segunda-feira, 27 de outubro de 2014

MINHA HISTÓRIA COM O PT


Benilson Toniolo

Ouço no rádio o escândalo do dia. No Brasil do PT, é assim: os escândalos se sucedem na escala de um por dia. Desta vez, carteiros a serviços dos Correios foram flagrados distribuindo material de campanha da candidata Dilma Rousseff. Ou seja, funcionários de uma estatal (apesar de existirem varias franquias) a serviço de um partido político. Constrangedor, no mínimo. Os folhetos com a cara sorridente de Dilma não foram selados. Não foram pagos. Ao invés de cumprirem suas jornadas de trabalho entregando correspondências à população, os entregadores uniformizados distribuíam material de campanha da presidente da República candidata à reeleição. Se alguém ainda não sabia o significado da expressão “aparelhamento do Estado”, acabou de descobrir.
Somem-se a este caso os escândalos da Petrobras, as mentiras deslavadas, as calúnias dirigidas aos demais candidatos à Presidência, a incapacidade de gerir a economia do País (chegam a inventar uma crise internacional para justificar a estagnação econômica do Brasil, quando sabemos que até a Bolívia apresenta crescimento mais elevado do que o nosso), um sistema de saúde falido, a inoperância frente ao triunfo do narcotráfico que age livremente em nossas fronteiras e dentro do território brasileiro, a falência das polícias, um sistema educacional arcaico, oneroso e ultrapassado, um sistema de concessão de bolsas que é mais um instrumento de garantia de votos do que qualquer outra coisa, o sucateamento das instituições (que o diga o Itamaraty), a compra de apoio do Legislativo, o cerceamento da imprensa, a difamação de jornalistas, e por aí vai. Posso dizer sem medo de errar que nunca houve um grupo de pessoas no comando do País mais corrupto do que este do PT. E, no entanto, Dilma lidera as pesquisas de intenção de voto para a presidência. Deve inclusive ser reeleita. Só posso concluir: o povo brasileiro e o Partido dos Trabalhadores se merecem. São iguais. Um é reflexo do outro. Porque quem se alia a bandido, a ele se equivale. E quem vota em bandido não é simpatizante. É comparsa. É cúmplice.
Conheço o PT não é de hoje. Mais precisamente, de meados de 1991, quando comecei a me envolver com literatura e com o pessoal da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Santos. Passei mesmo a colaborar com alguns projetos de cultura nos bairros, ciclos de poesia e prosa, reuniões de escritores, teatro, música, dança. Aquilo para mim era um deslumbramento.
Através do trabalho do pessoal que atuava na Secretaria, passei a nutrir grande admiração pela prefeita, Telma de Souza, de quem até hoje sou admirador.
Conheci Beatriz Rota-Rossi, Valdir Alvarenga, Jair dos Santos Freitas e outros batalhadores. Aprendi um bocado com esta turma. Passei a freqüentar a faculdade de Filosofia e Letras da Unisantos. Não o curso, que eu não tinha dinheiro para bancar, mas o ambiente universitário. Frequentava a faculdade vários dias por semana. Tinha ali um monte de namoradinhas. Afora isso, o pessoal do Teatro Municipal, o Núcleo de Convivência Literária, o pessoal da dança ensaiando sobre textos de Maiakovski. Minha alma começou a pulsar e a entender o idioma da Arte.
Meus poemas, apesar de ruins e imaturos –não que os de hoje não o sejam, ruins e imaturos- saíam publicados no Clips, depois no D.O. Urgente. Santos não era como o Guarujá, onde eu morava. Eu não conhecia nenhum artista de Guarujá. Mas de Santos, conhecia muitos. Não todos. Mas muitos.
Minha admiração pelo trabalho desenvolvido pela Prefeitura não tinha fim. Veio a greve dos Estivadores, e vi Telma de Souza, no alto das escadarias da Prefeitura na Praça Mauá, bradar: “vamos parar esta Cidade! Enquanto os trabalhadores do Porto não forem valorizados, vamos até o fim!”. Reparei que não havia nenhuma câmera, nenhum microfone por perto. Ela, a prefeita de Santos, conclamava sua equipe a apoiar os grevistas. Subi num caminhão na General Câmara, íamos parando e fechando o comércio. Paramos no Gonzaga. Me deram o megafone. Fechei dois restaurantes –o dono de um deles, um português, queria me bater alegando que ele não tinha nada a ver com aquela greve- e duas agências bancárias. Só no gogó. Me levaram para a sede do Sindicato, na Rua João Pessoa. Me apresentaram para um monte de gente. Perguntaram onde eu trabalhava. Em lugar nenhum, respondi. Desempregado. As pessoas riram.
Quando Lula ia a Santos para algum compromisso, o pessoal da Secretaria me ligava. Eu ia. Ele não. Trabalhei pela eleição de Capistrano, o secretário da Saúde de Telma. Lembro da musiquinha da campanha até hoje, um sambinha desses que grudam na cabeça da gente. E gruda tanto que até hoje me ocorre. O governo da Telma foi tão bom que conseguiu fazer seu sucessor, um médico preto e nordestino.
Passei a andar com a estrela do PT na camiseta e numa boina branca que eu gostava de usar. Eu votava em Lula. Votei para deputado federal. Para presidente, em 89. Sempre acreditei no seu discurso, na sua vontade de fazer um Brasil mais justo para todos. Acreditei até quando o vi chorar. Lula era nordestino como meu pai. Operário. Trazia a esperança de um futuro diferente. Representava exatamente o oposto do que se conhecia como política.  ossde Souza, de quem atetaria, passei a nutrir grande admiraçia e prosa, reunioes cretaria de Cultura da Pr
Em 1997, no Nordeste –eu gerenciava um hotel lá- soube que Lula estarei na Cidade. Falei com o pessoal de Santos, que me colocou em contato com o PT de lá. Consegui levar Lula para gravar um programa no nosso Centro de Convenções. Tirei uma foto com ele. Chamei-o de Presidente Lula. Fiquei impressionado com seu mau humor e a quantidade de palavrões que ele proferiu nos cerca de trinta minutos em que lá esteve. Ofereci-lhe um apartamento para descansar, comer alguma coisa, tomar um banho. Ele me olhou e não respondeu. Olhou  fixamente para as pernas de minha mulher, que tirava as fotos. Depois, foi embora sem se despedir de ninguém. E falando palavrões. Lula, dizem, fala muito palavrão até hoje.
Lula teve nas mãos a grande chance de promover a revolução institucional e moral que este País precisava em 2005, por ocasião do escândalo do Mensalão. Deflagrada a crise, poderia ser o protagonista das reformas necessárias que finalmente  colocariam o Brasil nos trilhos do desenvolvimento. Ele tinha a seu lado o apoio da opinião pública, da mídia, do povo, do mundo inteiro. Era um país inteiro na expectativa de que o presidente assumisse sua condição de grande estadista. E ele refugou. Alegou desconhecimento. Disse que não sabia, Que não tinha sido informado. Agiu como agiriam todos aqueles a quem atacou durante toda a sua vida. Foi covarde, leviano, mesquinho. Foi pequeno. Foi ridículo. Fugiu para a Europa e escondeu-se nos carpetes felpudos dos hotéis estrelados e dos palácios. Porque o Lula operário e defensor dos pobres  morreu no dia da posse, em 2003. A partir dali, surgiu o político deslumbrado e de rabo-preso.
Lula revelou-se não o pior, mas o mais maquiavélico de nossos presidentes. Inescrupuloso, teceu complicadas alianças com algumas das figuras mais abjetas e reacionárias da República. Ajoelhou-se perante Jader Barbalho, e beijou-lhe as mãos. Abraçou Maluf, pediu conselhos a Sarney, mancomunou-se com Calheiros.
O PT comprou parlamentares, criou ministérios e secretarias para presentear aliados. Comprometeu o patrimônio nacional ao distribuir dinheiro público a Cuba, Venezuela, Paraguai, Bolívia. Fez a alegria dos ditadores africanos perdoando dívidas. Subjugou a soberania italiana ao recusar-se a extradição de Battisti. Ignorou os perseguidos políticos do regime de Fidel.
Lula para mim, como estadista, é um perfeito desastre. Como homem público, um farsante. E como político, um caluniador e difamador como poucas vezes vimos na história deste País. Enganou-nos a todos, nós que vimos seu nascimento político e ascensão. Tornou-se igual, e até pior, aos que combatia. Vendeu-se. Nivelou-se ao que há de pior. Mente. Lula mente o tempo todo.
Dilma, por sua vez, provavelmente será reeleita. Por quê? Porque, apesar de todos os escândalos, governa um País onde não há oposição (neste sentido, a atuação do PSDB é patética), onde a maioria das pessoas não dá a mínima para a política (a educação está falida, lembram-se?) e que ainda sofre com a falta de líderes com idéias inovadoras e preparo técnico adequado –reflexo ainda dos males da ditadura.
A dois dias do pleito presidencial, meu voto é declarado: não voto no PT. Porque o que conheci como PT morreu, não existe mais, e já faz tempo. O PT de hoje representa uma ditadura velada, que faz apologia à ignorância (a educação está falida, lembra?) e persegue seus poucos opositores. E de ditadura nós, os brasileiros, já deveríamos estar fartos.

