam, riam e não davam a mínima para os clientes. Fui ao caixa, reclamei, pedi a conta –até porque já tinha desistido de procurar o garçom que nos atendia- e paguei, tomando o cuidado de pedir a retirada da taxa de serviço. E deixei claro, mais uma vez, o tempo do verbo.
Venho da abertura de um congresso em Capivari e, com fome, perto das dez da noite, paro numa “Casa de Delícias” (pelo menos é esse o nome que consta na placa, por mais pretensioso que seja) para fazer uma boquinha antes de voltar para casa e peço o de sempre: um suco de laranja, um misto quente e um café expresso. Apenas alguns poucos clientes ainda circulam, no que parece ser o final de um expediente que começou cedo, como acontece todos os dias. Mas cliente é cliente, e o bom atendimento deve ser uma constante enquanto as portas estiverem abertas. Levei um livro para ler enquanto esperava o pedido ficar pronto, mas não consegui me concentrar na leitura, tantas eram as risadas, as conversas em voz alta, as rodinhas de funcionários (dentro da cozinha, na área dos pães, no caixa) e os inseparáveis celulares tocando música. Aliás, por que as pessoas acham que todas as outras no mesmo ambiente são obrigadas a ouvir a mesma música que elas? Vieram o suco, feito com laranjas passadas e sem a pedra de gelo que pedi), o misto-quente (com mussarela no lugar do queijo prato e com pão velho) e o café (menos ruim que os demais acompanhamentos, mas ainda assim longe de ser bom). Fui ao caixa (a rodinha ainda estava lá, e falava alto e ria, como riem os trabalhadores da área de serviços hoje em dia!), paguei e até reclamaria, se a funcionária me dirigisse um segundo de sua atenção –mas ela se dedicava a continuar a rir com os colegas que estavam atrás dela.
Saímos de uma apresentação no Espaço Cultural Dr. Além e vamos ao Capivari comer alguma coisa. Pizza em pedaços. Duas mesas ocupadas com turistas, acomodamo-nos e fizemos nossos pedidos. Uma das funcionárias, atrás do balcão, resolve mostrar para os dois colegas um vídeo (ele de novo) que recebera de uma colega pelo uatezápe. Era um vídeo em que uma criança (parecia ser uma criança, pelo menos era uma voz de criança) proferia uma série interminável de palavrões. Acabou, todos gargalharam e, não satisfeita, ela resolveu fazer nova apresentação, como que para certificar-se do sucesso de seu patrimônio tecnológico. Os clientes fizeram que não ouviram. Olhei para trás tentando expressar um olhar de reprovação, mas nem um deles percebeu. Quando saíamos, uma das funcionárias passou por baixo do balcão e, da porta, anunciou aos colegas: “vou ali chamar a Lu pra você mostrar pra ela”. Isso, vai, responderam todos. Saímos, e enquanto me dirigia para o carro imaginei todos os trabalhadores do Capivari marchando para a pizzaria, doidos para ver o que é que havia no celular da menina, alguns já começando a gargalhar antes mesmo de chegar. 
Nas três situações, existe o fato de funcionários em horário de serviço estarem portando aparelhos celulares e a eles se dedicarem enquanto deveriam estar cuidando dos clientes. Se seus empregadores não sabem disso, é porque provavelmente estão deixando de controlar a produtividade de seus empregados durante o horário de trabalho.  Se estivessem em uma linha de produção, estariam em flagrante situação de risco, e o número de acidentados seria enorme. Como estamos falando de uma atividade onde o atendimento é o principal produto a ser vendido, o maior risco que se corre é o cliente ficar insatisfeito. Em ambos os casos, os danos ao negócio podem ser irreparáveis.
Há também o risco de a cidade passar a, com o tempo, não mais ser reconhecida pela excelências nos serviços, por pura falta de concentração do pessoal de atendimento e de pulso firme por parte dos encarregados. Afinal de contas, não é interessante para uma cidade que vive exclusivamente do Turismo ser nivelado, em atendimento, com outras onde a economia é gerada por outros meios de produção.
Uma sugestão: antes do expediente, todos os funcionários deixam seus aparelhos celulares em poder da gerência. Se receber alguma chamada urgente, o funcionário será informado. Como fazem os professores em algumas escolas.
Porque a verdade é uma só: cliente mal atendido não volta, e ainda sai falando mal. E isso é fatal para qualquer negócio. Ou, no caso, para a Cidade.

Ou então sou só eu que vou me tornando, definitivamente e a cada dia, um chato.


