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Benilson Toniolo
Quase oito da manhã e
nada de o relatório fechar. A diferença estava no setor de telefonia. Eu tinha
trabalhado a noite inteira na auditoria do hotel e nada de os números entrarem
num acordo. Vamos pela ordem. Room service, ok. Bar da UH, ok. Lavanderia, ok.
Boutique, sem movimento. Segunda feira é assim. Hotel vazio, ninguém compra
nada. Mas e telefonia? Vamos voltar. Diárias, que é o mais pesado. Tudo certo.
Poucos hóspedes, tarifas de acordo, sem
descontos indevidos ou estornos que necessitem justificativas. Eu saía às sete,
já davam oito horas e eu lá, debruçado sobre o relatório de auditoria noturna.
Que diabos. Daqui a pouco começariam a chegar os funcionários e iam começar as
perguntas e o estranhamento. O que aconteceu? Tá aí até agora? Tá com
diferença? Algum problema? Não, estúpida, eu é que gosto de ficar aqui olhando
para o relatório até esta hora. Não, é que eu e os números nos apaixonamos e
não conseguimos nos largar. Voltando. Taxa de ocupação, diária média, chart de
reservas sem over. Agora, as contas. Saldos elevados, ok. Restaurante, ok.
Custo médio do café-da-manhã. Tudo certo. Só a telefonia que não bate. Oito e
dez. A esta altura, eu já devia estar dormindo. Até encontrar esta diferença,
se for logo, nove horas. Pego o ônibus das dez, uma hora até chegar em casa, já
serão onze da manhã, já terei perdido três horas de sono. A menina do
administrativo chega, deposita a bolsa sobre a mesa de trabalho e me lança um
olhar que acusa: “incompetente, não consegue nem fechar o relatório de
auditoria”. Insuportável. Em três meses de hotel isso nunca tinha acontecido. E
bem na folga do meu chefe. Vão dizer que, depois de período de experiência, não
aprendi nada, e que não tenho condições de assumir sozinho a auditoria noturna
com um hotel com pouco mais de vinte por cento de ocupação. Incompetente,
inexperiente, burro. Ela me manda um bom dia, respondo com uma disposição
inventada (simulo descontração e
despreocupação no tom de voz), ela pergunta se deu diferença na auditoria e eu
respondo que sim, mas já achei. Mentira. Oito e vinte. Passam o almoxarife, o
chefe de contas, o chefe de reservas. Jogaram futebol ontem à noite, hoje
comentam os lances e morrem de rir. Quando acabaram de jogar, provavelmente eu
já estava aqui trabalhando. Acabaram o jogo, tomaram cerveja, fora para casa,
tomaram banho, dormiram, acordaram, tomaram banho de novo, comeram, voltaram
para o trabalho e eu ainda estou aqui. Room service, ok. Lavanderia, ok.
Diárias, ok. Taxa de ocupação, diária média, Bar da UH, Restaurante, chart de
reservas, custo médio, tudo ok. Telefonia. Telefonia não. Diferença. Com esse
sono que estou, não raciocino. Passa a secretária do gerente, aquela
gostosa. Passa a Governanta, o chefe de
recepção afeminado. Camareiras, o pessoal de compras, controladoria. Posso
procurar o administrativo e pedir ajuda. Prepotente, ele vai me pedir para
esperar enquanto vai tomar café e bater um papinho com todo mundo. Vai dar sua
volta diária no hotel sem esconder que está se preparando para o dia em que
chegar à gerência. Só tem um jeito, se eu quiser embora e não passar por
incapaz. Igualar os números. Meu chefe já me havia confidenciado que dá pra
fazer. A gente entra no sistema e simplesmente altera o número. Vai mexer no
acumulado. A única forma de alguém descobrir é comparando o relatório anterior
com o atual. Mas isso ninguém faz, segundo me disse o chefe. Mas minha senha
não tem acesso. A dele tem. E eu sei a senha dele, de tanto vê-lo digitar. O
sono, quase nove horas, uma hora para chegar em casa, se eu entrar no sistema
logo ainda pego o ônibus das nove. E se alguém descobrir? Digo que estava com
diferença, e que eu pensei que este seria o procedimento correto. Entro no
sistema com a senha do chefe, e o nome dele aparece como usuário. Ele está de
folga. Sou um farsante, penso. Mas um farsante que está prestes a ser vencido
pelo sono e pela necessidade de ir embora. Trabalhei a noite toda sozinho,
cobrindo a folga do chefe. E não consigo fechar a auditoria. Ainda preciso
imprimir os relatórios para encaminhar à gerência. Quando o gerente chega, os
relatórios devem estar sobre sua mesa. Acesso a conta de telefonia, corro sobre
os números com o cursor e me preparo para igualar os números e burlar o
relatório quando ouço a voz do gerente que chega para o trabalho. Só estive com
ele no dia da contratação. Depois, nunca mais. Chama-se Gomes. Ele entra na
sala, cumprimenta a todos, me acena com a mão e pergunta se está tudo bem. Digo
que sim, mas que gostaria de falar com ele. Claro, ele responde. Se aproxima,
eu saio do sistema e entro de novo, para me certificar que a senha do chefe foi
mesmo retirada. Ele chega à mesa e falo Seu Gomes, desculpe mas não consegui
fechar a auditoria até agora porque está dando diferença na conta de telefonia.
