domingo, 22 de junho de 2014

OS MALES EVENTUAIS DA SINCERIDADE

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Benilson Toniolo

Já me haviam adiantado o assunto: uma cidadã de nome Andrea procuraria a Secretaria para falar sobre seu trabalho de cantora de músicas evangélicas. Mais uma? Isso pega, pensei.
No dia e hora agendados, ela chegou. Miúda, jovem e com o semblante sério, trajando o que parecia ser sua melhor roupa, fez-se anunciar, sentou-se e aguardou. Nas mãos, uma pasta plástica. Parecia tensa.
Chamei-a, conduzi-a à sala. Nervosa, tremia. Algo ali parecia fora de controle. Começamos a conversar.
Cantava música gospel. Mas não sabia se cantava bem. Não compunha. Gostava de cantar. Fazia-lhe bem. Mas não sabia se era aquilo. Não sabia se era este seu caminho. Gostaria que alguém especializado a ouvisse cantar para ela ter certeza. Gostaria de aprender a cantar. Que alguém lhe ensinasse. Não sabia ler partituras. O que é partitura?, perguntou.
Não disfarçava o nervosismo. E eu não conseguia entender, no fundo, em que é que poderia ajudar. Vez por outra, fazia menção de chorar. Olhos úmidos.
Perguntei se trabalhava. Que não. Se era casada. Que não. Se tinha filhos. Que sim, um só, chamado Gabriel, de nove anos. Se morava com os pais. Que sim, com a mãe, que havia se separado do pai, que por sua vez sofrera um derrame recentemente e estava na casa de parentes em Minas. Andrea engravidara de Gabriel quando tinha quinze anos. O pai da criança, então seu namorado, na ocasião era casado, pai de outros filhos e tinha quarenta e cinco anos. Hoje tem cinqüenta e quatro, e não se sabe seu paradeiro. Ela cria o filho sozinha, com alguma ajuda da mãe. O pastor de sua igreja costuma lhe dizer que ela estará em pecado para o resto da vida. A mãe, que frequenta a mesma igreja, na maioria das vezes é indiferente ao neto e já chegou a chamar a filha de ‘minha vergonha’. Andrea sabe disso porque lhe contaram. Está sem emprego há quase um ano. No último serviço, de camareira em uma pousada, não passou do período de experiência porque mudaram seu horário de trabalho para o período noturno, e ela não tem com quem deixar o filho, uma vez que nem sempre pode contar com a ajuda da mãe, quando esta se dispõe. Tem uma amiga que de vez em quando lhe empresta algum dinheiro. Esta amiga é diarista em casa de turistas e sempre que pode leva Andrea para ajudar. Enquanto ajuda a amiga, ela canta suas músicas. Nestes momentos, é feliz. Mas ela quer mais. Quer virar cantora profissional. Cantar no programa do Raul Gil. Não gosta muito de ir aos cultos. Acha que o pastor, quando prega seus sermões, a acusa indiretamente. Ela sofre. E chora. Naquele momento, enquanto contava sua história, Andrea chorava copiosamente. Desabou sobre a mesa onde conversávamos todas as lágrimas represadas. Era muita água, o que ela depositava sobre a mesa. Sobre a sala. Sobre mim. Sobre a vida. As lágrimas da menina pareciam querer inundar a Montanha.
Pedi licença ao assessor que nos acompanhava. Fechei a porta. Segurei-lhe as mãos em concha. Procurei acalmá-la, busquei um copo d’água (um não, dois, para tentar repor parte do estoque que seus olhos haviam derramado), contei-lhe parte da minha história, que não tinha a menor ínfima parte dos dramas contidos na dela. Do meu amor pela literatura, do sonho, das dificuldades, de querer ser escritor e ganhar a vida com isso. E procurei, a meu modo, orientar-lhe o caminho. Ela precisava, antes de mais nada, arranjar um emprego. Ganhar dinheiro. Dar segurança a ela e ao filho. Depois, estudar, procurar continuar –e concluir, se possível- os estudos. E, se a igreja lhe fazia mal, que procurasse outra. Mas que mantivesse a fé, que fé é fundamental e sem ela ninguém vive direito. Que procurasse compreender a mãe, que mãe nenhuma é ruim, que cada mãe ama de um jeito. E que, no meio e durante isso tudo, seguisse cantando, se mal ou bem, não interessava. O importante era cantar, que sem arte também não se vive. E que depois que tudo tivesse se ajeitado, ela procurasse aprender sua arte, aperfeiçoar sua voz e dar asas a seu canto.
Ela abraçou-me forte e demoradamente. Agradeceu em demasia. Saiu. Chorando, sempre. Informei ao Gabinete que a munícipe havia sido atendida. E ela sumiu. Nunca mais a vimos. Não telefonou, não mandou e-mail, não voltou na Secretaria. Vida que segue.
Até que me disseram, um dia, que ela havia “aparecido” num programa de rádio. Num momento em que se reclamava dos serviços da Prefeitura, ela telefonou para o programa para dizer que tinha ido falar comigo, e que eu havia destruído todos os seus sonhos. Que não a atendera direito. Que eu tentara fazê-la desistir da idéia de cantar. Que eu tinha sido irônico, arrogante e havia tentado humilhá-la na frente de outras pessoas. Que eu sequer dera-lhe oportunidade de mostrar sua arte. O apresentador ficou bravo. Falou do meu salário. Disse que eu ficava sentado com a bunda na cadeira e não me preocupava com os outros. Que esta era a imagem do governo. E isso. E aquilo. E mais aquilo outro. E que, ele sim, ia ajudar a menina a realizar seu sonho. Já que o Secretário não ajudava, ele ia ajudar. Onde já se viu.

Bem, ninguém disse que seria fácil. Nem mesmo Deus, no momento da criação do homem, garantiu que dali ia sair coisa que prestasse. O saldo disso tudo? Não faço a mínima idéia. E na falta do que melhor fazer, trato de acrescentar mais um item na longa e amarrotada lista de experiências. No final, é o que conta, não? 