Quanto à foto que tirei com Lula, não sei onde guardei. Mas desconfio que está perdida entre as páginas d´O Príncipe, de Machiavelli, ou de Macunaíma, o Herói Sem Nenhum Caráter, de Mario de Andrade. O que, podem estar certos, é uma atitude deliberada.

O RADINHO DE PILHA

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Benilson Toniolo

Cheguei do horário do jantar, fechei a porta da cabine e voltei ao trabalho de programação do sistema. Após alguns minutos, alguém bateu à porta da sala, fui abrir e era o Gerente de plantão, que trazia um radinho de pilha, vermelho, na mão.
- É você que é o Benilson? Então, enquanto você estava fora seu pai passou por aqui e pediu para lhe entregar este rádio. Ele disse que você queria ouvir o jogo desta noite e resolveu te trazer o rádio.
Seo Benício nunca foi muito chegado a futebol. Não dava importância. Naquela noite, voltava para casa de ônibus depois de mais um dia de trabalho quando resolveu descer no meio do caminho para me entregar um radinho de pilha para que eu pudesse ouvir o jogo.
Meu pai era um sertanejo macho, que entre outras coisas dizia que não dava carinho aos filhos para que, quando ele morresse, ninguém sentisse falta dele. Falácia. Era através de carinhos como este que ele deixava sua marca com a gente. Quando eu era menino, lembro que ele gostava de se deitar em sua cama depois da janta. Eu ia lá, me deitava sobre seu peito e ficava brincando com seus pelos do tórax. Ele imitava um leão e abria uma bocarra enorme, fingindo me morder e me fazendo cócegas. Também brinquei assim com meus meninos. Pai é tudo igual –mesmo depois de sacolejar por onze dias em cima de um pau-de-arara, fugindo da seca que incendiava o sertão das Alagoas.
Quase não pude ouvir o jogo direito naquela noite por conta da interferência que as máquinas produziam na transmissão –afinal de contas, eu estava trabalhando. Mas quando o juiz apitou uma falta para o Santos na entrada da grande área aos quarenta e cinco do segundo-tempo, saí da sala e me posicionei de pé na porta de entrada, do lado de fora, esperando o apito do juiz. E não deu outra: Mendonça bateu à meia-altura, no canto, longe do alcance do goleiro adversário. Dois a um para nós, fim de papo na Vila. Vibrei muito com aquela vitória e, assim que girei para baixo o botãozinho preto e ouvi o “clic” indicando que o rádio estava desligado, cerrei o punho com força  e sussurrei, agradecido: “valeu, pai!”.
São estas as pequenas memórias de que somos feitos, e das quais dependemos para continuar vivendo e palmilhando cada centímetro desta caminhada de sacrifícios, esperanças e alegrias chamada Vida.

Valeu, pai.

"Ô, CORINTHIANO!"

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Benilson Toniolo

No comecinho da rua era a casa do seo Afrânio, um homem gordo que trabalhava nas Docas. Tinha duas filhas adolescentes e sua esposa, a dona Lurdes, era uma portuguesa bigoduda que só usava vestido escuro e tinha fama de encrenqueira e de não gostar de tomar banho.
Aos domingos pela manhã, seo Afrânio varria seu quintal e a calçada, onde caíam muitas folhas das árvores próximas. Também pendurava as gaiolas dos seus pássaros  nos galhos do chapéu-de-sol que havia defronte sua casa. Depois, se sentava em uma cadeira de vime e ficava ouvindo um rádio de pilhas, que eventualmente alojava sobre sua grande barriga enquanto girava o botão seletor em busca de suas estações preferidas.
Meu pai de vez em quando parava para conversar com ele. Minha mãe, sempre que passava, o cumprimento e nos mandava fazer o mesmo. Bom dia, seo Afrânio. Boa tarde, seo Afrânio. Olá, seo Afrânio.
O problema é que ele tinha mania de chamar todo mundo de corinthiano. E a gente, que não era corinthiano, ficava bravo. Passávamos e ele provocava: “ô, corinthiano”. A gente ficava bravo e com vontade de mandar o homem à merda. Um dia, passava com um amigo palmeirense e, diante da provocação, o repreendi. “que corinthiano o quê, ô!”. Depois temi que ele contasse à minha mãe –ou pior, ao meu pai. Acho que nunca me entregou. Mas continuava provocando a gente. Um dos meus amigos, são-paulino, um dia me disse que se a provocação fosse com ele ia atacar pedras no homem. “Tá louco?”, respondi.
Um dia eu vinha da venda com meu irmão quando vimos um carro preto, enorme, com o desenho de uma cruz nos vidros, parado na frente da casa dele. Passamos rapidinho e nem olhamos para o lado. Contamos à mãe que, horas depois, comunicou com aquela fisionomia grave que caracteriza as mães quando vão anunciar aos filhos um acontecimento muito sério: “seo Afrânio morreu, coitado. Estava bem, acabou de almoçar e foi tirar um cochilo. Dona Lurdes chamou ele para tomar café e nada de o homem responder. Foram ver, estava morto. Já pensou? Coitada da dona Lurdes”.

