domingo, 27 de julho de 2014

SABADÂNCIAS DE 26 DE JULHO DE 2014

versaocultural.blogspot.com

Benilson Toniolo

O Maestro João Carlos Martins veio a Campos com a Filarmônica do SESI para uma única apresentação esta tarde, em uma das quadras do Tênis Clube. Um sábado de julho atípico, o de hoje, com chuva intermitente e muito frio, mas que não impediu a mim e Simone, da mesma forma como a algumas poucas centenas de pessoas, de prestigiarmos o prestigiado Maestro.
Ficamos na área destinada aos convidados oficiais –as chamadas autoridades. Vinho, coisinhas para beliscar e um barulho danado, muito característico de pessoas que não têm o hábito de freqüentar concertos. Irrita um pouco, mas a gente olha a taça até a metade do tinto francês e a mesa de tira-gostos e logo trata de esquecer a implicância. Uma bicada no vinho e adeus, irritação. Vamos à música.
Um concerto de música clássica dentro de um clube de tênis não deixa de ser algo curioso. O palco não é o de um teatro propriamente dito, o que acaba por comprometer sobremaneira a acústica. Defronte a ele, e sobre o piso da quadra de jogo, foram colocadas cadeiras de plástico que as pessoas vão arrastando à medida que se sentam e à medida em que vão perdendo a paciência com o espetáculo, que sempre parece demorar mais do que a gente imagina suportar. Na área destinada a nós, os ilustres convidados, não. Pufes e sofás acolchoados e imaculadamente brancos foram espalhados pelo ambiente impecavelmente decorado, enquanto mastigávamos damascos recheados e doces diversos cujos nomes não memorizei. Ao fundo, a orquestra tocava. E nenhum de nós parecia preocupado com os eventuais danos ao piso da quadra.
Nas ruas ao lado, buzinas tocando, carros com o som em volume altíssimo, o sino dos  “trenzinhos da alegria” a chamar turistas para o passeio, funcionários anunciando cardápios de restaurantes, risadas e conversas em altíssimo volume estalavam a todo instante e passavam a fazer parte involuntária do programa. A quarta de Beethoven, que abriu o concerto, teve tudo isso: sinos, buzinas, risadas e promessas de carne argentina legítima. O Maestro, simpático e eloqüente, parece não ter acusado o golpe. Nem quem estava na área vip, apesar dos “sshhhhhhhhhhhhhh” ouvidos vez por outra. Entre mais um gole de vinho francês e um foie-gras, claro.
Por mais nobre que tenha sido a iniciativa, um clube de tênis em plena temporada de inverno não é o lugar adequado para a realização de um concerto. Não com estas platéias. Nem a que estava dentro, tampouco a que estava fora. E muito menos comigo, mais preocupado com a comida do que com a música.
Amanhã vamos ao Auditório, ver Neschling, o das frutas impecavelmente descascadas. Havemos de ficar em meio à plebe. E teremos que almoçar cedo.


Diante da cena do latrocínio de um comerciante, atingido mortalmente com um tiro nas costas ao reagir ao sexto assalto ao seu estabelecimento somente neste ano, o senhor Secretário de Estado da Segurança Pública da Bahia vaticinou: “a responsabilidade de garantir sua segurança é do próprio cidadão, tanto em casa quanto em sua empresa”. Já a Polícia Militar de São Paulo tentou proibir os torcedores do Palmeiras de se dirigirem  ao estádio do Corinthians, para o jogo de amanhã, usando qualquer peça de roupa na cor verde (camisa do time, então, nem pensar). Também disse que os palestrinos não devem fazer uso do metrô, e sim descer dos ônibus e caminhar cerca de quatro quilômetros até o estádio. Tudo isso porque a Polícia não tem como garantir a segurança deles. A principal torcida organizada do time já declarou que não acatará nenhuma das determinações.
Duas demonstrações explicitas de falência absoluta do Estado, quando este declaradamente assume sua incapacidade e incompetência.
Enquanto isso, o jornal noticia que o Estado de São Paulo sofre a 13. alta seguida no número de roubos, com um aumento da ordem de 14,7% na comparação com o mesmo período de 2013. Já o Governo informa que os números mostram que houve, na realidade, desaceleração das ocorrências, destacando que é a primeira vez que se registra um índice inferior a 15% no ano. Na dúvida, é melhor trancar bem as portas, as janelas e acionar o alarme.
Agora, quero ver quem é que vai explicar isso tudo para a torcida do Palmeiras...