Por este motivo, quando o senhor entrar em sua sala os relatórios não estarão
em cima da mesa. Por favor, me desculpe, mas continuarei tentando descobrir o
que houve. A barriga acusa fome, os olhos ardem, a cabeça lateja. Ele responde
Telefonia? Eu falo Sim, telefonia. O resto está tudo certo, menos a telefonia.
Ainda de pé, ele me pede para ver o relatório analítico. Mostro, ele corre os
números com o indicador da mão direita e para em um determinado número. Depois
vira a página, vai até o último número e fala Tá aqui, ó. Esta ligação foi
estornada, então você tem que deduzir do lançamento, senão vai dar diferença
mesmo. Olha só, tem o valor da ligação, não tem? Agora você vem aqui no final
do relatório e confere: tem o estorno. O estorno anula aquele valor. Agora
bate. Viu? Enrubesço, estremeço, me ponho a ponto de chorar. Não encontro o que
dizer. Em dez segundos, ele achou uma diferença que demorei quase uma noite
inteira de trabalho para encontrar. Estou sentado, e ele às minhas costas, de
pé. Ele pergunta se o chefe não me explicou isso. Não me lembro, respondo. E
não me lembro mesmo. Ele ainda diz Agora está certo, pode imprimir os
relatórios. Mas antes faça a justificativa do estorno. Dá um tapinha amigável
nas minhas costas, ri e diz A culpa não é sua, é de quem te contratou. Estou
arrasado. Sou mesmo um incompetente. Não sei o que será de mim no futuro. Um
sujeito de quem se esperava tanto, que no entanto não consegue fechar sozinho
um relatório de auditoria num hotel com pouco mais de vinte por cento de ocupação.
Hoje à noite o chefe vai me dar uma bronca. Isso, se não decidir me mandar
embora. Imprimo os relatórios, confiro os números da telefonia, tudo está
conforme. Aponho minha assinatura no rodapé de todas as folhas. Separo em
blocos, grampeio, organizo no escaninho. Nove e cinco. Perdi o ônibus. Saio sem
bater o cartão de ponto, pois a ordem da administração é que, mesmo ficando até
mais tarde no serviço, deve-se bater o cartão no horário previsto para a saída
para evitar horas extras. A justificativa dada pela gerência é que, se o
funcionário precisou ficar mais tempo, é porque não conseguiu dar conta de suas
tarefas durante o horário de expediente. Saio e o dia me cega a visão. A cabeça
lateja mais forte e a barriga volta a dar sinais de impaciência –e de fome. Se
me mandarem embora pelo que aconteceu hoje, será uma injustiça. Seja o que Deus
quiser. E como meu ônibus só voltará a passar em quarenta minutos, a melhor
maneira de lutar contra o cansaço é caminhar e assim ir adiantando o retorno
para casa. E é o que começo a fazer, evitando olhar para cima para que a luz do
sol não me volte a escurecer as vistas.