Isso foi há muito tempo. Ainda assim, por via das dúvidas, até hoje evito dormir depois do almoço. Vai que me encontro de novo com seo Afrânio e ele vai estar lá, de asinhas e vestido branco, a me receber no Paraíso com a vassoura na mão e me saudando com um “ô, corinthiano!”?


ANTÍGONA


Benilson Toniolo

Julinho foi com a namorada ao Teatro da Praia, numa tarde de domingo, assistir a Antígona, de Sófocles, encenada por um grupo de Artes Cênicas de uma universidade local. De cara, apaixonou-se pela atriz principal, loura, peituda e canastrã. Na saída do espetáculo, procurou se informar e descobriu que o grupo se reunia de quarta a sexta-feira para ensaios na faculdade. Não deu outra: na quarta-feira, meia-hora antes de o ensaio começar, lá estava o Julinho perambulando pela faculdade com cara de intelectual que tinha um compromisso cultural muito importante. Viu Rebeca –era esse o nome de sua Antígona- entrar cumprimentando alegremente os colegas e subir as escadas que levavam ao auditório, com semblante muito sério. Bonita ela não era muito não. Mas era Antígona. E usava sutiã.
Julinho assistiu às duas horas de ensaio sozinho na platéia e, no final, deu um jeito de ficar no caminho da amada quando ela saía. Olhou-a de frente, estendeu a mão e apresentou-se, solene: “Rebeca Souza? Prazer. Júlio Márcio, escritor”.
Bom, escritor não era bem o termo. Depois de fazer algum sucesso arriscando uns versinhos na escola aos doze anos, ele resolvera aos vinte apostar no que julgava ser seu talento e se dedicar à poesia. Desempregado, tinha tempo de sobra. E, com os hormônios em contínua efervescência, resolvera “investir” na agitada vida cultural da cidade para ver se aprendia alguma coisa de cultura e, de quebra, tentava arrumar umas menininhas. Estava dando certo.
Julinho, que em geral se apaixonava uma vez por semana, não era do tipo que se declarava abertamente e ia direto ao ponto, por assim dizer. Fazia o tipo dissimulado, aquela história do “sem querer, querendo”. Ficava ali, num cerca-lourenço danado, só cercando. E mandava flores, dava presentinhos fora de hora, encontrava a menina “por acaso” na saída do trabalho dela, telefonava para dizer que havia acabado de ouvir uma música do Caetano e também “por acaso” dela se lembrara, essas coisas. Quando a presa já tinha arriado todos os escudos e armaduras, aí o Julinho dava o bote, de preferência numa noite esplendorosa à beira-mar, intercalando beijos desesperados com  versos do Vinicius de Moraes. Aí era covardia. Julinho era cruel. Se bem que, não raro, a “presa” resolvia acabar com aquela embromação e tomava a iniciativa, ou cedendo aos seus encantos ou mandando o Julinho ir ver se ela estava na esquina. O Julinho, nestes casos, ia e não voltava. Podia até ser meio doido, mas não era besta.
O problema é que a tal da Rebeca estava inflexível e, ao saber das intenções do moço, propôs que vivessem juntos uma “paixão literária”. Nada mais natural, uma vez que ela já tinha um namorado –o Florisvaldo- a quem não pretendia trair nem abandonar e também pelo fato de ambos, ela e Julinho, serem apaixonados pelos mesmos poetas, a saber: Rimbaud, Baudelaire, Neruda e Leminski. Julinho estranhou. Esse negócio de “paixão literária”, afinal de contas, incluía sexo ou não?
A esta altura o rapaz, que já tinha dado aviso-prévio para a namorada, pôs-se a investigar quem era o tal do Florisvaldo que impedia sua conquista. Quando descobriu, ficou perplexo: o rival era baixinho, usava óculos com um grau muito acima do seu, magrelo, com sinais de calvície precoce, fumava, trabalhava como cobrador de ônibus, era recém-separado e andava com três filhos pequenos a tiracolo, que inclusive o acompanhavam  nos seus encontros com Rebeca. Além disso, não tinha carro, não gostava de poesia e falava “menas”. Julinho se invocou e resolveu tirar satisfações com sua Antígona:
- Pô, Rebeca.
Mas não teve jeito. Sua diva grega se manteve insensível às investidas e continuou firme com Florisvaldo. Estava apaixonada, o que ele queria que ela fizesse? Julinho aos poucos foi desistindo e, numa noite solitária de sábado de pouquíssima poesia, resolveu telefonar para a antiga namorada para “ver se a boiada ainda estava no pasto”, como se diz. Atendeu o pai:
- Ela não está. Foi ao teatro com o namorado.
“Esse negócio de teatro é um problema”, concluiu Julinho, entre desconsolado e conformado.

Então ele coçou a cabeça, conferiu o relógio e sentou-se no sofá da sala ao lado da mãe, que anunciou que já estava quase na hora do programa do Gugu.