Alexandre Vidal Porto, que é o que se salva na Folha de hoje, contando em seu artigo as considerações que fazia enquanto levava a passear seus cães: ‘A Crimeia é anexada pela Rússia. Insurgentes declaram um extenso califado fundamentalista entre o Iraque e a Síria. Garotas são roubadas na Nigéria. Países se desfazem. Um avião comercial é abatido sabe-se lá por quem. Corpos de passageiros empilham-se em vagões. A faixa de Gaza é invadida por Israel. Corpos de crianças misturam-se aos escombros. A ONU informa que, pela primeira vez desde a Segunda Guerra, o número de refugiados no mundo ultrapassou 50 milhões. Na academia diplomática, nos ensinam que a melhor maneira de prevenir briga com vizinhos é o diálogo e a negociação, e eu penso em como seria melhor se os lideres com a cara de mau parassem de fazer coisas inacreditáveis e passassem a conversar mais, para se entender melhor’.
Mal-informado e econômico ao elencar o rol das tragédias contemporâneas, o nosso diplomata. Não deve ainda estar sabendo do escândalo da Cruz Vermelha brasileira, flagrada desviando recursos que seriam inicialmente destinados a desabrigados no Rio de Janeiro, no Japão e na Somália –isso só para ficarmos na tragédia do dia. Sim, atualmente noticia-se, no mínimo, uma tragédia –ou escândalo, ou genocídio- por dia.

Aécio Neves, que se auto-denomina o Redentor que irá expulsar o PT do poder, pisou feio na bola, ao não conseguir explicar por que mandou construir, com recursos públicos, um aeroporto no município onde a família dele possui uma fazenda, quando era governador do Estado de Minas Gerais. Vai muito mal, o candidato da oposição. O que é lamentável para os brasileiros, que devem aprender que é através destas ações, aparentemente sem importância, que se pode identificar o caráter daqueles que pretendem nos governar.

Marina Silva  ordenou que sua imagem fosse retirada dos cartazes em que aparece ao lado de seu candidato de chapa, o presidenciável Eduardo Campos, e do governador paulista Geraldo Alckmin, do PSDB de Aécio. Está muito claro o desconforto da senadora com a forma como a cúpula do PSB tem tratado as adesões, alianças e coligações pelo Brasil afora. Marina, na verdade, parece querer dissociar sua imagem  desta verdadeira orgia em se transformou a política eleitoral –no que faz muito bem. Será que não rola nem um arrependimentozinho pela decisão de ter-se aliado a Campos?

É por essas e outras que o candidato Pastor Everaldo tem crescido nas pesquisas, a ponto de ser figura garantida nos debates presidenciais e entrevistas dos meios de comunicação com os principais candidatos.


Continuamos firmes na caminhada que transformará o Brasil numa República Fundamentalista Evangélica.