SABADANAÇÕES - 21 DE JUNHO DE 2014

  Benilson Toniolo

Feriado de Corpus Christi é sinônimo de cidade lotada de turistas. E quando digo lotada, é lotada mesmo. De a gente não conseguir se locomover no trânsito. Dias que no final acabam sendo muito produtivos, sobretudo se o vivente tiver adquirido, ao longo da vida, uma natureza caseira e contemplativa como a minha. Tem dias, enfim, que me sinto em condições de dar uma palestra a Domenico de Mais sobre ócio criativo. E este em que estamos é um dia tipicamente benilsístico, por assim dizer.
Logo cedo, dedico-me à leitura da Folha. E é refletindo sobre o que nela li que pretendo passar boa parte deste dia (ainda mais que um incômodo inesperado surgiu na parte posterior do joelho esquerdo, impossibilitando a caminhada a que tenho me dedicado diariamente, após as primeiras sessões de fisioterapia).

Depois de surgir com uma alternativa viável num país cansado da polarização da disputa entre PT e PSDB, Eduardo Campos e seu PSB parecem, a cada dia, propor um desafio de lógica aos brasileiros que acompanham e procuram entender a cena política. Isto porque, logo depois de confirmar sua coligação com o PT para a candidatura de Lindbergh Farias ao governo do Estado do Rio de Janeiro, anuncia sua coligação em São Paulo justamente com o PSDB para a reeleição de Geraldo Alckmin. Ou seja, as decisões do partido parecem pender de acordo com as possibilidades de visibilidade que terão em cada Estado. Mais difícil ainda de entender quando vemos Marina Silva, a vice de Campos, explicitar sua indignação com o que é definido pelo Partido –ela que se declara abertamente favorável a que o partido tenha candidatura própria no maior números possível de Estados da Federação, e que no entanto parece sequer ser consultada quando da tomada de decisões estratégicas importantes. Pode-se acusar o PSB de tudo, menos de colaborar para a mesmice do cenário eleitoral brasileiro. A apenas três meses das eleições, resta saber como se comportará o candidato à presidência Eduardo Campos, subindo em palanques tão diferentes e separados por cerca de 01h de ponte aérea. Parece claro que a aliança Campos-Marina começa a fazer água. Quem tudo quer...

Ponto para André Senger, falando de política e economia: “Enquanto o espetáculo da Copa do Mundo se desenrola a olhos vistos, distraindo um pouco dos problemas cotidianos, no mundo menos glamouroso da política real desenha-se um cenário preocupante. Se nada mudar, quando o país sair do sonho futebolístico vai se ver em meio a uma turbulência de longa duração.”

Para acabar de vez com a discussão em torno do fato de o resultado da Seleção Brasileira na Copa do Mundo interferirá ou não nas urnas, George Helal (que, se não me engano, foi presidente do Flamengo): em 1998, o Brasil foi goleado na final pela França e FHC foi reeleito. Em 2002, o Brasil foi campeão e a oposição venceu, com Lula. Em 2006, perdemos, e Lula foi reeleito. E em 2010, com nova eliminação, Lula elegeu Dilma, sua sucessora. O país não se contenta mais somente com bola na rede.

À revelia do Secretário de Estado da Segurança Pública, Fernando Grella, e por conseguinte do Governador Geraldo Alckmin, a Polícia Militar celebrou um ‘acordo’ com os manifestantes do Movimento Passe Livre, o MPL, de acompanhar à distância a manifestação realizada pelo grupo no último dia 19, na zona oeste de São Paulo. Resultado: com a infiltração dos black blocks, agências bancárias e estabelecimentos comerciais foram invadidos e depredados, gerando um prejuízo superior a 3 milhões de reais, sem que houvesse qualquer reação por parte da PM para impedir, ou mesmo reprimir, a violência e o pânico generalizado.
Ao Secretário, pobrezinho, coube somente assumir em público, no dia seguinte, sua condição de ‘marido traído’ (aquele que é sempre o último a saber) que leva junto ladeira abaixo o próprio Governador –ambos perdidos e pegos de surpresa.
A Polícia Militar, conhecida entre outras coisas por sua celeridade na apuração de casos internos de quebras de hierarquia, ingerência e omissão cometidos por gente de sua tropa, deve uma resposta à população paulista, que é quem a sustenta. Já ao Governo do Estado, cabe afastar imediatamente o comandante da corporação responsável por celebrar e cumprir um ‘acordo’ que soa, no mínimo, estranho. Pra não dizer inconseqüente e desastroso.
Ao povo, resta engolir mais este nédio batráquio espinhudo.

No fim das contas, a verdade é que a falta de líderes reais (e não de mentirinha) continua a fazer muito mal a este país.