A MISSA DO VAQUEIRO

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Benilson Toniolo

Em Exu, interior de Pernambuco, o boiadeiro Raimundo Jacó era o zeloso guardador do numeroso rebanho do patrão. Sertanejo forte, corajoso e dominador de sua função, cuidava da boiada com rigidez e responsabilidade. Tinha um aboio que era uma beleza, no dizer da gente do lugar. Foi ficando conhecido por sua lealdade e competência. Na mesma fazenda, outro vaqueiro, Firmino, menino novo no ofício e muito a aprender na arte de aboiar e cuidar do gado, cuidava do reduzido rebanho da patroa.
Certa vez, uma rês da patroa se perdeu, e coube a Firmino embrenhar-se pela região atrás do bicho fugidio. Se andou muito ou se andou pouco, não se sabe. O que se sabe é que Firmino voltou de mãos vazias, balbuciando desculpas e justificativas. Então o fazendeiro chamou Raimundo: “saia em busca do boi e só volte aqui quando encontrar”.
Raimundo saiu a cumprir a ordem, e Firmino postou-se na porteira grande da fazenda na esperança de  ver Raimundo voltar fracassado. Não voltou. No fim da tarde do mesmo dia, vinha o vaqueiro trazendo pela mão o boi fugitivo. Aturdido e temendo perder o emprego, Firmino acercou-se de Raimundo e pediu: “me dê aqui este boi. Vamos dizer ao patrão que quem encontrou fui eu”. Raimundo negou: “oxe!”. Firmino implorou: “Pelo amor de Deus, Raimundo Jacó. Faça isso por um pobre. O patrão vai me botar no olho da rua”. Raimundo fez que não ouviu. Continuou seu caminho, decidido a entregar pessoalmente o boi recuperado ao patrão. Firmino, num ato de desespero, apanhou uma pedra que havia no chão e atacou Raimundo pelas costas, desferindo-a contra sua cabeça. Raimundo Jacó caiu sem vida em meio a uma poça de sangue.
O patrão, que tinha interesse em lançar-se candidato a uma vaga de deputado na Assembleia no Recife e não queria ver seu nome envolvido em escândalo, procurou o juiz, que inocentou Firmino alegando legítima defesa.
Luiz Gonzaga, o Rei do Baião e da música popular brasileira, chegava em Exu no exato momento em que terminava o inquérito, e Inteirou-se do caso pelo vigário local. Inconformado com a injustiça e com a crueldade do crime, o padre pediu a Gonzaga que fizesse uma música que servisse tanto de homenagem ao vaqueiro assassinado como de protesto pela decisão da Justiça. Gonzaga, em parceria com o poeta e médico potiguar Jandhy Finizola, mais do que uma música, compôs a Missa do Vaqueiro, que acabou por tornar-se uma verdadeira peça de protesto contra a opressão e violência que sofriam os trabalhadores pobres do Nordeste do Brasil. Raimundo Jacó e Luiz Gonzaga eram primos legítimos de primeiro grau.       
A primeira vez que a peça musical foi executada foi justamente na missa de 01 ano da morte de Raimundo. A partir daí, seu túmulo passou a ser local de peregrinação pelos moradores locais e das cidades vizinhas, havendo até mesmo relatos de milagres atribuídos a ele. A fé e a esperança do povo simples e sofrido serviam de consolo e refrigério naqueles cafundós ardentes e opressores.
A história de Raimundo Jacó foi sendo esquecida ao longo do tempo, principalmente após a morte de Luiz Gonzaga, em 02 de agosto de 1988. E consta que, enquanto expirava e se despedia da vida no leito do Hospital Santa Joana, no Recife, era com aboios que Gonzagão tentava superar a dor do câncer terminal que lhe roía os ossos.
Só nos restou A Missa do Vaqueiro, composta de nove partes: “Jesus Sertanejo, “Kyrie Eleison”, “Glória”, “O Credo”, “Ofertório”, “Sanctus Sanctus”, “Pai-Nosso”, “Comunhão” e “Canto de Despedida”. Vale ser ouvida, como exemplo vivo da cultura e da música popular deste País.



Obs.:  este texto é uma livre adaptação de parte do livro “O Fole Roncou – Uma História do Forró”, de Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues (Editora Zahar).