sábado, 26 de julho de 2014

O ENCONTRO COM LINO

 acervosantista.com.br 

Benilson Toniolo

Mandaram-me ao Tabelião, e estava eu a caminho. Com uma pasta pesada e repleta de documentos, saí do edifício comercial na Rua Riachuelo com destino à Praça Mauá. Assim era, todos os dias, no meu primeiro emprego, aos quatorze anos, num escritório de advocacia. Contínuo, guardinha, office-boy, ou simplesmente, boy. Diariamente ia ao fórum, aos cartórios, à prefeitura, ao prédio da Receita Federal, ao banco, à lanchonete buscar sanduíches, pasteis e sucos para os empregados mais antigos e melhor graduados. Sempre com muitas pastas, processos, documentos. Tinha duas certezas: a primeira, que não sabia absolutamente nada sobre o que deveria fazer nestes lugares, nem mesmo o que diziam os documentos que levava. Limitava-me a cumprir ordens. Entregue, registre, pague, protocole, tire cópias. A segunda, que me perderia e erraria o caminho, levando portanto mais tempo para cumprir minhas funções e tendo que inventar desculpas a cada dia para justificar minhas demoras.
Naquela tarde de chuvisco, a caminho de cumprir mais uma dura missão na minha rotina, meu principal objetivo era terminar o serviço logo, de preferência sem me molhar muito para não voltar ensopado para casa e ter tempo para comer um pastel no Café Carioca.
Com aquela idade e naquele tempo, eu tinha três preocupações  prioritárias: uma, dar conta do emprego e passar de ano na escola –e eu estava cada vez mais enrolado em ambos os quesitos; segunda, começar a namorar alguma menina bonita –o que, considerando as transformações físicas que me deixavam ainda mais feio do que eu já era, e ainda mais com dupla jornada, era uma possibilidade, mais do que remota, praticamente impossível –não era naquele ano, e daquele jeito, que eu conseguiria beijar alguém pela primeira vez na vida; a terceira, que o Santos fosse campeão paulista. Das três, esta era a que tinha melhores condições de ser realizada. Primeiro, porque não dependia da minha intervenção (apesar das superstições que eu seguia e que sempre davam certo); segundo, porque o time estava bem na tabela, liderando desde a primeira rodada o campeonato de pontos corridos com vantagem de três pontos (naquele tempo, a vitória valia só dois pontos, e não os três de hoje); terceiro, que o penúltimo jogo seria em casa, o que nos possibilitaria, dando tudo certo, levantarmos a taça dentro do gramado da Vila Belmiro; e quarto, que o time era bom e muito melhor que os outros concorrentes. A Diretoria havia decidido contratar alguns dos melhores jogadores em atividade no País e acabar com aquela pasmaceira que o time enfrentava desde o título de 78.