A VOLTA DO PAI

Benilson Toniolo


Tanto tempo depois, eis que reaparece no mesmo lugar: nos sonhos.
E está bonito, risonho, bem arrumado. O cabelo está um pouco comprido. Precisa cortar, diria a mãe.
É sempre assim: vou a caminho de algum compromisso profissional para o qual estou atrasado. Quando chego ao meu destino, ele lá está, sentado confortavelmente e muito atento ao que está a se passar: uma palestra, uma aula, uma apresentação qualquer.
Ao vê-lo, me emociono, corro em sua direção, ajoelho e o abraço longamente.
Ele fica onde está e eu me encaminho para meu compromisso.
Ah, sim: na noite passada, quando cheguei, ele sorria enquanto conversava com alguém sentado ao seu lado.
Quando o encontro, sei que ele está de volta, e tem muitas coisas para me contar.
Na noite de hoje, quando me deitar, terei o coração esperançoso e pronto para celebrar a serenidade da infância.
E sei que, de alegria e encantamento, como acontece sempre, vou chorar.

domingo, 7 de setembro de 2014

DOMINGAÇÕES DE 31 DE AGOSTO DE 2014

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Benilson Toniolo

Os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal encaminharam para o Congresso um pedido de aumento de salário. Se aprovado (alguém tem alguma dúvida que será?), cada um deles terá seu salário majorado de quase 30 mil para cerca de 36 mil mensais, mais carro com motorista, passagens aéreas e diárias quando em viagem. Há, e sempre há, outras benesses não declaradas. Só com isso, segundo os cálculos do articulista Elio Gaspari, cada ministro do STF custa para os cofres públicos a bagatela de 210 mil dólares por ano, só de salários. Nos Estados Unidos, os nove ministros da Suprema Corte custam 214 mil dólares cada, mais nada. Dirigem seus próprios veículos e pagam do próprio bolso suas despesas de viagem.


Ao contrário de Dilma Roussef, Evo Morales deve ser reeleito presidente da Bolívia nas eleições marcadas para o dia 12 de outubro. A Bolívia, nas mãos de Evo, transformou-se no paraíso das bolsas auxilio, com distribuição de renda para famílias que mantém crianças na escola, grávidas ou mulheres que acabaram de dar à luz e idosos que nunca contribuíram para o sistema previdenciário. Até aí, nenhuma novidade para nós, brasileiros. O que pouca gente sabe, e que Clóvis Rossi ressalta em sua coluna, é que a Bolívia cresceu 6,8% em 2013 e deve crescer 5,7% neste ano. De janeiro a agosto, o índice de crescimento do PIB já chegou aos 5%. ‘Estagnação econômica”, na Bolívia de Evo Morales, só se usa quando alguém se refere a países como o Brasil, por exemplo, e El Salvador –as piores nações latino-americanas quando se fala em crescimento econômico. Melhor dizendo, as duas nações que não crescem no continente. E isto é mais representativo que quaisquer pesquisas de intenção de voto.


Eliane Cantanhêde: “não há uma crise, há uma má gestão. Como Campos dizia, ‘Dilma é a primeira presidente a entregar o país pior do que encontrou. Dilma e Mantega culpam o cenário internacional. Marina, rumo à vitória, e Aécio dizem que não é bem assim e apontam quem vai aranhar o joelho, cortar o cotovelo e talvez machucar a cabeça se a economia for ladeira abaixo. O eleitor, claro”.


Secret é o nome do aplicativo para telefones celulares criado para que as pessoas possam publicar, curtir, compartilhar e comentar frases e fotos sem necessidade de identificação. Segundo seus criadores, foi criado para se tornar uma espécie de auto-ajuda, onde as pessoas pudessem pedir conselhos sem se identificar. Pois bem. Recém-chegado ao Brasil, o aplicativo se tornou um inferno para professores e administradores de escolas, devido ao fato de, justamente por não exigir identificação, servir de instrumento para que jovens, adolescentes e adultos façam uso do aplicativo para, protegidos pela película do anonimato, caluniar, difamar, constranger e criar fotomontagens envolvendo pessoas do seu círculo de amizades e, em especial, seus desafetos. Fotos, comentários e demais publicações ,em geral mentirosas e de cunho pornográfico, são compartilhadas em grande escala e transformam em um verdadeiro inferno a vida de todos. Mais do que um simples bullying cibernético, trata-se da mais pura faceta da canalhice humana.  Já há registros de tentativas de suicídio, internações e agendamento de consultas com psicólogas tanto para vítimas das postagens quanto para aqueles que não conseguem parar de usar o aplicativo.
As escolas fazem o que podem. Agendam palestras de aconselhamento com advogados que alertam para os riscos jurídicos de postagens mentirosas, tanto para os alunos quanto para os pais e responsáveis, bloqueiam o acesso ao site nas redes internas e quebram a cabeça para que incitações ao ódio, ao racismo e mensagens alusivas a comportamentos autodestrutivos comprometam o ambiente dentro da escola.
A coisa vai longe. A Justiça do Espírito Santo mandou Google e Apple suspenderem a venda do aplicativo no Estado e o removerem remotamente dos aparelhos em que estão instalados. Medida restritiva, mas limitada: nada pode impedir alguém de reinstalar o aplicativo apenas acessando o site.