domingo, 28 de setembro de 2014

A AUDITORIA NOTURNA

www.ischia.org

Benilson Toniolo 

Quase oito da manhã e nada de o relatório fechar. A diferença estava no setor de telefonia. Eu tinha trabalhado a noite inteira na auditoria do hotel e nada de os números entrarem num acordo. Vamos pela ordem. Room service, ok. Bar da UH, ok. Lavanderia, ok. Boutique, sem movimento. Segunda feira é assim. Hotel vazio, ninguém compra nada. Mas e telefonia? Vamos voltar. Diárias, que é o mais pesado. Tudo certo. Poucos hóspedes, tarifas de acordo,  sem descontos indevidos ou estornos que necessitem justificativas. Eu saía às sete, já davam oito horas e eu lá, debruçado sobre o relatório de auditoria noturna. Que diabos. Daqui a pouco começariam a chegar os funcionários e iam começar as perguntas e o estranhamento. O que aconteceu? Tá aí até agora? Tá com diferença? Algum problema? Não, estúpida, eu é que gosto de ficar aqui olhando para o relatório até esta hora. Não, é que eu e os números nos apaixonamos e não conseguimos nos largar. Voltando. Taxa de ocupação, diária média, chart de reservas sem over. Agora, as contas. Saldos elevados, ok. Restaurante, ok. Custo médio do café-da-manhã. Tudo certo. Só a telefonia que não bate. Oito e dez. A esta altura, eu já devia estar dormindo. Até encontrar esta diferença, se for logo, nove horas. Pego o ônibus das dez, uma hora até chegar em casa, já serão onze da manhã, já terei perdido três horas de sono. A menina do administrativo chega, deposita a bolsa sobre a mesa de trabalho e me lança um olhar que acusa: “incompetente, não consegue nem fechar o relatório de auditoria”. Insuportável. Em três meses de hotel isso nunca tinha acontecido. E bem na folga do meu chefe. Vão dizer que, depois de período de experiência, não aprendi nada, e que não tenho condições de assumir sozinho a auditoria noturna com um hotel com pouco mais de vinte por cento de ocupação. Incompetente, inexperiente, burro. Ela me manda um bom dia, respondo com uma disposição inventada (simulo descontração  e despreocupação no tom de voz), ela pergunta se deu diferença na auditoria e eu respondo que sim, mas já achei. Mentira. Oito e vinte. Passam o almoxarife, o chefe de contas, o chefe de reservas. Jogaram futebol ontem à noite, hoje comentam os lances e morrem de rir. Quando acabaram de jogar, provavelmente eu já estava aqui trabalhando. Acabaram o jogo, tomaram cerveja, fora para casa, tomaram banho, dormiram, acordaram, tomaram banho de novo, comeram, voltaram para o trabalho e eu ainda estou aqui. Room service, ok. Lavanderia, ok. Diárias, ok. Taxa de ocupação, diária média, Bar da UH, Restaurante, chart de reservas, custo médio, tudo ok. Telefonia. Telefonia não. Diferença. Com esse sono que estou, não raciocino. Passa a secretária do gerente, aquela gostosa.   Passa a Governanta, o chefe de recepção afeminado. Camareiras, o pessoal de compras, controladoria. Posso procurar o administrativo e pedir ajuda. Prepotente, ele vai me pedir para esperar enquanto vai tomar café e bater um papinho com todo mundo. Vai dar sua volta diária no hotel sem esconder que está se preparando para o dia em que chegar à gerência. Só tem um jeito, se eu quiser embora e não passar por incapaz. Igualar os números. Meu chefe já me havia confidenciado que dá pra fazer. A gente entra no sistema e simplesmente altera o número. Vai mexer no acumulado. A única forma de alguém descobrir é comparando o relatório anterior com o atual. Mas isso ninguém faz, segundo me disse o chefe. Mas minha senha não tem acesso. A dele tem. E eu sei a senha dele, de tanto vê-lo digitar. O sono, quase nove horas, uma hora para chegar em casa, se eu entrar no sistema logo ainda pego o ônibus das nove. E se alguém descobrir? Digo que estava com diferença, e que eu pensei que este seria o procedimento correto. Entro no sistema com a senha do chefe, e o nome dele aparece como usuário. Ele está de folga. Sou um farsante, penso. Mas um farsante que está prestes a ser vencido pelo sono e pela necessidade de ir embora. Trabalhei a noite toda sozinho, cobrindo a folga do chefe. E não consigo fechar a auditoria. Ainda preciso imprimir os relatórios para encaminhar à gerência. Quando o gerente chega, os relatórios devem estar sobre sua mesa. Acesso a conta de telefonia, corro sobre os números com o cursor e me preparo para igualar os números e burlar o relatório quando ouço a voz do gerente que chega para o trabalho. Só estive com ele no dia da contratação. Depois, nunca mais. Chama-se Gomes. Ele entra na sala, cumprimenta a todos, me acena com a mão e pergunta se está tudo bem. Digo que sim, mas que gostaria de falar com ele. Claro, ele responde. Se aproxima, eu saio do sistema e entro de novo, para me certificar que a senha do chefe foi mesmo retirada. Ele chega à mesa e falo Seu Gomes, desculpe mas não consegui fechar a auditoria até agora porque está dando diferença na conta de telefonia. Por este motivo, quando o senhor entrar em sua sala os relatórios não estarão em cima da mesa. Por favor, me desculpe, mas continuarei tentando descobrir o que houve. A barriga acusa fome, os olhos ardem, a cabeça lateja. Ele responde Telefonia? Eu falo Sim, telefonia. O resto está tudo certo, menos a telefonia. Ainda de pé, ele me pede para ver o relatório analítico. Mostro, ele corre os números com o indicador da mão direita e para em um determinado número. Depois vira a página, vai até o último número e fala Tá aqui, ó. Esta ligação foi estornada, então você tem que deduzir do lançamento, senão vai dar diferença mesmo. Olha só, tem o valor da ligação, não tem? Agora você vem aqui no final do relatório e confere: tem o estorno. O estorno anula aquele valor. Agora bate. Viu? Enrubesço, estremeço, me ponho a ponto de chorar. Não encontro o que dizer. Em dez segundos, ele achou uma diferença que demorei quase uma noite inteira de trabalho para encontrar. Estou sentado, e ele às minhas costas, de pé. Ele pergunta se o chefe não me explicou isso. Não me lembro, respondo. E não me lembro mesmo. Ele ainda diz Agora está certo, pode imprimir os relatórios. Mas antes faça a justificativa do estorno. Dá um tapinha amigável nas minhas costas, ri e diz A culpa não é sua, é de quem te contratou. Estou arrasado. Sou mesmo um incompetente. Não sei o que será de mim no futuro. Um sujeito de quem se esperava tanto, que no entanto não consegue fechar sozinho um relatório de auditoria num hotel com pouco mais de vinte por cento de ocupação. Hoje à noite o chefe vai me dar uma bronca. Isso, se não decidir me mandar embora. Imprimo os relatórios, confiro os números da telefonia, tudo está conforme. Aponho minha assinatura no rodapé de todas as folhas. Separo em blocos, grampeio, organizo no escaninho. Nove e cinco. Perdi o ônibus. Saio sem bater o cartão de ponto, pois a ordem da administração é que, mesmo ficando até mais tarde no serviço, deve-se bater o cartão no horário previsto para a saída para evitar horas extras. A justificativa dada pela gerência é que, se o funcionário precisou ficar mais tempo, é porque não conseguiu dar conta de suas tarefas durante o horário de expediente. Saio e o dia me cega a visão. A cabeça lateja mais forte e a barriga volta a dar sinais de impaciência –e de fome. Se me mandarem embora pelo que aconteceu hoje, será uma injustiça. Seja o que Deus quiser. E como meu ônibus só voltará a passar em quarenta minutos, a melhor maneira de lutar contra o cansaço é caminhar e assim ir adiantando o retorno para casa. E é o que começo a fazer, evitando olhar para cima para que a luz do sol não me volte a escurecer as vistas.

VOTAR, VOTAR, VOTAR...


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Benilson Toniolo

Faltando sete dias para a o dia da votação, tem uma coisa nestas pesquisas de intenção de voto para presidente da República que me incomoda muito. Segundo divulgado, a presidente Dilma tem 40% das intenções de voto, contra 27% de Marina Silva e 18% de Aécio Neves. Resultado, dizem, do verdadeiro apedrejamento a que foi submetida a segunda colocada. Tanto PT quanto PSDB trataram de difamar, maldizer, caluniar e declarar mentiras descaradas sobre a personalidade, a trajetória e os planos de governo da candidata do PSB. Só faltou responsabilizá-la pela goleada sofrida pela Seleção na Copa do Mundo e acusá-la de fazer parte do rol de terroristas do Estado Islâmica. Tudo isso pelo simples fato de Marina representar, hoje, uma oportunidade real de derrotar Dilma e desalojar o PT do Palácio do Planalto.
A pesquisa mostra que a estratégia de insultos e difamações deu certo. Dilma e Aécio cresceram e Marina perdeu votos. Mas é neste ponto que reside uma questão: por quê? E a resposta é simples: porque o eleitor brasileiro é, em grande parte, uma figura que aparentemente pouco lê, quase nada se informa e nada reflete. Parar para pensar na conjuntura política eleitoral não é prática do eleitor brasileiro, que prefere decidir seu voto pela aparência dos candidatos e pelo que vê na propaganda gratuita da tevê. Grande parte do eleitorado brasileiro não votará em Marina porque ela é feia, evangélica e nunca administrou nada, como ouvi por aí.  Não vota em Aécio porque ele é gago e não convence em seus pronunciamentos, como também já me disseram. E não vota em Dilma porque ela é da “quadrilha do PT”. Ou seja, mais superficial, impossível.
Poucos votam pelas propostas, pelo planejamento ou pelos nomes dos coordenadores  envolvidos nas campanhas de cada um. Poucos consideram contextos e planos de governo. Grande parte dos brasileiros ainda vota levando em conta questões de nenhuma profundidade, como a empatia dos candidatos ou a sinceridade dos seus sorrisos. Boa oratória não faz de ninguém um administrador competente, nem permitirá que os dependentes do Bolsa Família passem a viver com dignidade, com dinheiro oriundo do próprio trabalho. Vestir vermelho não resolve a conjuntura econômica nem o caos em que se transformou a saúde pública. Ser neto de um político que marcou a história do País por sua morte inesperada não voltará a aumentar nossa taxa de exportações, nem mostrará a saída para o labirinto em que e Educação se encontra.
Votar em Dilma é aceitar que o ladrão continue a tomar conta do cofre.
Votar em Marina é aceitar seu passado de 30 anos como filiada do PT e sua pífia atuação como Ministra do Meio-Ambiente, além do fato de que ela se tornou candidata somente do dia 13 de agosto para cá devido à trágica morte do primeiro nome da chapa.
Votar em Aécio é endossar um partido que, provavelmente por também ter o telhado de vidro, se omitiu quando tinha tudo para, como oposição, impedir que o PT continuasse a sangrar com ferocidade incontrolável os cofres públicos da  Nação.
E quando as mesmas pesquisas mostram que Paulo Maluf, o palhaço Tiririca e Celso Russomanno são os lideres nas intenções de voto para deputado federal no Estado de São Paulo, confesso que desanimo.
É duro admitir, mas estou quase convencido que ainda não será desta vez que as urnas nos mostrarão uma sociedade amadurecida e verdadeiramente comprometida com nosso futuro político.