sábado, 21 de junho de 2014

RELAÇÕES HUMANAS NO TRABALHO: UMA EXPERIÊNCIA MARCANTE


Benilson Toniolo

É comum que a gente demore um pouco –ou até resista um pouco- a reconhecer a importância das relações humanas no trabalho. Estamos tão preocupados com o resultado final de nossas ações e tão comprometidos com o foco, que deixamos de lado o processo. E, na grande maioria das vezes, é justamente por falhas durante o planejamento e execução do processo que o resultado deixa de ser alcançado. E quando isto acontece, o normal é ocorrer uma verdadeira ‘caça às bruxas’, procurando identificar culpados. Poucas vezes nos debruçamos sobre um fracasso com olhos neutros, buscando entender o que deu errado para, da próxima vez, acertarmos. Procurar culpados é o primeiro passo para a desmotivação e o desfazimento de equipes que, muitas vezes, poderiam gerar bons resultados se fossem trabalhadas com mais atenção por seus lideres.
Um resultado negativo no trabalho começa, muitas vezes, pelo fracasso nas relações humanas. Uma equipe cujos membros não se gostem, ou que tenham diferenças entre si que não tenham sido equacionadas, que não esteja motivada e comprometida, dificilmente chega a um resultado positivo.
Até aí, nenhuma novidade. Podemos até achar que se trata de mera retórica de especialistas em administração, mas vejam esta experiência que tive com uma equipe de atendimento em um hotel em que atuei nos anos 1990.
A equipe era eficiente. Não era brilhante, nem mesmo excelente. Era uma boa equipe, com altos e baixos, como geralmente acontece. Atendia direitinho e cumpria satisfatoriamente suas atribuições. Dava entrada e saída de hóspedes, abria e fechava contas, arquivava documentos, controlava o follow de reservas, relacionava-se bem com os outros setores. Davam-se muito bem entre si. Alguns eram amigos, freqüentavam as casas uns dos outros, saiam juntos, riam. É claro que alguns se destacavam sobre outros. Sempre é assim.Não havia registro de reclamações dos clientes quanto a atendimento. Mas, na minha opinião, faltava um algo mais. Faltava um plus. O diferencial. Aquilo que faz com que uma equipe deixe de ser somente boa para ser inesquecível. Diferenciada. Que se destacasse entre as equipes dos outros hotéis da cidade. Faltava, na minha opinião, uma atençãozinha maior ao detalhe, à necessidade de cada hóspede, um cuidado diferente para que o cliente se sentisse, mais do que bem atendido, bem tratado. A equipe fazia, e muito bem feito, o arroz-com-feijão. Mas faltava o molho, o toque especial que haveria de tornar o prato uma experiência inesquecível. Como gestor, eu entendia que faltavam, no atendimento, algumas atitudes que fariam daquela equipe não somente uma equipe eficiente, mas uma equipe capaz de encantar os clientes. E eu não estava conseguindo. Dava treinamentos, palestras, chamei consultores, especialistas. Gente que tinha uma mensagem a passar. E não dava certo. A equipe chegara, pelo visto, ao seu limite. E daí não passava. Comprometido com o resultado, eu me angustiava. Como uma equipe daquelas não conseguia alcançar o objetivo? Mudanças eram necessárias. Mas quais?
Numa ocasião, surgiu a necessidade de implantação de um novo sistema informatizado. E, para surpresa geral, grande parte da equipe revelou relevante dificuldade em assimilar o treinamento e a instalação do método. O que era uma impressão passou a se constituir em algo inquestionável e claro: era preciso reforçar a equipe.
Abrimos processo seletivo e, em determinado momento, surgiu à minha frente o Aldo. Bem falante, articulado, com alguma experiência na área de atendimento, disponibilidade de horário, fluente em inglês e japonês (morara por cerca de dois anos no Japão), além de bons conhecimentos em espanhol, era o candidato dos sonhos de qualquer gestor. Idealista, planejava ingressar num curso superior de Administração de Empresas e, depois de formado, mudar-se para os Estados Unidos. Detalhe: ninguém na equipe falava outra língua. Levantamos dados nos empregos anteriores e o contratamos, antes que alguém o fizesse.
Em três meses de trabalho, os resultados apresentados por Aldo eram dignos de alguém que estava claramente acima do seu cargo. Vejamos: além de assimilar o novo sistema com singular facilidade, disponibilizou-se a treinar os colegas, permitindo assim que dispensássemos o técnico responsável pela implantação, e que recebia por dia trabalhado. Inseriu sozinho todas as reservas no sistema –que, até então, eram feitas de forma manual, em formulário próprio e burocrático. Criou uma planilha para controlar as entradas sem reserva, e uma espécie de ranking entre os colegas. Cadastrou os hóspedes, a programação de eventos, o histórico de veículos, informatizou o Livro de Ocorrências, instalou um módulo de ‘treino’ do software, atualizou formulários, escalas de trabalho, livro-caixa, pediu orçamentos, deu dicas à equipe de segurança, fez back-up da auditoria. Aldo era um fenômeno. Comecei a ficar desconfiado: como é que um profissional daquele porte tinha ficado desempregado? Por via das dúvidas, enquanto ele ainda cumpria seu período de experiência, solicitei ao pessoal do RH que conferisse novamente sua vida profissional pregressa. Felizmente, nada havia que o desabonasse.
A coisa estava indo tão bem que me acomodei e ‘esqueci’ o restante da equipe. E, quando dei por mim, problemas sérios haviam surgido. O ambiente de trabalho havia mudado, e o primeiro sinal disso eram as reclamações dos hóspedes quanto a pedidos que não eram atendidos, ou mal-atendidos. Passei a observar melhor e notei que a equipe se desunira. Havia rusgas, respostas atravessadas, cinismo, pouco-caso, dissimulação, impaciência. Os cadastros estavam errados e, o sistema, subutilizado. Todos os controles criados por Aldo estavam desatualizados. E as reservas passaram a ser registradas em folhas soltas, separadas. Não se usava nem mais o antigo formulário.
Chamei a equipe, e não foi preciso muito tempo para entender que o problema era o novo contratado. Observando um pouco mais atentamente, pude constatar que Aldo era um sujeito, como se diz, ruim de se conviver. Áspero, irônico, impaciente, desorganizado e dono de um ego do tamanho do prédio, comportava-se como se todos os demais fossem inferiores. Gabava-se da aproximação dele comigo. Considerava-se um privilegiado instalado no topo da cadeia. Liguei para a sede da empresa e pedi uma reunião com o Gerente de Recursos Humanos. Narrei-lhe a situação, e ele foi enfático: “se ele não sabe trabalhar em equipe, não é bom. Dispense”.
Não o fiz por achar que, acompanhando o caso de forma mais próxima, conseguiria reverter o quadro. Não consegui. Chegamos a um ponto em que alguns membros de equipe deixaram de se falar. Além do mais Aldo revelou-se, entre outras coisas, um profissional desonesto e caluniador. Cinco meses após contratá-lo, demiti-o, e me vi com uma equipe inteira nas mãos a ser reconstruída –e reconquistada.