Ia eu pensando no próximo jogo (quarta-feira à noite, contra o Taquaritinga, fora de casa) e na ausência do Paulo Isidoro no time titular e também se o treinador Castilho ia botar o Humberto ou o Mario Sergio pra compor o meio-de-campo quando avistei, do outro lado da XV de Novembro, um sujeito cabeludo, alto, magro, e caminhando rapidamente (quase correndo, na verdade) e tive um calafrio: meu Deus, é o Lino! Como, que Lino, meu amigo? O Lino, meio-campista rápido e habilidoso que fazia o contraponto do Dema, o volante que só batia. O Lino, o homem de confiança do treinador e de toda a torcida santista, que dava ao meio-campo a leveza necessária para que o time saísse tocando a bola velozmente em direção ao ataque. Era ele o responsável por acionar o Zé Sérgio e o Chulapa. E fazia seus gols, também, com alguma freqüência. O Lino, que também podia jogar mais avançado, ajudava na marcação quando o lateral-direito Chiquinho avançava. Lino, o coringa do time, que tinha vindo do Atlético Paranaense. Como, que Lino? O Lino, caramba, ali, quase na minha frente.
Torcedor apaixonado, ainda mais adolescente, é como um apaixonado com tendências suicidas quando não é correspondido: um perigo à civilização, seja lá que civilização for. Era o meu caso (o do torcedor, pois outras paixões só me ameaçariam alguns anos mais tarde). Ao avistar um dos meus ídolos, pulei da calçada para o meio da Rua General Câmara e empreendi  uma velocidade que surpreendeu não só a mim mesmo (nem nas peladas da Vila Santa Rosa eu corria daquele jeito) mas também a quem passasse por mim, em direção ao meu alvo. Driblei pedestres, fiscais, bicicletas, os ônibus que chegavam e saíam da praça, sempre olhando para onde é que o Lino ia. E fui correndo, fui chegando, o Lino ia ficando cada vez mais próximo (é ele, é ele sim!), diminuindo o ritmo à medida em que chegava mais perto. Ele ia abrindo a porta de seu carro (também trazia nas mãos uma pasta cheia de documentos), apertei o passo e, enquanto entrava, me aproximei e continuei andando, para que ele não se assustasse e não percebesse a maratona que empreendi para poder me aproximar. Passei então a andar normalmente e, enquanto ele entrava no carro, passei e disse: “Fala, Lino”. Ele virou-se e respondeu: “Opa” ao mesmo tempo em que adentrava em seu veículo esporte. Eu continuei meu caminho, como se encontrar com um jogador de futebol no meio da rua, e cumprimentá-lo como a um velho conhecido, se configurasse em fato corriqueiro e comezinho, que acontece todos os dias. Na verdade, aquela era a primeira vez que eu me aproximava de alguém que me era tão conhecido –das narrações e entrevistas das rádios, do jornal, e muito mais raramente, da tevê. E um dos artilheiros do meu time de futebol de botão, principalmente nos chutes à meia distância.
Foi só isso. Mais nada. Com a boca seca e as pernas trêmulas, ainda o vi ligar o carro e ganhar a rua, enquanto eu retomava minha caminhada em direção ao Tabelionato.
Ao chegar em casa, à noite, eu ainda anunciaria, emocionado e saboreando cada sílaba contida na frase a ser proferida, mas sem grandes expectativas de ver meu ato heróico reconhecido: “hoje encontrei o Lino na rua”. Em meio ao som do jornal na tevê, alguém ainda perguntou, distraidamente: “que Lino?”.
E eu, sem perder o brilho nos olhos. O Lino, ué. O Lino, do Santos Futebol Clube.