E quem diz isto não sou eu. São as pesquisas.

MIRIAM

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Benilson Toniolo

Há os que enumerem seus atores preferidos, atrizes prediletas, personagens, fazem ranking de diretores, colecionem filmes, novelas e trilhas sonoras. Há os que admiram jogadores e treinadores de futebol, preenchem tabelas de campeonatos e tenham guardada na memória,  com inequívoca exatidão, todas as escalações que fizeram a história de glórias e fracassos do seu clube do coração. Sem falar nos que citam de cor, com riqueza de detalhes e em ordem alfabética, os nomes de todas as pessoas (homens ou mulheres, ou mesmo os dois ao mesmo tempo) com quem se envolveu sexualmente durante a vida. Eu também tenho minhas listinhas, que vai de postais a livros, passando por credenciais e CD´s.
Entretanto, jornalista frustrado que sou, tenho afeto especial pelos profissionais da imprensa. E, como todo apaixonado por qualquer assunto, também eu tenho meus apetecimentos. Coleciono artigos, sublinho frases que eles escrevem e que julgo indispensáveis para minha melhor compreensão das coisas, paro o que estou fazendo para ouvir o que dizem quando surgem na tela os rostos de meus queridos –aqueles que, no fundo, eu gostaria de ser quando crescesse. Já cresci e nada construí de substancioso, mas me dedico a enumerar meus preferidos. E gosto de saber-lhes a naturalidade, a filiação, a formação, a história de vida.
Dentre os meus jornalistas preferidos, nunca apareceu o nome de Miriam Leitão, talvez pelo fato de que a economia, área em que ela atua, não esteja entre os assuntos de minha predileção e entendimento. Aliás, até bem pouco tempo, sequer considerava o caderno de Economia do jornal. Hoje, não. Não me aprofundo, pois de conhecimento prévio e técnico careço, mas também não ignoro. Informação continua sendo o que diferencia os homens em nossos dias úteis. Num futuro bem próximo, estar bem informado será equivalente a ter concluído o ensino superior. Exagero? Veremos.
Recentemente, notícias relacionadas a Miriam Leitão me fizeram deitar um olhar mais demorado e atento sobre sua biografia. O primeiro fato a causar espécie foi o fato de seu nome constar de uma suposta lista de dez jornalistas “indesejáveis” elaborada no sub-mundo do Palácio do Planalto. Ora, se o valor de um homem também pode ser medido pela qualidade das inimizades que amealhou durante sua caminhada, podemos entender que figurar numa espécie de “lista negra” do PT, apenas pelo cumprimento de sua função, que no caso de Miriam é o de trazer ao povo brasileiro a verdade sobre o que se passa na economia de seu país,  é equivalente a ganhar um Oscar.  Ser mal visto pelo PT é um atestado de idoneidade e tanto.
A segunda notícia tem ligação direta com a primeira. Um usuário de um dos computadores do Palácio do Planalto usou a rede de internet oficial para alterar os dados de Miriam na wikipedia, a enciclopédia da rede mundial. Entre os dados suprimidos, estava o fato de Miriam ter sido presa e torturada durante o regime militar. Ou seja, um servidor do governo federal, durante o seu horário de expediente, tentou retirar da biografia de Miriam um fato que ela sofreu na carne, e que ela há de levar para sempre, e cuja dor há de ecoar por suas gerações: a dor de ter sido espancada, violada e violentada pelas forças de governo de seu próprio país. A motivação do fraudador de biografias? O fato de Miriam dizer a verdade sobre os rumos de nossa economia estagnada e deficitária, em contraponto ao mar de rosas (ou céu de brigadeiro, tanto faz qual a expressão popular de que o Governo lança mão para tentar enganar a nós todos) apregoada pela voz oficial corrente.
Se o fato acima tem relação com o anterior, o próximo está também diretamente ligado a ambos. Trata-se de detalhes da tortura sofrida por Miriam quando foi presa, tornados públicos pela imprensa nacional no último final de semana. Presa enquanto caminhava, grávida, ao lado do namorado estudante de medicina em uma praia de Vitória, no início dos anos 1970, ela foi violentamente agredida por todo o corpo, esteve muito próximo de ser vítima de estupro coletivo e ficou trancada durante horas em um quarto escuro na companhia de uma serpente, uma jiboia que ela não sabia onde exatamente se encontrava –só sabia que estava lá, no mesmo quarto onde nada podia ver.
Miriam foi premiada com o Jabuti 2012 pelo livro Saga, que conta a história da estabilidade econômica alcançada pelo Brasil a partir de 1994 e que nos livrou definitivamente da inflação. Isto é, havia nos livrado, não fosse o fato de Dilma Roussef e seu governo estapafúrdio ter nos trazido de volta esta praga que tanto atraso traz ao País. Dilma, como todos sabemos, já entrou para a história como a primeira (e esperemos, última) presidente pós-ditadura a entregar o governo numa situação pior do que quando entrou.
 Além de tudo, Miriam também é autora de livros infantis, conforme fiquei sabendo ontem, durante o bate-papo de quase uma hora dela com alunos da rede municipal de ensino da cidade de Monteiro Lobato, por ocasião da quinta edição do Festival de Literatura Infantil da simpática e pequenina cidade vale-paraibana. Miriam riu, contou histórias, falou dos netos, da literatura, da importância do Sítio do Pica-Pau Amarelo em sua trajetória de vida e do amor pelos passarinhos, em especial dos passarinhos de sua Minas Gerais, retratados em sua obra de maneira tão lúdica e encantadora.
Nem os militares com seus coturnos com ponta de ferro a açoitar sua barriga de jovem grávida, nem as mãos grosseiras a ferir-lhe o corpo, nem a agonia de dividir um quarto escuro com uma serpente posta ali pelos torturadores e nem a injustiça e a covardia de governantes desleais e corruptos foram, e nem são, capazes de macular a trajetória de uma brasileira que nasceu sob o signo da denúncia e se dedica a trazer luz ao enlameado e obscuro mundo de falsas verdades que permeia a voz oficial do Brasil.