Tudo isto devido à falta de acompanhamento do processo. Do meio. Do durante. Do dia-a-dia, das rotinas, do andamento das atribuições cotidianas, que é onde se encontra a chave para que o resultado seja alcançado. Tudo isto porque nos furtamos, na maioria das vezes, a ouvir os que caminham ao nosso lado. Mas principalmente por, muitas vezes, dedicarmos tanto esforço ao momento de alcançar a linha de chegada, sem atentar para as armadilhas presentes na caminhada.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

UMA CARONA PARA O CAPIVARI

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Benilson Toniolo

Num raro dia em que não estou atrasado, me encontro encostado no carro esperando Simone sair do trabalho. Olho o movimento, repassando mentalmente as pendências do dia. E eis que o menino vem descendo lá da Vila Sodipe, roupinha simples, mochila nas costas, a caminho da avenida. Pequenino, deve ter uns dez anos, se muito. Passa por mim, olhos fixos à frente, nem me dá bola. Concentrado, pensamento distante, carinha séria. De repente se volta:
- O senhor está indo para o Capivari?
- Não, não, estou indo para o Portal.
- Ah.
Ele para, senta na rampa da calçada. Continua sem me olhar. Parece muito preocupado -até demais, para alguém da sua idade. Pergunto como se chama.
- Lucas.
Pausa.
- É que se o senhor fosse para o Capivari, eu ia pedir uma carona.
Simone ainda não desceu. Já deveria, pelo horário, ter saído para o almoço. Quando não sou eu quem se atrasa, é ela. Preciso ainda abastecer o carro, ir ao banco, comprar umas coisinhas para casa. Reuniões às duas e às quatro e meia. Evento da Secretaria à noite. Faz calor.
- E passe de ônibus, o senhor tem algum pra me arranjar?
- Não tenho. O que é que você vai fazer no Capivari?
- A patroa da minha mãe comprou meu material escolar, porque a gente não tem dinheiro, e minha mãe me mandou ir lá buscar, porque a professora falou que se amanhã eu não levar o material não vou poder assistir aula. E a mulher só vai estar lá hoje até três horas.
- E o que é quem dentro dessa mochila aí?
- Não tem nada, não. É pra trazer o material.
- Lucas, e porque é que ao invés de ficar pedindo carona, passe de ônibus, você não pede logo o dinheiro pra pagar a passagem?
- Ah, não. Aí era capaz de o senhor me xingar...

Dei o dinheiro, claro. E ele até agradeceu, ainda que meio envergonhadamente. E foi, com sua mochilinha às costas, sua roupinha surrada, caminhando resoluto em direção ao ponto de ônibus. Súbito, me flagrei dando um tapa na testa: esqueci de dar também o dinheiro da passagem de volta. Procurei-o com os olhos, mas o Lucas já estava embarcando no ônibus.

A NOITE MÁGICA DO TEATRO MÁGICO

Benilson Toniolo


Fernando Anitelli, o líder da trupe d’O Teatro Mágico, costuma dizer que o grupo “não faz shows, mas celebrações à vida”. E está certo. Prova disso foi o que aconteceu ontem à noite, aqui em Campos do Jordão: liderado por ele, o TM conduziu por duas horas uma grande “celebração” que contou com a participação especialíssima de quase duas mil pessoas que cantavam e dançavam sob um frio congelante de sete graus, na abertura do Festival de Música da Fundação Lia Maria Aguiar, evento que conta com apoio da Prefeitura e que proporcionará a jordanenses e visitantes espetáculos musicais durante o feriado de Corpus Christi.
Foi lindo. Crianças pequeninas –alguns, pouco mais que bebês-, adolescentes, adultos e gente de cabeça branca (as “crianças nascidas faz tempo”, como diz uma das canções do grupo) toparam o convite feito por Anitelli, e protagonizaram um encontro raro em que não havia, simplesmente, o artista e seu público. Mais do que isso: com sua postura em palco e o domínio absoluto da noite, o grupo elevou ao grau máximo o conceito de “interatividade”. Durante e, principalmente, ao final do espetáculo, banda e público se fundiram num só elemento. Mesmo o problema técnico havido no violão de Fernando durante a execução de uma música, acabou servindo de mote para que o público, uma vez mais, tomasse o lugar do artista e entoasse em uníssono a canção até quase o final. O artista tornou-se, naquele momento, quase desnecessário, pois somente sua obra era suficiente –e necessária. Ali, ele poderia ter ido embora, que sua música falaria na voz de seu público. E Fernando sabe disso. Sabedor de que a obra do artista passa a ser pertencimento de seu público, entendeu o momento e praticamente somente assistiu ao protagonismo do público. Imagino a emoção de um artista ao testemunhar o exato momento em que a obra deixa de ser sua para tornar-se domínio dos outros.
A participação do coral e do grupo de dança da Fundação Lia Maria Aguiar também foi espetacular. Meninos e meninas jordanenses, vindos dos mais distantes bairros de nossa Cidade, encantaram o público e reafirmaram nossa vocação para as artes. Pena que estejamos tão atrasados. Há muito ainda a ser feito para que se recupere o tempo perdido.
Mas não é somente no carisma e na figura emblemática de Fernando que reside a magia do grupo. Ao inserir à poesia –também ela o elemento predominante no discurso e nas ações- elementos de dança, música, circo e teatro, ele acaba por celebrar um dos seus pilares –“por que é que não se junta tudo numa coisa só?”- e oferece ao público uma gama de conceitos de arte que parece ter sido relegada ao esquecimento pela maior parte das pessoas, sobretudo numa época em que a velocidade acaba por nos impor o emburrecimento e a apatia. O Teatro Mágico, com suas letras altamente elaboradas e a diversidade de suas melodias, fala ao coração de quem está insatisfeito com o mundo e com o rumo que ele toma.  
Eu ansiava pela vida do TM já há algum tempo. Posso dizer que se tratava de um sonho, realizado com rara brevidade. Porque, com a devida licença, entendo que a existência de um grupo como o Teatro Mágico, num país como o nosso, com esta indústria de entretenimento que permitiram que aqui fosse instalada e com esta banalização da cultura popular a que temos assistido diariamente, se constitui em quase um milagre.
Acho que é isso. Num país que trata sua cultura com “tiro, porrada e bomba”, a existência do Teatro Mágico é quase um milagre –uma inspiração que faz brilhar ainda mais forte a fria e renovada atmosfera jordanense, e que nos inspira a buscar cada vez mais, e com mais afinco, a poesia escondida que reside em cada um dos recantos desta Cidade.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

