segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O ANIVERSÁRIO DE DONA CIDA

Benilson Toniolo

Hoje dona Cida faz aniversário. Noventa anos, se não me engano. Há seis, foi-se embora a bordo do segundo AVC que lhe acometeu, assim, à surpresa. Ninguém esperava. Tinha sofrido o primeiro, alguns dias antes.  Estava com a filha no médico, no pronto-socorro, quando o segundo golpe a derrubou. Fatal.
Sim, ela faz falta. Com suas manias, suas histórias, seus exageros, suas verdades inventadas, ela faz falta. O que mais me chamou a atenção quando de sua partida foi a quantidade de pessoas com quem eu me encontrava na rua que, falando dela, diziam: ‘ela me ajudou muito’. E desatavam num choro sentido.
Tinha muitas amigas, todas leais. Dona Cida as ajudava quando podia, e quando não podia também. Quando a família desconfiava que ela exagerava nos ajudatórios, ela tratava de inventar uma história tão triste a respeito da situação do ajudado, que ninguém podia falar nada. Ser cristão é ajudar a quem precisa, não é? Então, pronto. Vai reclamar com Nosso Senhor, que a ordem quem deu foi ele.
Na ceia de Natal, convidava gente que nem todos da família conheciam. O que perdeu a mãe havia pouco tempo. O sem emprego. O moço que se livrou das drogas e que agora estava na igreja. A que o povo dizia que tinha roubado a bolsa da comadre. A mãe da irmã do pai da inquilina nova da vizinha. O moço que acabara de sair da cadeia, onde cumprira pena por homicídio. Um coração como não se vê mais hoje em dia. O povo estranhava.
Nos últimos tempos, e durante muito tempo, era crente. Evangélica, de duas ou três igrejas. Mas conhecia as rezas. As coisas do metafísico. Sabia o que tinha do outro lado. E era feio. Por isso sua vida era uma louvação atrás da outra. De joelhos, orava e pedia perdão. Iletrada, pedia aos outros que lessem para ela as revelações contidas na Bíblia. Queria ensinar os outros como era bom seguir ao Jesus que ela cria. Os netos lhe ofereciam beijos na chegada e na partida de casa. No meio disso, era o alheamento.
E quer saber mais? Ajudava os velhinhos do asilo. Toda semana. Durante muito tempo. Depois parou. Canseira.
Foi caseira, muitos anos. Cozinhou, passou, lavou, arrumou, consertou. Vendeu roupas usadas na garagem, até que a prefeitura lhe mandou uma cobrança adicional no imposto por conta de uma placa que mandou botar na frente de casa. Foi santa, não. Se engana quem pensar. Nessa vida nossa, ninguém é.
Mas viver, viveu. E  como. E viveu bem. Viu, ouviu e falou muita coisa.
O enterro foi como queria. Na igreja. Coisa simples. Muita gente.
E, até hoje, diante de certas situações mal-explicadas, o povo da casa vaticina: ‘queria que ela estivesse aqui pra ver’.
Hoje faz aniversário. Vinte e oito de outubro. E é seu vulto que vejo descendo a escada da casa, sua roupa simples e seu jeito simples, parando no final da jornada, olhando pro céu e comentando por comentar: ‘vou molhar as plantas’.

Então, mando aqui meu abraço, minha velha. Feliz aniversário, dona Cida Café.