Tudo isso para mostrar que estamos ainda muito longe do dia em que usaremos a internet, assim como outros recursos, somente para o que edifica e ajuda a desenvolver nossa espécie. Desconfio, enfim que somos mesmo um bicho que nasceu sob o signo da auto-destruição.


NÃO SABER, SABENDO

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Benilson Toniolo

Dois fatos importantes ligados à campanha da presidenciável Marina Silva, do PSB, ocorridos nesta semana, ligaram o sinal amarelo de que o País pode estar muito próximo de entrar numa barafunda sem volta. Ei-los:

1)      A candidata atribuiu a um “erro editorial” o trecho de seu programa de governo anunciado no dia 29 de agosto no qual manifestava apoio a propostas da comunidade LGBT, em que ela se comprometia a, se eleita, atuar em favor de projetos e emendas constitucionais  que garantiriam, entre outras questões, a aprovação de lei que criminaliza a homofobia e os direitos das uniões estáveis homoafetivas. Pressionado fortemente por setores significativos da ala evangélica representada pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus (denominação que Marina segue), contrários à luta pela igualdade de direitos das pessoas independente de suas características e tendências afetivas, o trecho foi suprimido do programa 24 horas depois. Em substituição, foi inserida a expressão “garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do mesmo sexo”, o que já é garantido pelo Supremo Tribunal Federal (STF);

2)      Marina alegou que não sabia que o jatinho utilizado por Eduardo Campos que caiu no dia 13 de agosto, matando Eduardo e sua comitiva, era bancado com dinheiro não declarado, o chamado “caixa-dois”. Neste caso, não saber é tão grave quanto saber e não fazer nada. Para deixar bem clara a gravidade de uma alegação como esta, Elio Gaspari nos lembra que Lula, em uma de suas campanhas, fez uso de dois jatinhos: um pertencia ao filho do deputado João Alves, um dos chamados Anões do Orçamento e que ficou famoso por creditar à loteria esportiva seu abissal enriquecimento pessoal (na ocasião, Alves declarou: ‘Deus me ajudou, e eu fiquei rico”). O segundo jatinho usado por Lula pertencia a uma empresa que fornecia alimentos à prefeitura de São Paulo, à época governada pelo PT. Na ocasião, Lula declarou que estavam “querendo jogar o PT na mesma lama dos outros partidos”. Lula também não sabia da existência do mensalão.

É através de situações como estas, revestidas de muxoxos, dissimulações  e rodapés de páginas e mal-entendidos nunca explicados que a gente acaba tendo uma idéia de quem os políticos são, e o que em geral escondem. Salvo engano, estamos diante de uma candidata que se reveste de uma aura de candura e de  messianismo que esconde, no fundo, a mesma essência que caracteriza a imensa maioria dos políticos brasileiros. Alegar desconhecimento diante de um fato tão importante como a existência de um caixa dois em seu partido (não, a Rede não existe, o que existe é o PSB) e mudar seu plano de governo para agradar determinada parcela do eleitorado não é mais do que vender a alma ao diabo para ganhar uma eleição. O que, em se tratando de Marina Silva, é uma contradição indesculpável.