A LIÇÃO DO ‘SEO’ JOSÉ – O HOMEM E SUA QUEDA


Benilson Toniolo

Meio de tarde, sol a pino, venho pela calçada do Mercado de Abernéssia, movimentação suspeita à frente: alvoroçado, um grupo de pessoas olha para algo que está no chão. Me aproximo e vejo: entre a rua e o meio-fio, um senhor deitado de bruços, aparentemente desacordado. O burburinho de sempre: chama a ambulância, já chamaram, deve estar chegando, está machucado?, ninguém sabe, melhor não por a mão, alguém conhece?, tá sempre por aqui, será que ta bêbado?, não parece, coitado, deve ser derrame.
Encontro por ali o amigo Tadeu Salles, fotógrafo, arquiteto e competentíssimo Secretário Municipal Adjunto de Serviços Públicos. Que que houve, Tadeu? Não sei, estava passando, tinha essa muvuca aí, mas já chamei a ambulância, deve estar chegando.
Aproximo-me do homem caído e vejo que está consciente. A poucos centímetros dele, uma marmita no chão com restos de comida, que certamente trazia nas mãos quando caiu.
- Como é que está aí, senhor?
Ele fala baixo, quase um sussurro. Mas fala.
- Tudo bem.
Tem um filete de sangue saindo da boca.
- Tá doendo alguma coisa?
- A perna.
- Como é que o senhor se chama?
- José.
- Machucou a perna então, seo José?
- É.
O homem tem arroz nos cabelos. O resto da comida que vinha na marmita está jogado no chão.
- Mas o senhor está tranqüilo?
- Tá tudo bem, meu filho.
- Como é que foi, o senhor caiu?
Que pergunta, a minha, meu Deus. Claro que o homem caiu.
- Caí.
- Fica tranqüilo aí, que uma ambulância tá vindo aí ver essa perna.
Ele faz menção de se mexer.
- Não se mexe, não, já estão vindo aí buscar o senhor. Se mexer, a perna vai doer mais.
- Tá bom, meu filho.
Despeço-me do Tadeu e vou saindo, que a vida urge e são inúmeras as obrigações do dia. E quando dou três, quatro passos, ouço lá de baixo a voz do seo José, vindo dos fundos da calçada onde se encontra, agora um pouco mais que um sussurro:
- Vai com Deus, meu filho.
Foi esta a mensagem do homem pobre, simples e mal-vestido, com restos de comida nas orelhas, nos cabelos nas roupas. O homem sem dentes, de aspecto pobre, de sapatos pobres, agasalho pobre e puído, calça suja, que por algum motivo caíra entre o meio-fio e a rua e reclamava que a perna estava doendo, e que talvez não tivesse sequer reparado que havia um riacho rubro a sair-lhe da boca, provavelmente machucada quando da queda. Apesar de tudo –da pobreza, do povo em volta, da situação em que se encontrava-, seo José lembrava-se de Deus, e não deixava de recomendar, enquanto esperava o socorro da ambulância, que eu O levasse comigo, fosse qual fosse meu destino.
De onde estava, elevei a voz:
- Fique com Ele, também.

Não entendi bem o que se passara. Sou um sujeito ruim de simbolismos. Mas o que houve ali, naquela tarde calorenta de Abernéssia, guardei no coração para o dia em que me reencontrar com o seo José, em alguma das calçadas de nossa Cidade. E, independente de qual de nós estiver de pé ou caído, jamais me esquecerei de dizer a ele que o que ele me desejou acabou dando certo. Pelo menos, é o que espero que tenha acontecido.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