Bem vinda, pois, Miriam, ao meu seleto grupo de “admiráveis” –o que não quer dizer rigorosamente nada, mas me deixa feliz à beça.

CRER

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Benilson Toniolo

Não almoçava há pelo menos três dias. Quando abriu os olhos naquela manhã de domingo, já sabia que o jejum forçado se estenderia por, pelo menos, mais  vinte e quatro horas. Na véspera, tomara um café pela manhã, quando ainda o comércio do centro funcionava. Depois do meio-dia, nada. Havia se recolhido pouco depois e dormira um pouco. Por volta de cinco da tarde, tomou o banho gelado do chuveiro da casa em que sozinho habitava, armou-se da pasta do consórcio e saiu à rua. Já o haviam alertado para que não circulasse à noite pela Presidente Kennedy, que era perigoso, ponto de travestis, traficantes, puttanas. Mas ele foi, confiante de que naquela noite de sábado venderia um consórcio e receberia a primeira parcela à vista. Até as putas compram consórcio, certamente sonham com um carro, um vídeo-cassete, uma linha telefônica. Puta também sonha, afinal de contas. Saiu da casa na Riachuelo, desceu três quadras, chegou na avenida. Direita ou esquerda? Esquerda, sempre esquerda, apesar de se considerar de centro com tendência à direita. Mas ali ele era esquerda. Continuou caminhando, a pasta sob o braço, sozinho, aparentando pressa, homem deslocado no início da noite de sábado a caminho de um negócio. Prédios comerciais, oficinas, bares, uma padaria, funilaria, salão de cabeleireiro, garagem, tudo fechado. Cheiro de diesel. Na primeira esquina, um posto de gasolina sem clientes, dois empregados encostados em uma bomba conversavam e o encararam de longe, quando passou. Assaltante, devem ter pensado, sozinho e a  pé naquela escuridão, provavelmente trazia um revólver dentro da pasta. Passou por eles de cabeça baixa. Não olhou para trás. A fome desaparecera. Começava pela hora do almoço, depois sumira. Acordou com a barriga roncando, bebeu água da torneira, a fome sumiu de novo e não voltara. Se eu vender um consórcio hoje e receber a primeira parcela à vista, faço um lanche e na hora de prestar contas na segunda-feira digo que precisei do dinheiro para uma emergência médica. Digo que comprei remédios pra sinusite, gastrite, dor de cabeça. Peço ainda pra me adiantar a comissão da venda e descontar o que peguei. A calçada cheirava a óleo e gasolina. O céu escureceu de vez e a noite soprava um vento quente: chuva para amanhã. Presidente Kennedy movimentada, mais tarde haveria show de pagode no Independente, ele detestava pagode. Passou defronte a um hospital e seguiu caminhando sem saber para onde. Alguns metros adiante, um estalo. Porra, o hospital. Um monte de gente trabalhando. E àquela hora provavelmente o plantão estaria ainda calmo. Os acidentados, os atropelados, os suicidas e os violentados só costumam aparecer mais tarde, quando os efeitos do álcool e da cocaína já avançaram. Arquitetou seu plano e voltou. Entrou, cumprimentou o funcionário da portaria e dirigiu-se ao balcão da recepção, onde travou o seguinte diálogo com a recepcionista: Boa noite. Boa noite. Meu nome é Antonio Alvarenga, muito prazer. Sou representante do Consórcio Alfa e fui autorizado pelo doutor Paulo a vir aqui hoje a esta hora para apresentar nossos planos diferenciados de compras aos funcionários do hospital. Autorizado por quem, moço? Pelo doutor Paulo. Ele comprou quatro consórcios de nossa empresa, pedi autorização para demonstrar o plano para a equipe e ele disse que tudo bem, desde que fosse sábado, neste horário. Doutor Paulo? Sim, o doutor Paulo. O doutor Paulo pediatra? Bom, não sei se ele é pediatra, desconheço a especialidade dele. Eu até nem queria vir, veja, trata-se de um sábado à noite e minha família está toda reunida em um churrasco de batizado de minha sobrinha, mas trabalho é trabalho, você sabe, e acabei vindo. Posso entrar? Um momento, por favor. A recepcionista pegou o telefonou e discou o número um e o número dois, doze, portanto, e ele percebeu que ninguém atendeu. Ela depôs o fone, coçou ligeiramente a cabeça e disse Bom, se o doutor Paulo autorizou, o senhor pode entrar. Mas se chegar alguma emergência o senhor vai ter que sair. Claro, entendo perfeitamente, creio que posso começar por este corredor à frente. Sim, é este mesmo, só não suba as escadas porque a partir do primeiro andar ficam os pacientes internados, aqui no térreo é que ficam os consultórios. Muito obrigado. Por nada. Golpe perfeito. Em todo lugar tem alguém que responde pelo nome de Paulo. E doutor Paulo, estando-se em um hospital, é uma certeza. A excitação da genial mentira fez voltar a fome. O cheiro forte de comida que tomava conta de tudo, entretanto, causou-lhe náusea. Na primeira porta que encontrou entreaberta, duas senhoras negras e vestidas de branco conversavam. Intimidou-se. Boa noite. Boa noite. Continuou caminhando, uma jovem sentada fazia anotações. Não atrapalharia. Boa noite. Boa noite. Chegou ao fim do corredor, voltou, fez o caminho de volta e no fim do corredor deu com uma escada, e desceu os degraus até chegar á garagem, vazia e escura. Uma porta aberta e uma voz de mulher que cantava. Aproximou-se. Era a lavanderia, e uma senhora também negra como as que havia na primeira porta o recebeu com um sorriso. Ele se apresentou, apertou-lhe a mão, ficou de pé no balcão e explicou todas as vantagens do plano de consórcios. Ela agradeceu, disse que era tudo muito bom e ele teve vergonha de fazer a pergunta final: Posso preencher o contrato? Agradeceu pela atenção e saiu pela porta da garagem, tomando cuidando para não ser atropelado por alguma ambulância que eventualmente pudesse trazer, a toda velocidade, um drogado, um assassinado, um esfaqueado, um atropelado, um suicida. Voltou para casa e, antes de se lembrar de sentir fome outra vez, adormeceu ouvindo João Gilberto no walk-man.
Agora era domingo, havia sol lá fora (ele podia ver pelas frestas da veneziana), ele havia acabado de despertar e sentia muita fome. Quarto dia sem uma moeda no bolso. Quarto dia sem comida. Podia ir à Santa Casa, simular um mal-estar, dar-lhe-iam um fortificante, uma vitamina, uma comida. Pensou na família, pai e mãe, cuja casa ele havia deixado para tentar a sorte como representante comercial em uma empresa nova de consórcios que prometia revolucionar o mercado. Morava nos fundos da empresa. Não havia salário, apenas a comissão pelas vendas. Permitiram-lhe residir temporariamente na edícula existente nos fundos. Devia cuidar do imóvel em troca de poder residir ali. Omitiu tudo de todos. Não poderia assumir perante a família que havia cometido um erro. Outro erro. Ficaria ali por mais alguns dias na tentativa de, pelo menos, fazer umas duas ou três vendas que lhe permitissem passar o final de semana em casa com dinheiro no bolso. Depois voltaria, gastaria o que ainda restava da sola do único sapato, empaparia a camisa de seda com o suor de suas caminhadas sob o sol em busca de pessoas que alimentassem o sonho de obter coisas novas (uma tevê, um forno de micro-ondas, uma filmadora, um vídeo-cassete, um aparelho de som três-em-um) mas que não tinham dinheiro vivo. Para eles, só havia uma solução: adquirir um carnê de consórcio. E era o que ele tinha para vender. Era questão de sorte. Bastava saber vender para quem quisesse comprar. Mas isso era a partir de amanhã. Naquela hora ele sofria uma grande dor, que atendia pelo nome de fome. E a fome o atacava com voracidade, uma voracidade lenta e definitiva. Seria um dia a mais sem comer. Amanhã pediria a algum colega de vendas que o convidasse para almoçar em sua casa. Mais um dia sem comer ele talvez agüentasse. Pensou novamente em bater na Santa Casa. Se ficasse em observação por algumas horas poderia receber comida. Sentia sono, e sentia fome. Olhou o relógio: nove e cinqüenta. Fez as contas: se voltasse a dormir às nove da noite, seriam menos de doze horas sem comida. Afastou as cobertas, levantou-se do colchão, foi ao banheiro, urinou, penteou os cabelos e escovou os dentes. Bebeu água da torneira. Calor. Pensou que poderia ficar de plantão na esquina da padaria que havia no fim da rua. Pensou em fazer um cartaz: adquira seu consórcio aqui. Plantão de vendas. Mas plantão de vendas num domingo, na porta da padaria, ele de pé segurando uma pasta e dando bom dia para as pessoas que entravam segurando uma bolsa e saiam com a mesma bolsa, um pacote de pães fresquinhos e quentinhos e um ou dois litros de leite? Um plantão de vendas requer uma mesa, um escritório com ar refrigerado, cadeiras para que os clientes se sentem e se acomodem, pastas de documentos, um aparelho telefônico, som ambiente, panfletos. Um sujeito parado, em pé, na esquina de uma padaria, oferecendo consórcios para os transeuntes, pode até ser denunciado e preso por vadiagem, estelionato, essas coisas. Mas nada o impedia, por exemplo, de procurar um clube e pedir autorização. Pensou na aventura no hospital na noite anterior. Vergonha, mentir daquele jeito. A que ponto havia chegado. A que havia se sujeitado. Mentir, enganar pessoas. Maquiavel. Por que diabos havia se metido a fazer uma esquisitice daquelas? A fome. Só podia ser efeito da fome. Tentou evacuar, e não havia o que evacuar. Abriu a única janela do aposento, o sol ardeu-lhe a vista, sentiu breve vertigem que logo se dissipou. Vestiu bermuda e chinelo, uma camiseta, atravessou o corredor e, de posse das chaves do único portão do imóvel onde funcionava a sede da empresa, olhou a rua. Vazia. O semáforo mudava de cor sem que veículo algum passasse. Um homem de bicicleta passou assobiando. Um silêncio tomava conta do mundo na rua Riachuelo, onde morava. Do outro lado da rua, alguns metros adiante, a banca de jornais, onde ele diariamente parava para ver as manchetes do dia, estava estranhamente fechada, com as portas baixadas.  Então ele percebeu que, no pé da árvore que havia defronte à banca, qualquer coisa brilhava pelo reflexo do sol. Segundos de estranhamento. Vidro, pensou. Chaves perdidas, presilhas, um relógio ou coisa que o valha. O coração deu um salto: moedas. Moedas. Na rua, o semáforo se movimentava para veículo nenhum. Atravessou a rua e foi até a árvore. Moedas. Eram moedas. Estranhou, olhou para os lados. Ninguém. As moedas estavam depositadas cuidadosa e ordenadamente, umas sobre as outras. Ele recolheu-as, depositou-as no bolso do lado direito da bermuda e voltou para “casa”. Fechou o portão, correu para sua edícula, contou as moedas. Voltou a depositá-las no bolso, retornou ao portão, abriu somente uma pequena parte. A banca estava aberta, veículos passavam a todo instante em alta velocidade –como sói acontecer em uma rua tão movimentada como a Riachuelo. Fechou os olhos. Fome. Apertou as moedas na mão direita, limpou o suor da testa e saiu. Dirigiu-se à padaria, onde pediu um queijo quente, um suco de laranja e um café.

