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Benilson Toniolo
Já me haviam adiantado o
assunto: uma cidadã de nome Andrea procuraria a Secretaria para falar sobre seu
trabalho de cantora de músicas evangélicas. Mais uma? Isso pega, pensei.
No dia e hora agendados, ela
chegou. Miúda, jovem e com o semblante sério, trajando o que parecia ser sua
melhor roupa, fez-se anunciar, sentou-se e aguardou. Nas mãos, uma pasta plástica.
Parecia tensa.
Chamei-a, conduzi-a à sala.
Nervosa, tremia. Algo ali parecia fora de controle. Começamos a conversar.
Cantava música gospel. Mas não
sabia se cantava bem. Não compunha. Gostava de cantar. Fazia-lhe bem. Mas não
sabia se era aquilo. Não sabia se era este seu caminho. Gostaria que alguém
especializado a ouvisse cantar para ela ter certeza. Gostaria de aprender a
cantar. Que alguém lhe ensinasse. Não sabia ler partituras. O que é partitura?,
perguntou.
Não disfarçava o nervosismo. E
eu não conseguia entender, no fundo, em que é que poderia ajudar. Vez por
outra, fazia menção de chorar. Olhos úmidos.
Perguntei se trabalhava. Que não.
Se era casada. Que não. Se tinha filhos. Que sim, um só, chamado Gabriel, de nove
anos. Se morava com os pais. Que sim, com a mãe, que havia se separado do pai,
que por sua vez sofrera um derrame recentemente e estava na casa de parentes em
Minas. Andrea engravidara de Gabriel quando tinha quinze anos. O pai da criança,
então seu namorado, na ocasião era casado, pai de outros filhos e tinha
quarenta e cinco anos. Hoje tem cinqüenta e quatro, e não se sabe seu paradeiro.
Ela cria o filho sozinha, com alguma ajuda da mãe. O pastor de sua igreja costuma
lhe dizer que ela estará em pecado para o resto da vida. A mãe, que frequenta a
mesma igreja, na maioria das vezes é indiferente ao neto e já chegou a chamar a
filha de ‘minha vergonha’. Andrea sabe disso porque lhe contaram. Está sem
emprego há quase um ano. No último serviço, de camareira em uma pousada, não passou
do período de experiência porque mudaram seu horário de trabalho para o período
noturno, e ela não tem com quem deixar o filho, uma vez que nem sempre pode contar
com a ajuda da mãe, quando esta se dispõe. Tem uma amiga que de vez em quando
lhe empresta algum dinheiro. Esta amiga é diarista em casa de turistas e sempre
que pode leva Andrea para ajudar. Enquanto ajuda a amiga, ela canta suas
músicas. Nestes momentos, é feliz. Mas ela quer mais. Quer virar cantora profissional.
Cantar no programa do Raul Gil. Não gosta muito de ir aos cultos. Acha que o
pastor, quando prega seus sermões, a acusa indiretamente. Ela sofre. E chora.
Naquele momento, enquanto contava sua história, Andrea chorava copiosamente.
Desabou sobre a mesa onde conversávamos todas as lágrimas represadas. Era muita
água, o que ela depositava sobre a mesa. Sobre a sala. Sobre mim. Sobre a vida.
As lágrimas da menina pareciam querer inundar a Montanha.
Pedi licença ao assessor que
nos acompanhava. Fechei a porta. Segurei-lhe as mãos em concha. Procurei
acalmá-la, busquei um copo d’água (um não, dois, para tentar repor parte do
estoque que seus olhos haviam derramado), contei-lhe parte da minha história,
que não tinha a menor ínfima parte dos dramas contidos na dela. Do meu amor
pela literatura, do sonho, das dificuldades, de querer ser escritor e ganhar a
vida com isso. E procurei, a meu modo, orientar-lhe o caminho. Ela precisava,
antes de mais nada, arranjar um emprego. Ganhar dinheiro. Dar segurança a ela e
ao filho. Depois, estudar, procurar continuar –e concluir, se possível- os
estudos. E, se a igreja lhe fazia mal, que procurasse outra. Mas que mantivesse
a fé, que fé é fundamental e sem ela ninguém vive direito. Que procurasse
compreender a mãe, que mãe nenhuma é ruim, que cada mãe ama de um jeito. E que,
no meio e durante isso tudo, seguisse cantando, se mal ou bem, não interessava.
O importante era cantar, que sem arte também não se vive. E que depois que tudo
tivesse se ajeitado, ela procurasse aprender sua arte, aperfeiçoar sua voz e
dar asas a seu canto.
Ela abraçou-me forte e
demoradamente. Agradeceu em demasia. Saiu. Chorando, sempre. Informei ao Gabinete
que a munícipe havia sido atendida. E ela sumiu. Nunca mais a vimos. Não telefonou,
não mandou e-mail, não voltou na Secretaria. Vida que segue.
Até que me disseram, um dia,
que ela havia “aparecido” num programa de rádio. Num momento em que se
reclamava dos serviços da Prefeitura, ela telefonou para o programa para dizer
que tinha ido falar comigo, e que eu havia destruído todos os seus sonhos. Que não
a atendera direito. Que eu tentara fazê-la desistir da idéia de cantar. Que eu
tinha sido irônico, arrogante e havia tentado humilhá-la na frente de outras
pessoas. Que eu sequer dera-lhe oportunidade de mostrar sua arte. O
apresentador ficou bravo. Falou do meu salário. Disse que eu ficava sentado com
a bunda na cadeira e não me preocupava com os outros. Que esta era a imagem do
governo. E isso. E aquilo. E mais aquilo outro. E que, ele sim, ia ajudar a
menina a realizar seu sonho. Já que o Secretário não ajudava, ele ia ajudar.
Onde já se viu.
Bem, ninguém disse que seria fácil.
Nem mesmo Deus, no momento da criação do homem, garantiu que dali ia sair coisa
que prestasse. O saldo disso tudo? Não faço a mínima idéia. E na falta do que melhor
fazer, trato de acrescentar mais um item na longa e amarrotada lista de
experiências. No final, é o que conta, não?