RECONSTRUIR

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Benilson Toniolo

A bem da verdade, nunca nos demos bem. Trabalhamos juntos por mais de quatro anos e, devido a uma série de circunstâncias diversas, passei a considerá-lo um péssimo funcionário, e não me dava conta que também eu estava me saindo um péssimo gerente.
Demiti-o. Anos depois, deixei a empresa posteriormente e passamos a fingir que não nos conhecíamos, quando por acaso nossos caminhos se cruzavam pelas ruas e calçadas da nossa pequena cidade.
Para mim, era um desconforto. E, quero crer, para ele também. Por mais de dez anos, nossos olhares se cruzaram inúmeras vezes. Sempre um desviava o olhar e continuava o caminho. Uma vez, liguei em uma empresa para contratar um serviço e sei que quem me atendeu foi ele. Identifiquei-me com outro nome.
Isso durou mais de dez anos.
Esta semana, fui com Simone a um café e, enquanto esperávamos, vi-o entrando. Carregava uma caixa e usava o uniforme da empresa onde estávamos. A cena se repetiu: me viu, o vi, desviamos o olhar. E então aconteceu: recaiu-me a vergonha absoluta de portar dentro de mim um ressentimento desnecessário, hipócrita, estúpido. Não precisava daquilo. Se durante tanto tempo fingi que toda aquela porcariada que trazia com relação a ele não existia, a vergonha do sentimento abjeto veio à tona. Num ímpeto, disse a Simone que tinha que resolver algo dentro da loja e já voltava.
Entrei, e não o vi. Alguns clientes, funcionários, corredores, prateleiras, materiais, cartazes. Movimento de final de expediente, seis e meia da tarde. No fundo do corredor, uma porta. Nada. Quando já voltava para o café, olhei novamente e lá estava. Dei a volta por um corredor e fui  em sua direção. Perfilou-se como se fosse atender a mais um cliente. Estendi-lhe a mão. Cumprimentos. Disse-lhe:
- Acho que, dez anos depois, podemos voltar a nos falar, não?
Ele sorriu.
- Acho que sim.
Pausa. Ele:
- Outro dia te vi no desfile de aniversário da cidade. Ia falar com você, mas estava muito movimentado, muita gente...
Olhei-o fixamente. Sorri, também.
- Que Deus o abençoe.
- A você também.
Novo aperto de mãos, desta vez mais forte, e despedimo-nos. Voltei ao café, que já estava servido. Simone, acostumada com minhas esquisitices e repentes, não perguntou o que teria eu ido fazer no fundo de uma loja de materiais de construção. Logo eu, que volto e meia me dedico, justamente, a visitar minhas ruínas e tentar reconstruir certas coisas.  

A vida é boa.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A CULTURA POPOZUDA


Benilson Toniolo

Certa vez, não faz muito tempo, me dei conta que estava falando mal de Paulo Coelho sem nunca ter lido nenhum livro escrito por ele –o que é uma atitude, além de leviana, injusta.
Pus-me então a ler ‘O Alquimista’ que, na minha modesta opinião, como literatura destinada ao público adolescente, afeita às aventuras de Harry Potter, por exemplo, ou vampirescas, vai muito bem. Se considerada, porém, uma obra destinada ao público adulto,  julgo inadequada e infantil. Milton Hatoum, por exemplo, só pra ficar entre os brasileiros vivos, escreve muito melhor do que ele. Pronto. Agora posso falar da obra de Coelho com algum conhecimento de causa. Consciência tranqüila, vamos em frente.
Digo isto para declarar pela presente, a quem possa interessar, que assisti ao videoclipe da música ‘Beijinho no Ombro’, grande sucesso da música nacional interpretado pela pensadora brasileira contemporânea Valeska Popozuda (e não Vanessa, como imaginei que fosse). Entenda-se: não tive outra opção, uma vez que o Brasil inteiro canta a música. Vai que a intérprete aparece por aqui para fazer um show e eu não sei de quem se trata? Se no ano passado já me chamaram de ‘elitista’ por eu não conhecer o funqueiro (é assim que se escreve?) Naldo e seu sucesso ‘Se Joga’, o que diriam se eu não procurasse me informar sobre a cantora da moda? Fui lá no youtube, conferir.
Valeska é, na minha opinião, uma mulher que não se pode chamar de bonita. Diria que possui uma estampa, aliás, até bastante comum. Só aqui no meu bairro está cheio de mulheres muito mais bonitas do que ela. Mas como o conceito de beleza é muito pessoal, continuo achando bonitas a Adriana Calcanhotto e a Leila Pinheiro, por exemplo, só pra ficarmos entre as cantoras. Ah, você nunca ouviu falar delas? Elitista.
Mesmo a bunda de Valeska, que lhe garante o epíteto artístico e, portanto, deve ter algo diferente das  bundas das outras pessoas , não me foi possível conferir, porque durante o clipe a artista fica sempre de frente. Mas imagino que para uma pessoa ter uma parte do corpo incorporado ao seu nome artístico é sinal que esta parte deve ter algo que se destaque em comparação com as demais. Vide Garrincha, o anjo das pernas tortas, Canhoteiro e Gérson, o ‘Canhota’, jogadores de futebol –brilhantes, por sinal- que tiveram a perna esquerda incorporada aos seus nomes pela notória habilidade, o que, acredito, seja também o caso da bunda de Valeska. No fundo, deve ser o que ela tem de melhor a mostrar. Bem no fundo, aliás.
Desculpem-me seus milhares –ou seria milhões?- de fãs, mas o fato é que ela canta mal. Muito mal. Mas desconfio, a julgar pelo som que ouço diariamente aqui na vizinhança de casa, que cantar mal é condição sine qua non para que alguém se aventure a interpretar esse estilo de música. E outra: no caso da obra ‘Beijinho no Ombro’, o sotaque exageradamente carioca, sobretudo no final da frase, incomoda. Não é um sotaque como o de Vinicius de Moraes, nem o de Tom Jobim, que até emprestam um certo charme à canção. O sotaque de Valeska é forçado, tônico, inconveniente, dói no ouvido quando proferido, sobretudo ao final de cada verso.
A letra é sofrível –o que, aliás, é outra característica desse tipo de música.Trata da supremacia dela com relação às suas amigas invejosas. Toda a letra elenca a superioridade de sua dela turma (ou galera), composta por mulheres descoladas, gostosas, ricas e auto-suficientes. As outras ‘amigas’, feias, mal arranjadas de corpo, recalcadas e inexpressivas, têm mais é que se ferrar e ficar sozinhas, curtindo seus rancores por não conseguirem fazer parte do grupo de Valeska que, soberana, ordena: ‘late mais alto, que do alto eu não te escuto / do camarote quase não dá pra te ver’. Tem até uma expressão que me chamou particularmente a atenção: ‘rala, mandada’. Trata-se de outra determinação que Valeska, a da bunda grande (o popozão), dirige às suas súditas. Ou seja, não basta ser mais gostosa, rica e poderosa que a amiga invejosa: é preciso lembrar a condição social inferior da rival, supostamente uma assalariada que recebe e deve cumprir ordens se quiser sobreviver no emprego e na vida.
Valeska diz que faz ‘Deus de escudo’. Isso é bom, mas antes é bom combinar com o Altíssimo, que até por uma questão de hierarquia não deve gostar nada de ser usado por ninguém e muito menos ter seu Santo Nome vinculado a alguém que tem a bunda como seu principal atributo. Se ainda fosse o Cartola ou o João Nogueira, ainda vá.
A letra ainda tem muitas outras aberrações, que não valem a pena ser destacadas. São versos agressivos e repletos de referências à violência e à inveja –ou ‘recalque’, como a pensadora frisa sempre.
Valeska vai desaparecer com a mesma velocidade dos outros funqueiros (acho que é assim que se escreve, mesmo) como Naldo a Anitta, passando por outros de menor estirpe, até que surja outro fenômeno da “música” que “faça a cabeça da galera”, como eles dizem. E nós, que aos poucos vamos perdendo a capacidade de nos ruborizarmos diante do espetáculo de meninos e meninas de dez, onze anos, de trajes exíguos simulando atos pornográficos em público, continuaremos reféns do mau-gosto, da vulgaridade e do lodo de imbecilidade e mau-caratismo  em que a arte popular  deste País está mergulhada.
Afinal de contas, onde é que fomos parar? Por qual motivo chegamos até aqui? Quem permitiu isso? Será devido à falência da educação ou da família? Em que tipo de gente nós, brasileiros, do ponto de vista cultural, estamos nos tornando? Por qual motivo essa gente –Valeska, Anitta, Naldo, esse monte de emecís milionários- faz tanto sucesso com suas músicas ordinárias e suas letras vulgares, repletas de desrespeito e excessivo apego ao dinheiro e ao consumo?
Pode ser que alguém ache que estou levando muito a sério algo que, no final das contas, nem tem tanta importância assim. Mas é que arte, pelo menos para mim, é coisa séria, capaz de formar e transformar a vida de um povo.
Nem sei se esse tipo de discussão vale a pena. Provavelmente, se alguém for levar em conta o que tenho a dizer, serei tachado de invejoso –ou, no vocabulário popozuquês, “recalcado”. É o risco que correm os que mantém acesas as luzes da reflexão e da inquietação.