O SIRI FUTEBOL E PRAIA E AS PAIXÕES DA INFÂNCIA

alfemminile.it

Benilson Toniolo

O chute veio do meio do campo e já sabíamos, pela força e altura com que a bola vinha, que só podia ter sido desferida pelo tio. E um chute daqueles, quando o tio pegava na veia, era duro de defender. Prima Angela e eu, quando vínhamos no ônibus a caminho da praia, já tramávamos a tática do jogo que não permitiria que nosso time, o Siri Futebol e Praia, não saísse derrotado: não se podia deixar o tio Aldo -meu tio e pai dela- acertar um chute daqueles. Quem estivesse na defesa –o Nal, o Xé ou quem ali estivesse- tinha que dar um jeito de parar a jogada. Não foi o que aconteceu.
Havíamos acabado de tomar o terceiro gol sem ter feito nenhum e decidimos, eu e ela, ambos jogar de goleiro para evitar mais gols e uma goleada ainda maior. Avisamos o Xé, meu irmão caçula, que naquele dia estava no nosso time: “fica aí e não deixa eles chegarem perto do gol! Cuidado com a marcação”, alertávamos em tom professoral. No momento me pareceu meio maluca aquela história de dois goleiros no mesmo time, com um jogador de linha somente, mas como tinha sido ideia dela, logo compreendi que provavelmente daria certo. Angela era assim, acertava sempre, e eu já havia entendido isso há algum tempo.
O Xé fazia o que podia correndo entre as linhas rabiscadas que demarcavam o campo de jogo, no meio da areia da praia. Chegou até a acertar um chute de bico na tentativa de marcar nosso tento de honra, mas a bola saiu em direção do sorveteiro, que devolveu de primeira. E Angela e eu ali, debaixo do gol, lado a lado a defender nossa cidadela. Vencia o time que primeiro fizesse cinco gols, e nós tomando de três a zero. O que era bem estranho para nós, porque geralmente as partidas eram bastante equilibradas. A gente ganhava e perdia na mesma proporção, acho. De repente, quando demos conta, lá vinha a bola, alta, forte e certeira, sem curvas, chutada em direção à nossa meta. Saltamos com os dois pés e com toda a impulsão que nossos dez anos de existência nos permitiam para tentar alcançá-la e assistimos, vencidos e impotentes, ela passar velocíssima sobre nossos dedos esticados. Era outro gol deles, outro gol do tio, e não conseguíramos fazer nada para impedir a iminente goleada que humilhava o Siri Futebol e Praia.
Angela ficou nervosa, diria que prestes a chorar. Dedo em riste e cenho franzido, os olhos azuis contrastando com raios vermelhos, caminhou a passos largos                                  em direção ao seu enorme pai, gritando e repetindo: “não valeu, não valeu, a gente não alcançou!”. E então, ainda caído no chão, vi o tio abrir-lhe os braços num sorriso branco que era do tamanho daquela praia toda, agarrá-la fortemente e dizer: “vamos dar um mergulho, filharada!”. Corremos todos como crianças que éramos em direção ao mar absoluto que nos esperava, também ele, num sorriso silencioso, branco e verde.
Eram assim as férias da nossa infância. Os tios que vinham de longe, do interior onde não havia praia, os primos que no fundo eram irmãos, as brincadeiras de verão e de inverno. E o futebol, paixão do tio e também nossa, a contagiar a todos. Jogávamos na praia, no quintal da casa após o almoço, e à noite, antes de dormir e depois da janta, o jogo de botão  na mesa da cozinha. Campeonato com tabela, artilharia e tempo cronometrado.
Até que um dia começamos, eu e Xé, a jogar bola com a molecada da rua, quase todas as noites, depois da escola e antes de a mãe chamar para a janta. Todas as ruas do bairro eram de terra, e jogava-se o futebol em praticamente todas elas. Na nossa, principalmente, dada a grande quantidade de meninos que nela moravam. De tanto jogar, aprendemos. E nas férias seguintes, já não éramos mais, eu e meu irmão, os meninos de antes. Passamos a jogar com nossos tios e primos de outra forma. Jogávamos malandramente, driblávamos, fazíamos tabelas, aprendêramos formas diferentes de bater na bola, tínhamos regras novas, estratégias, manhas, jeitos de parar a jogada. Até que um dia, na praia, o Xé deu um chapéu no tio. Jogou a bola por cima dele e buscou do outro lado, voltando a dominá-la antes de ela quicar no chão –um lance perfeito. O tio não disse nada, continuou jogando. Na hora, entre a euforia da jogada e o respeito e a admiração pelo tio, meu coração disparou. O tio Aldo, que antes era imarcável e incomparável, agora se cansava e não conseguia acompanhar nosso ritmo. E tomara um chapéu do seu sobrinho. Queríamos fazer jogadas de efeito, dar passe de calcanhar, matar a bola no peito e sair jogando. Agora, éramos quase craques. Matamos, sem querer, a ingenuidade e a pureza do futebol de praia que até outro dia praticávamos como brincadeira. Para nós, aquilo era futebol, uma coisa séria. Aquele chapéu matou o Siri Futebol e Praia.
Nas férias seguintes Angela trouxe na bagagem seu primeiro namorado, que para piorar ainda era palmeirense. O bom é que não jogava nada. Nas que vieram depois, foi a vez de Silvia e seu são-paulino gordinho metido a engraçadinho e, ele também, perna-de-pau. Como podiam nossas irmãs arranjarem namorados? Como podiam passar a recusar sistematicamente nossos convites para dar um mergulho com a repetitiva desculpa de que estavam com dor de cabeça (um dia comentei com meu irmão, “mas que diabos que essas meninas agora têm dor de cabeça todo dia?”)? Nossa vingança era, evidentemente, no futebol. Tripudiavámos: na cidade de vocês ninguém sabe jogar bola, não? Ao fim do jogo lá iam os quatro, os dois casais de braços dados para os abraços do mar. Nós? Voltávamos ao futebol, contrariados e inertes, fingindo indiferença à alegria dos novos namorados.