EU, O ELITISTA



Benilson Toniolo

O sujeito me chama de elitista. Diz que acha interessante me ver no bairro popular em meio aos ‘pobres’ –o termo é dele, não zanguem comigo. Diz que eu só conheço o povo através das aulas de Sociologia e dos livros. Não disse a mim diretamente, mas disse a outrem. Então, dou risada –o que mais posso fazer?
Meu pai foi um alagoano retirante, fugido da seca, da fome e da sede do sertão. Veio com a mãe, recém viúva, e uma montoeira de irmãos em pau-de-arara. Chegou em Santos e ficou. Foi analfabeto até a fase adulta quando, já casado, aprendeu a ler praticamente sozinho. Fez curso de eletrônica por correspondência no Instituto Universal Brasileiro, e varava as noites tentando decifrar os inúmeros manuais de tevê para consertar aparelhos de televisão inconsertáveis (se me permitem o neologismo) dos fregueses (na época, não se dizia 'clientes'). Foi servente de pedreiro, ajudante de barbeiro, dono de boteco e de loja de conserto de televisão e rádio, e por um tempo teve ponto de jogo-de-bicho. Foi proprietário de um Aero-willys, dois fuscas e um Dodge Polara amarelo. Quando morreu, há onze anos atrás, tinha acabado de ler Dostoiévski. Devo a ele minha paixão pela leitura. Minha mãe, santista filha de europeus, quando menina ajudava na pensão da avó, amanhecendo entre panelas, caçarolas e pias cheias de louça suja para lavar. Durante toda a vida, e até poucos anos atrás, passava roupa e costurava para fora, para ajudar nosso pai no orçamento de casa. Nunca reclamou. Foi fiel a ele e a nós, e assim é, até hoje.
Moramos na Vila Margarida e Parque Bitaru, em São Vicente, antes de nos mudarmos para a casa do tio Aldo, na Santa Rosa, no Guarujá.
Desde os doze, nosso pai nos levava para ajudar no bar. E lá ficávamos servindo bêbados, maconheiros, pescadores, jogadores de sinuca, gente boa e gente ruim.
A Santa Rosa era só lama, na época. Não tinha asfalto. O 'conga' que nos levava à escola era o mesmo dos passeios de domingo na casa dos primos.
Quando eu tinha quinze anos, meu pai adoeceu gravemente de uma duodenite seguida de tuberculose, e muita gente achou que ele não escapava. Escapou. Daquela feita, minha irmã me arranjou emprego de Office-boy num escritório de advocacia no centro de Santos para ajudar em casa. Saía do Escolástica Rosa, a melhor escola pública de Santos na época (que instituía uma prova chamada de 'vestibulinho' para poder receber e classificar tantas solicitações de matrícula de candidatos a alunos da Baixada inteira) às 12:35h, tinha que entrar no trabalho às 13h e fazia meu almoço no ponto de ônibus, torcendo para que o coletivo não demorasse, mas que me desse tempo de não ter que subir segurando a mochila, o misto frio e a lata de fanta laranja. Descia na Praça Mauá, ia para o escritório na Rua Riachuelo, catava um monte de processos, subia a Amador Bueno e ia para o fórum, checar o andamento dos processos. Era o ano do primeiro colegial, o atual primeiro ano do Ensino Médio, no qual fui reprovado. Química e Física. Fui para Conselho de Classe precisando de um ponto em Matemática para poder fazer a recuperação nas duas matérias. Não me deram o ponto. Bombei direto, como se dizia na época. Tive anemia e fui mandado embora do serviço. Foi a primeira vez. Viriam outras.
Entrei na faculdade de Hotelaria já em Campos do Jordão aos trinta e três anos, quando Bruno tinha três e, Leonardo, acabado de nascer. Antes disso, fui auxiliar de serviços gerais e vigia noturno, vendedor de curso de inglês, bancário (minha mãe tem saudade desse tempo até hoje), cobrador de consórcio, ajudante de copiadora, comerciante falido, gerente de clube. Tive uma carreira bonita na Hotelaria. Carreguei muita bagagem, dobrei serviço, tive que pagar diferença de caixa do bolso. Fui gerente de flat, conheci o Nordeste, morei em S. Paulo e passei alguns meses no Centro-Oeste.
Meu melhor carro é um Gol 2007, que é o atual, financiado em 48 meses. Antes dele, um outro Gol 1997 e dois fuscas caindo aos pedaços –na verdade, dois heróis que me tiraram de muitas enrascadas e me conduziam ao Pronto-Socorro nas frias madrugadas de Campos do Jordão, quando os meninos tinham alguma coisa -uma dor de barriga. Criança, como vocês sabem, é louca pra ter dor de barriga.
Uma vez, há muitos anos atrás, eu tinha muita dor de cabeça, e um médico que tinha consultório ali na Conselheiro Nébias disse que eu tinha aneurisma, que podia morrer a qualquer momento. Isso faz muito tempo. Viciei em dorflex. Mas como estou aqui até agora, desconfio que não é disso que me fino.
Neste momento, escrevo na escrivaninha da casa que eu e Simone financiamos. Trinta anos. A casa é nossa, portanto, desde que paguemos todas as mensalidades.
Escrevi nove livros. Tem mais um ou dois em andamento. Falo três idiomas, além do português. Pertenço a algumas entidades literárias e ganhei dezenas de prêmios. Faço palestras e traduzo livros do italiano para o português. É só ter tempo. Não me considero escritor, e apesar de minha formação –que considero pífia- acho que acertei quando resolvi não abandonar a literatura. E, como disse Borges, acho que o que li é mais interessante do que o que escrevi. Porque ler a gente lê o que gosta, e escrever, escreve só o que consegue.
Tenho muito a agradecer a Deus, principalmente pela mulher que Ele me deu por esposa e pelos viventes que me deu como filhos. Pela minha mãe que permanece forte e inquebrantável –um porto seguro garantido para quando a nau perder o rumo.
Minha história não é melhor nem pior que a de ninguém. São estas lutas que nos constroem e fazem a vida valer a pena.
E, o que é mais interessante: nunca tive aula de Sociologia.
Mas elitista, meu prezado amigo, com todo respeito, é a digníssima puta que o fez vir à luz.