E veja se late mais alto, Benilson, porque lá do alto não há quem te escute.

NÃO, VOCÊS NÃO SABEM...


Benilson Toniolo

Depois de um começo desanimador e titubeante, composto de cinco empates, uma derrota e uma vitoriazinha de nada, eis que o time do Santos embala neste campeonato brasileiro 2014: duas vitórias seguidas, contra Criciúma e Bahia, para respirar um pouco mais aliviado depois de pular da décima-sexta para a décima posição. Aí, sabe como é torcida: agora vai, pegou o jeito, a máquina está azeitada, o professor acertou o time e pintou o campeão. Já tem gente fazendo contas: se ganharmos o próximo e os demais dezoito times perderem, pode ser que cheguemos à liderança. Tudo somado, é mais ou menos por aí.
O problema é que justamente agora, no exato momento em que as coisas começam a dar certo para o Peixe, o campeonato para em razão da Copa do Mundo. Oras, façam-nos o favor. Isto, senhoras e senhores, é uma sacanagem da grossa. Parar o campeonato brasileiro por causa da Copa do Mundo, logo agora?
Copa do Mundo, como todo mundo sabe, é para quem não gosta de futebol. Quer dizer, gostar até pode ser que goste, mas não ama, não é apaixonado pelo jogo, como é o nosso caso. Copa do Mundo é para quem só acompanha futebol de quatro em quatro anos. Nós, não. Nós acompanhamos o Santos todos os dias, todas as semanas, todos os meses, durante todos os anos de nossa vida.
Com todo respeito a seleções como Alemanha, Argentina, Inglaterra, Itália e Espanha, além, claro, da seleção do Brasil, mas vocês não imaginam o que significam duas vitórias seguidas depois de cinco empates e uma derrota. Vocês não fazem idéia do alívio que é poder gritar quatro gols em dois jogos. Vocês não sabem o que é acompanhar a escalação e ver um monte de juniores, de jogadores que tiveram de subir às pressas das categorias de base para compor o time por pura incompetência e falta de planejamento da Diretoria. Vocês não sabem o que é perder um campeonato que estava no papo, nos pênaltis, para o time do Ituano. E vocês não sabem o alívio que é ver seu time começar a deixar as proximidades da zona de rebaixamento. E quando as coisas parecem querer começar a dar certo, vem a Copa do Mundo e acaba com tudo. Não, vocês não sabem o que é o futebol.
A partir de agora, os jogadores saem de férias, alguns vão ter seus contratos encerrados bem no meio da paralisação e sabe Deus se voltam no segundo semestre. Outros voltarão acima do peso. Outros, receberão propostas de outros times. E logo agora, quando o time começava a embalar no campeonato. Não é justo. Sem falar que estamos invictos na Copa do Brasil, e classificados para a terceira fase.
Não, quem organiza uma Copa do Mundo não sabe o que é torcer para um time de futebol. Não sabe o que é sentar a bunda numa arquibancada gelada numa noite de quarta-feira, contando os caraminguás na carteira para saber se vai dar para comprar um copo de refrigerante quente e que vem pela metade. Não sabe o que é ter a tabela de classificação gravada na mente. O sujeito não sabe o seu tipo sanguíneo, mas sabe responder rapidamente de quantos pontos seu time precisa para alcançar o objetivo da temporada –seja o título, a classificação para a Libertadores, ou mesmo escapar do rebaixamento.
E o pior é que a Copa se prolonga por intermináveis trinta dias. Sabendo-se, portanto, que na volta do Brasileirão o nosso próximo jogo é o clássico contra o Palmeiras na Vila, esta será a maior concentração de que se tem notícia na história. E isso não se faz. Uma torcida esperar mais de um mês –sim, porque já faz mais de uma semana que o campeonato parou- por um clássico é até um desrespeito.
Que comece, portanto, essa tal de Copa. Nós vamos acompanhar os jogos da Seleção com o interesse de alguém que espera sair o pãozinho na padaria. Muito mais interessantes serão os jogos do Chile, que tem na lateral esquerda o Mena, que no nosso Peixe é o titular absoluto e, portanto, nos representa no Mundial.
E, se o Brasil for campeão, já sabem: ao invés da camisa amarela, é com o nosso manto imaculado e branco que sairemos às ruas para comemorar, a gritar, entre um e outro “Brasil”, o nosso “Santooooosss!!!!”.
Portanto, remediado está o que não tem remédio. Boa sorte para a Seleção do Brasil –apesar do Julio Cesar no gol, do Jô e do Hulk no ataque e de um monte de Maxwéis e Luíses de quem nunca ouvi falar.