Tio Aldo costumava acompanhar os jogos do Santos num radinho de pilha que tinha uma capinha marrom e chiava um bocado (o rádio, não o tio). Invariavelmente, eu estava ao lado dele, nos meus primeiros sofrimentos alvinegros. Numa ocasião, reclamei: “tio, esse time só ganha de um a zero”. “E não está bom?”, respondeu. Uma vez empatávamos contra o Noroeste, em Bauru, o que me deixava muito irritado.  O tio achou tentou compensar: “melhor do que perder”. Noutra oportunidade, o América de Rio Preto fez um a zero no comecinho do jogo, com um ponta direita chamado Marinho que era, dizem, um cracaço, e nada de o Santos empatar. Nilton Batata acertou uma bola na trave. Quando o narrador anunciou quarenta minutos do segundo tempo, ele pousou uma das mãos no meu braço, me olhou com aqueles imensos olhos azuis e profetizou, com uma confiança que até então eu não conhecia: “o Santos vai empatar esse jogo”. Não empatou.

Comecei a torcer pelo Santos por causa do tio Aldo. Quando, sozinho em casa, eu me dedicava a ouvir os jogos nos rádios que meu pai trazia para consertar, eu sabia que, lá em Campinas, meu tio também estava a ouvir a mesma partida. E tentava adivinhar suas reações a cada gol feito, a cada gol perdido, a cada gol tomado. Quando nos encontrávamos, era só do Santos que falávamos. Tio, tu viu o gol do Pita? Quem é esse volante novo que o Santos comprou? Tio, será que se fosse o Vitor no lugar do Flávio tinha defendido aquele pênalti? Tio, mais de tardezinha vamos jogar bola? Eu guardava os comentários para quando me encontrasse com ele, nas férias que viriam.


Até que um dia, sem que ninguém esperasse, e apesar da doença que o consumia, o tio não voltou. E, para dizer a verdade, não voltou nunca mais. E nem respondeu a carta que lhe enviei, dizendo que sua doença não havia de ser nada, e que ruim mesmo era a defesa do Santos.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

