Benilson Toniolo
Hoje dona Cida faz aniversário. Noventa anos, se não me
engano. Há seis, foi-se embora a bordo do segundo AVC que lhe acometeu, assim,
à surpresa. Ninguém esperava. Tinha sofrido o primeiro, alguns dias antes. Estava com a filha no médico, no
pronto-socorro, quando o segundo golpe a derrubou. Fatal.
Sim, ela faz falta. Com suas manias, suas histórias, seus
exageros, suas verdades inventadas, ela faz falta. O que mais me chamou a
atenção quando de sua partida foi a quantidade de pessoas com quem eu me
encontrava na rua que, falando dela, diziam: ‘ela me ajudou muito’. E desatavam
num choro sentido.
Tinha muitas amigas, todas leais. Dona Cida as ajudava
quando podia, e quando não podia também. Quando a família desconfiava que ela
exagerava nos ajudatórios, ela tratava de inventar uma história tão triste a
respeito da situação do ajudado, que ninguém podia falar nada. Ser cristão é
ajudar a quem precisa, não é? Então, pronto. Vai reclamar com Nosso Senhor, que
a ordem quem deu foi ele.
Na ceia de Natal, convidava gente que nem todos da família
conheciam. O que perdeu a mãe havia pouco tempo. O sem emprego. O moço que se
livrou das drogas e que agora estava na igreja. A que o povo dizia que tinha
roubado a bolsa da comadre. A mãe da irmã do pai da inquilina nova da vizinha. O
moço que acabara de sair da cadeia, onde cumprira pena por homicídio. Um
coração como não se vê mais hoje em dia. O povo estranhava.
Nos últimos tempos, e durante muito tempo, era crente.
Evangélica, de duas ou três igrejas. Mas conhecia as rezas. As coisas do
metafísico. Sabia o que tinha do outro lado. E era feio. Por isso sua vida era
uma louvação atrás da outra. De joelhos, orava e pedia perdão. Iletrada, pedia
aos outros que lessem para ela as revelações contidas na Bíblia. Queria ensinar
os outros como era bom seguir ao Jesus que ela cria. Os netos lhe ofereciam
beijos na chegada e na partida de casa. No meio disso, era o alheamento.
E quer saber mais? Ajudava os velhinhos do asilo. Toda
semana. Durante muito tempo. Depois parou. Canseira.
Foi caseira, muitos anos. Cozinhou, passou, lavou, arrumou,
consertou. Vendeu roupas usadas na garagem, até que a prefeitura lhe mandou uma
cobrança adicional no imposto por conta de uma placa que mandou botar na frente
de casa. Foi santa, não. Se engana quem pensar. Nessa vida nossa, ninguém é.
Mas viver, viveu. E
como. E viveu bem. Viu, ouviu e falou muita coisa.
O enterro foi como queria. Na igreja. Coisa simples. Muita
gente.
E, até hoje, diante de certas situações mal-explicadas, o
povo da casa vaticina: ‘queria que ela estivesse aqui pra ver’.
Hoje faz aniversário. Vinte e oito de outubro. E é seu vulto
que vejo descendo a escada da casa, sua roupa simples e seu jeito simples,
parando no final da jornada, olhando pro céu e comentando por comentar: ‘vou
molhar as plantas’.
Então, mando aqui meu abraço, minha velha. Feliz
aniversário, dona Cida Café.