E que o Brasileirão recomece logo, por favor.

UM NOVO PARCEIRO PARA VINICIUS


Benilson Toniolo

Enquanto passeava o dedo indicador pelas estações de rádio no carro ouvi, estupefato, o locutor anunciar que haviam acabado de tocar uma música de João Bosco e Vinicius. Admirei-me. Jamais poderia imaginar que Vinicius de Moraes e João Bosco tivessem, algum dia, gravado alguma canção em parceria. Uma participação exclusiva, talvez, de um em algum show do outro, e que agora era revelada ao público em primeiríssima audição? Não, se fosse assim eu saberia, antenado que pretendo me manter no que diz respeito aos meus ídolos. Seria um samba afro de Vinicius, uma batida de João –o Bosco, não o Gilebrto-, uma composição de Aldir Blanc que teria apetecido ao Poetinha, um poema recitado pela voz inconfundível do poeta enquanto o sambista batucava em seu violão tendo, vem por outro, um assovio de fundo? Cismava eu, louco para chegar em casa e procurar na internet alguma notícia sobre o que teria unido dois grandes nomes da música brasileira em uma obra até então, para mim, inédita.
No caminho para casa, raciocinava e procurava dados na memória. O carioca Vinicius morreu em 1980, ano em que o mineiro João Bosco já era nome constante no cenário musical brasileira, cantando composições próprias e em parceria com Aldir, além de ter gravado Belchior, entre outros. Certamente, aquela era uma parceria que tinha durado muito pouco. Mas como eu não tinha pensado naquilo antes? Era plausível que ambos, algum dia, tivessem cantado juntos. Talento para isso, tinham. Vinicius colecionava parceiros. Edu Lobo, Baden Powell, Chico Buarque, Mutinho, Toquinho, Tom Jobim. Por que não João Bosco? Plausível, muito plausível. Possível, muito possível. Fosse como fosse, ambos juntos era genial.
Procurei na internet, e a brochada foi, como se diz, monumental. Não se tratava da parceria que eu havia imaginado. Desgraçadamente, João Bosco e Vinicius é o nome de uma dessas duplas de jovens de música eletrônica –o chamado ‘sertanejo universitário’ que, a bem da verdade, de sertanejo não tem nada.
Eu sou um sujeito mesmo muito desatualizado e, para piorar, inocente. Afinal, que rádio hoje em dia, além das exceções que já conhecemos, se dedicaria a incluir em sua programação uma canção de João Bosco (o verdadeiro) e/ou de Vinicius de Moraes (o único)? Estamos no ano de 2014, num tempo em que os sucessos musicais e as duplas de cantores podem durar não mais do que um dia.
Em meados de 1979, a presença do radio na casa das famílias brasileiras ainda era uma constante. Ouvia-se rádio o dia inteiro. Em casa, ouvíamos a Guarujá Paulista, a Atlântica, a Clube de Santos. Não havia ainda as rádios de freqüência modulada –as FM- que se popularizaram no início dos anos 1980, trazendo mais canções em inglês e influenciando em uma geração que produziria o rock nacional, cujos ecos até hoje se pode ouvir.
Naquele tempo, as músicas mais tocadas eram ‘Cálice’, com Chico e Milton Nascimento, ‘Noturno’, com Raimundo Fagner e ‘Anunciação’, com Alceu Valença. Vinicius de Moraes e Toquinho também eram freqüentes, principalmente com as cançõezinhas da Arca de Noé. Elis, com ‘O Bêbado e a Equilibrista’, e a ‘Disparada’ de Caetano também eram figurinha fácil. Antonio Marcos, Vanusa e o imbatível Roberto Carlos, que à época já tinha gravado as inesquecíveis canções que fizeram dele o que, hoje, já não é mais: um grande intérprete de músicas românticas com letras inesquecíveis e melodias incomparáveis. Sim, porque chamar Roberto de “rei” é até um sacrilégio num país de Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Luiz Gonzaga. Sobre Alceu, vale dizer que o refrão de ‘Anunciação’(“tu vens, tu vens”), que a gente cantava em voz alta a caminho da escola, devia proporcionar quase um orgasmo para nossas professoras de língua portuguesa. Nada como a conjugação perfeita do verbo...
Saudosismo à parte, a vida continua. E com a velocidade com que as coisas andam hoje em dia, neste momento, a carreira desta dupla de cantores eletrônicos deve estar, já, em curva descendente, posto que nunca mais ouvi falar neles –como aliás havia se dado quando descobri que eles, simplesmente, existiam. Devem estar andando pelo interior do País, lutando para conquistar espaço junto a prefeituras e organizadores de rodeios por cachês que, a cada dia, apresentam valores cada vez menores.
Já Elis, Roberto (aquele, não o de hoje), Chico, João Bosco, Milton, Fagner, Alceu e Vinicius –entre muitos outros- continuam firmes, e assim continuarão enquanto eu viver, tocando e cantando cada vez mais lindamente no fundo do meu coração.