TIO BERALDO E O SANTOS

www.espn.uol.com.br

Benilson Toniolo

Tio Beraldo era um exímio pedreiro, que fez nome e quase-fortuna na construção dos prédios verticais e tortos da cidade de Santos. Quer dizer, fortuna mesmo ele não fez, muito por culpa do alcoolismo. Mas foi bem. Tão logo se casou com tia Idalina, portuguesinha filha de dona de pensão viúva, tratou de construir seu sobradinho de madeira e alvenaria para os lados do canal dois.
Cedo vieram os filhos, Alberto, Elvira e Eduardo, pela ordem, que no futuro hão de ser profissionais, assim como o pai, acima de qualquer suspeita: dentista, professora e engenheiro, respectivamente, com a vantagem de nenhum deles ter se deixado levar pelo vicio da bebida. Cada um nasceu, cresceu, estudou e formou família graças ao trabalho caprichado e irretocável do pai. Em cada diploma recebido na formatura, estavam os calos de suas mãos, o suor de sua testa e de suas costas, a engenhosidade de seus cálculos e de sua liderança, a retidão de seu caráter. Seu Beraldo era honesto ao extremo. A gente santista sabia disso, e a ele confiava o sonho da construção de suas casas numa cidade que já começava a habituar-se às grandiosidades que fariam dela o que é hoje.
Os problemas cardíacos de seo Beraldo começaram por volta dos cinqüenta anos. Uma pontada, sudorese gelada, tremores, vista turva e o medo de morrer ali, em meio ao trabalho, sem ao menos se despedir de sua amada Idalina. Recuperado após uma noite de observação na Santa Casa, procurou o cardiologista. Exames, milhares deles. Levou os resultados ao doutor, tendo ao lado dona Idalina, que ela sim conhecia a linguagem de médicos e hospitais.
- Aqui está tudo ruim, seo Beraldo. Quatrocentos e noventa e nove de colesterol total. Quinhentos e cinqüenta de triglicerídeos, ácido úrico passando de doze. Glicemia, cento e vinte e dois. O senhor fuma?
Fumava.
- O senhor bebe?
Danou-se. Tinha que responder isso também?
- Tem casos cardíacos na família?
O pai morrera de derrame. A mãe tinha pressão alta. Perdera um tio com câncer. O resto, que ele soubesse...
- O que o senhor come?
Foi falando daquele jeito, meio-fala-meio-não-fala. Dona Idalina tomou a palavra e entregou. Contou tudo. O médico ficou bravo.
- O senhor quer morrer, seu Beraldo?
Queria não.
O doutor continuou bravo, prescreveu dieta rófoda e imediata e um monte de medicamentos para baixar as taxas constantes dos exames. Dona Idalina acompanhava tudo com olhos atentos e arregaladíssimos, assentindo com a cabeça o que dizia o doutor e estendendo ao marido sua expressão de reprovação. E não se conteve, quando o médico já se preparava para se despedir.
- Fala do Santos, Beraldo.
Beraldo balbuciou algo incompreensível. O médico:
- Como?
- O Santos, Beraldo. Fala do Santos.
O Beraldo, nada. Ela, já cheia de coragem, não vacilou e entregou mais esta:
- Esse aí é fanático, doutor. Chega a passar mal por causa desse time. Ouve os jogos pelo rádio, vai nos treinos, já chegou a brigar na rua por causa disso. E quando está escutando os jogos, doutor, ninguém pode nem chegar perto, fica num nervoso que o senhor não acredita. Xinga, fala palavrão, grita que nem louco, o coitado do juiz é que sofre. E quando o time perde, então, é um deus-nos-acuda. Já chegou a ficar cinco dias sem nem dirigir a palavra a ninguém dentro de casa, porque o time perdeu uma final de campeonato. Qualquer hora vai ter um negócio, esse homem, por causa do Santos, doutor, o senhor entende?
Não, ele não entendia, e aumentou a lista de recomendações: proibiu o homem de escutar os jogos do Santos. Comprasse  jornal no dia seguinte para saber o resultado, ou perguntasse para alguém, mas não podia mais ouvir os jogos do time. O senhor pode morrer de um ataque fulminante do coração, o senhor está me entendendo?
Seu Beraldo não disse nada. Homem de poucas palavras e habituado e tratar com respeito e servidão aos seus patrões, dos quais inúmeros eram médicos, concordou com tudo e saiu da sala. Na volta, no trólebus, não dirigiu a palavra à esposa. Considerava-se um homem condenado a morrer a qualquer momento, e muito em breve. Olhava para a rua, para as pessoas, para as casas, como se delas se despedisse. Quase chorou. Iria morrer, não tinha jeito. Se não fosse com um cigarro na boca, seria com um copo de cerveja. Ou com o radinho de pilha grudado no ouvido gritando gol do Pelé.
A tática adotada foi a seguinte: ele não ouvia mais o jogo inteiro, mas calculava mentalmente o tempo e, faltando cinco minutos para o final, ligava o rádio. Ali, acompanhava os cinco minutos restantes para o fim da partida, e mais os comentários, as entrevistas, as discussões acerca do resultado. Dona Idalina resmungava:
- Não foi isso que o médico mandou fazer.
Aos poucos, seo Beraldo foi melhorando. Cortou carne vermelha e frituras, reduziu de dois para meio maço de cigarros por dia e passou a tomar sua cervejinha só aos finais de semana –cortou o conhaque e a jurubeba. Voltou ao médico, fez novos exames, foi parabenizado pelo resultado e pediu à mulher que não falasse nada sobre seu amor pelo time. O médico provocou:
- E o Santos, seu Beraldo, como é que anda?
Ele desconversou, fez sinal de positivo e saiu. E ainda acompanhou os títulos paulistas de 67, 68, 69, 73, 78 e 84 –ano em que comemorou como um louco o gol do título estadual, feito pelo Serginho Chulapa, já no leito da Beneficência Portuguesa, onde morreu de câncer no pâncreas.