O fato de Marina substituir Eduardo Campos, morto em um acidente aéreo, não quer dizer que exista um “plano divino, arquitetado no sobrenatural” que nos obrigue a votar nela para “que se cumpra a profecia”. Votos emocionais e sem base racional, além de perigosos, podem ser fatais para o futuro do País. Resta a nós, os eleitores, acompanhar atentamente o que vem por aí.

sábado, 6 de setembro de 2014

NÃO SOMOS A BÉLGICA

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Benilson Toniolo


Recentemente, na Bélgica, um casal, homem e mulher, foi condenado e preso por furto e fraude ao sistema financeiro do país. Eis o caso: correntistas de um banco estatal, ambos dirigiram-se a um caixa automático para fazer um saque da conta-corrente. Digitaram o valor desejado e a máquina acabou dispensando uma quantidade de dinheiro muito maior do que a que eles haviam solicitado -maior inclusive do que o próprio saldo que eles possuíam disponível na conta. Um problema técnico, portanto, como pode acontecer com qualquer equipamento. Diante daquela dinheirama toda, o que fizeram os correntistas? Ficaram com o dinheiro, mesmo sabendo tratar-se de um erro do equipamento. Ou seja, ainda que conscientes de que estavam fazendo algo errado, apoderaram-se indevidamente do que não lhes pertencia. Detectada a diferença na máquina, o banco levou o caso adiante e, muito provavelmente, procurou a justiça após tentar e não conseguir reaver o dinheiro com os clientes. Logo, cadeia neles.
Num caso como esse, a gente fica imaginando o tipo de frases que as pessoas devem proferir em sua “defesa”. “A culpa não é minha, é do banco”. “O que eu posso fazer se o banco não cuida da manutenção de suas máquinas?”. “É que me enganei com o valor”. “Fiz confusão”. “Devolver? Ih, agora já gastei”. “Pensei que fosse algum tipo de promoção, a gente pede um valor e o banco dá mais”. “Ah, e era pra devolver?”. “O banco me dá um prêmio e agora quer que eu devolva?”. “Não me lembro disso, não”. “Dinheiro? Que dinheiro?”. “Esse aí na câmera não sou eu, não”. “Mas nesse dia eu nem fui no banco...”. “Não dá pra parcelar?”. E por aí vai. Claro que, dependendo do país onde o caso se dê, é bem capaz de alguma destas justificativas ser aceita e, o processo, remetido para arquivo.
Lembrei dessa história depois de ler uma outra, não menos escabrosa e igualmente recente. O cidadão brasileiro Aldemir Bendine adquiriu, em 2010, um imóvel avaliado em 200 mil reais que pagou, segundo sua declaração de Imposto de Renda, em dinheiro vivo. O problema é que ele não conseguiu comprovar de onde saiu o dinheiro para a aquisição. Além desse valor, Bendine não explicou também em sua declaração a origem de outros 280 mil reais, o que fez com que a Receita Federal promovesse a abertura de uma investigação de suspeita de lavagem de dinheiro que poderia embasar um eventual processo. Para evitar tamanha chateação, entretanto, Aldemir preferiu tomar uma atitude mais cômoda, tanto para ele quanto para a Receita: pagou, em dinheiro vivo, no último dia 27 de agosto, uma multa de 122 mil reais, recolhimento este que encerra a investigação, evita maiores aborrecimentos e permite que tudo, afinal, se acomode.
Só um detalhe: o cidadão Aldemir Bendine é o atual presidente do Banco do Brasil, cargo que assumiu em 2009. Seu perfil, logo se vê, é diferenciado, muito diferente do obscuro cidadão belga que tentou passar a perna em um dos bancos do seu país. No Brasil, isto jamais aconteceria, não é mesmo? Afinal, não somos a Bélgica. E “fraude ao sistema financeira”, aqui e lá, pelo jeito, possuem conceitos e interpretações diferentes.



"NO CALOR DO JOGO"