SEGUNDAÇÕES DE 21 DE JULHO DE 2014

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Benilson Toniolo

O deputado federal Manato (só consta, na matéria do jornal, seu “nome de guerra”) faltou na última segunda-feira à formatura de sua filha, que ocorria na cidade de Vitória (ES) porque deveria, no mesmo dia, apresentar aos seus colegas um projeto no plenário da Câmara. Ao chegar para trabalhar e perceber que o local estava vazio e deveria falar apenas para as cadeiras, foi ao plenário e iniciou sua participação dirigindo-se à filha ausente: “peço a Deus que em sua formatura não haja o mesmo ato irresponsável como esse que me tirou daí para ficar sem fazer nada aqui”. Em época de campanha política, e justamente para o Congresso, nunca é demais lembrar que pode tratar-se apenas de uma bravata do parlamentar. Ma se non è vero, è ben trovato. E a história não deixa de ter seu lado bonito e, em se tratando de políticos, ainda por cima, brasileiros, tocante.
Na mesma semana o pensamento brasileiro perdeu, num intervalo de 24 horas, respectiva e desgraçadamente, João Ubaldo Ribeiro e Rubem Alves. Sobre o primeiro, bem mais famoso e popular, choveram reprises de entrevistas e participações em mesas redondas de eventos literários, aos quais assisti a boa parte. De Sargento Getúlio, seu grande livro (ainda não li O Sorriso do Lagarto e Viva o Povo Brasileiro), retirei uma frase como epígrafe para meu Porró do Beco das Almas, que fala dos estertores de um homem diante da morte. Grande, mas não surpreendente perda, dados seus notórios problemas com os vícios do fumo e do álcool, que ao acompanharam até o fim. Quanto a Rubem, fica como legado sua inquietação, sua capacidade de questionamento e de repensar a educação brasileira. Por ter trilhado o caminho da academia, tornou-se voz fundamental também em áreas como teologia, filosofia e sociologia. E tem gente que ainda pensa que nossa maior perda no ano foi o jogo para a Alemanha na Copa do Mundo.
Em ano eleitoral, a coisa está feia para os lados do PT. Segundo pesquisa Datafolha, Dilma tem o dobro de rejeição de Aécio (35% contra 17%) e mais que o dobro da de Eduardo Campos (35% contra 12%). Num eventual segundo turno, ela está a apenas sete pontos percentuais do pernambucano (45% a 38%) e meros 4 pontos (44% a 40%) do mineiro –diferença esta que,em fevereiro, chegava a 27 pontos. Já para o governo de São Paulo, as intenções de votos em Alckmin chegam a 50%, e Serra lidera com folga a corrida para o Senado. Na esfera municipal, o índice de satisfação de Haddad à frente da prefeitura paulistana é de 17%, o que provocou a ira de Lula e a convocação do alcaide para uma reunião de emergência para tratar de estratégias que garantam a melhora dos números –e a conseqüente elevação das intenções de voto no candidato do partido ao governo do Estado, o obscuro (em todos os sentidos) Alexandre Padilha que, apesar de contar com todo o aparelhamento público, consegue ficar atrás do peemedebista Paulo Skaf, o decano do capitalismo. Voltando a Dilma: ou vence logo no primeiro turno, ou provavelmente perde a eleição. A três meses do pleito, Lula terá que operar novos milagres para conseguir manter seu projeto de poder. O que, em se tratando dele, não é nada impossível. Enquanto isso, como diria Verissimo, “o povo vai pagando impostos”, sem saber direito por quê, para quê.

A chuva de corpos humanos (inteiros e, em sua grande maioria, aos pedaços) que desabou proveniente do avião da Malaysia Airlines carregado de passageiros sobre uma região da Ucrânia na última semana atingiu hortas, telhados, quintais, uma plantação de girassóis e é mais um duro golpe na fé que ainda conservo com relação à humanidade –quer dizer, a esta altura dos acontecimentos, nem sei se é fé o que trago comigo. Também não sei qual seria minha reação ao ver o corpo nu de um ser humano, inteiro ou aos pedaços, desabando do céu sobre o teto de minha casa depois do avião em que viajava ser atingido por um míssil disparado da terra. Nem falo aqui das crianças despedaçadas, dos brinquedos, das bagagens, das roupas, das fotografias, das memórias que se foram. O que quero dizer é que, se perdemos a capacidade de chorar diante de uma cena destas, então é sinal de que também nós já não estamos vivos -e faz tempo. Ou, pelo menos, de que tenhamos já deixado de viver.