www.torcedores.com.br

Benilson Toniolo

A jovem Patrícia Moreira, gremista, gaúcha, bonita, branca e muito bem empregada no setor de Odontologia da Brigada Militar do Rio Grande do Sul veio a público na última quarta-feira explicar por qual motivo foi flagrada por uma câmera de TV nas arquibancadas do estádio do Grêmio Porto-Alegrense chamando o goleiro Aranha, do Santos, de ‘macaco”, durante a partida de ida das oitavas-de-final da Copa do Brasil. A cena correu o mundo: o jogador, que é negro,  gesticulava revoltado por estar sendo ofendido por xingamentos de teor racista provenientes da torcida do time da casa, localizada atrás da trave onde ele estava. O jogo foi paralisado, representantes da equipe gaúcha se dirigiram à torcida e pediram que as ofensas parassem porque aquilo prejudicava o time, que perdia por dois a zero e precisava virar o jogo, que era eliminatório. No meio de tudo isso, uma câmera de tevê flagrou Patricinha xingando o goleiro de “macaco”, o que derruba qualquer presunção de inocência que se pudesse tentar alegar para livrar o time do pagamento de multa e exclusão da competição, o que foi anunciado pelo Superior Tribunal da Justiça Desportiva – o famigerado STJD- também na última semana.
Na entrevista coletiva de quarta-feira passada, entre um choro aparentemente sem lágrimas e uma expressão de puro desespero e arrependimento, Patricinha pediu perdão, disse que não é racista, que não tinha intenção de ofender o jogador e que fez isso porque o Grêmio, que ela ama, estava perdendo. Pediu “desculpas à nação tricolor e ao Grêmio“ e justificou: “foi  no calor do jogo”.
Ah, certo. O calor do jogo. Pois bem. Pois foi justamente no “calor do jogo” que, recentemente, um vereador corinthiano matou um palmeirense; que outros corinthianos mataram um torcedor boliviano com um rojão no meio da cabeça dentro do estádio; que um santista foi espancado até a morte numa tocaia preparada por são-paulinos; que cruzeirenses e atleticanos seguem disputando para ver qual dos times tem mais torcedores assassinados pela torcida adversária. No “calor do jogo”, Patricinha, palmeirenses e são-paulinos protagonizaram uma batalha campal inesquecível na final de uma Copa São Paulo de Juniores. No “calor do jogo”, vascaínos e torcedores do Atlético Paranaense se lincharam uns aos outros em frente às câmeras de tevê pelo Brasileirão do ano passado dentro do estádio. No “calor do jogo” dezenas de  torcedores da Juventus, da Itália, foram massacrados ao serem empurrados contra um alambrado em um estádio da Bélgica. No “calor do jogo” um jovem torcedor do Vitória  perdeu a visão ao ter os olhos atingidos por uma barra de ferro arremessada contra sua cabeça. No “calor do jogo”, Patricinha, um torcedor do Santa Cruz morreu ao ser atingido na cabeça, pasmem, por um vaso sanitário atirado do alto das arquibancadas de um estádio no Recife (você sabe onde fica Recife, Patricinha?). No “calor do jogo” homossexuais são assassinados com pedradas pelo simples fato de estarem vivos e andarem pela rua. No “calor do jogo” índios são queimados, presidiários são decapitados à vista de todos  e mendigos são destruídos na calada da noite. No “calor do jogo” há os Amarildos, os Juans  e os Bernardos de cuja existência só tomamos conhecimento quando suas tragédias e seus assassinatos, cometidos pelo Estado, são anunciados no jornal. No “calor do jogo” o governo brasileiro comprometeu o orçamento do País na construção de estádios colossais para uma Copa do Mundo deficitária e que decretou o fim dos tempos gloriosos da Seleção Brasileira de Futebol –a mesma Copa que foi recusada pelo Presidente João Figueiredo, o último, grotesco e mais folclórico dos presidentes militares, que se recusou a organizar o Mundial de 1986 por não concordar com o risco financeiro que isso representaria para o País. No “calor do jogo” o assassinato de torcedores por torcedores rivais deixou de virar escândalo. No “calor do jogo” amizades se acabam por causa de futebol. No “calor do jogo” o futuro de milhares de crianças brasileiras desaparece, porque os meninos deixam de lado os estudos para tentar a carreira de jogador de futebol, comprometendo muitas vezes o futuro de toda a família que concentra seus esforços e seu parco capital no sonho do menino em ficar milionário chutando uma bola. No “calor do jogo” é que jogadores iletrados, incultos e arrogantes são tratados como semi-deuses, em detrimento de profissionais como os professores e cientistas, estes sim, que lutam diariamente para levar o País adiante apesar das condições muitas vezes subumanas de trabalho e de salário. No “calor do jogo” ‘é que governos de todas as siglas e matizes usam dinheiro não-declarado para comprar apoio de parlamentares inescrupulosos. No “calor do jogo” é que pessoas morrem na porta de hospitais por falta de médicos e de medicamentos. No “calor do jogo”, Patricinha, é que ficamos com peninha de você, fanática pelo seu time, cheia de chapinha no cabelo e que acha que porque seu time, que você chama de “imortal”, está perdendo, você pode ofender as pessoas e chamar de “macaco” alguém que você considera inferior por ter a cor da pele diferente da sua.
Mas fique tranqüila. Provavelmente, nada acontecerá com você e nenhuma punição lhe será imputada, e você poderá guardar para o futuro um álbum cheio de fotografias e reportagens para poder mostrar para os netos,orgulhosa por um dia ter sido celebridade num país de sociedade hipócrita e, em alguns casos, permissiva. E, claro, bonito por natureza.