A terça-feira surpreendeu-o na estação rodoviária, comprando passagens para voltar à casa dos pais, a quem disse que a empresa havia fechado as portas por falência, que não lhe tinham pago os direitos trabalhistas mas que ele ia no dia seguinte procurar um advogado para poder fazer valer seus direitos. Ah, isso ia. 

Após contar esta história, o homem pousou o café sobre a mesa, mastigou o último pedaço da fatia do bolo de cenoura com chocolate e, olhando nos olhos de seu interlocutor, disse calmamente:

- E você ainda quer me convencer de que Deus não existe?   

TONINHO E SEUS PROBLEMAS

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Benilson Toniolo

Atravessou a moto alguns metros à minha frente, na exata direção onde eu caminhava e que necessariamente haveria de passar. Noite avançando, entre nove e dez horas, eu voltava a pé para casa por alguma impossibilidade de estar de automóvel. Tremi:  “ou é meu conhecido ou vai me assaltar”. Segui em sua direção (até porque não havia outra escolha), ele tirou o capacete e me saudou, chamando-me pelo nome. Como não o reconhecesse daquela distância, retribuí com um protocolar “opa!”.
Era o Toninho, com quem eu havia trabalhado há alguns anos. Disse que vinha para casa com um baita problema a atormentá-lo, pedindo a Deus que encontrasse alguém “esclarecido” (palavras dele) com quem pudesse conversar e abrir seu coração e, de repente, me vira caminhando. Milagre, só podia ser. Deus tinha ouvido suas preces.
- O senhor me desculpe interromper sua caminhada, mas é que eu gostaria de me abrir com o senhor. A situação é a seguinte. Tem um sujeito aí que está me ameaçando. Diz que vai me matar. Diz que vai ser minha sombra. Que descobriu onde eu moro, sabe quem é minha esposa, quem é minha filha e disse que antes de acabar comigo vai acabar com a minha família. Já descobriu o telefone da firma onde eu trabalho e disse que vai ligar lá amanhã pra me esculachar. Diz que antes de me matar vai me fazer perder o emprego.  Já sabe que minha mulher trabalha na Prefeitura e vai lá contar tudo pra ela, vai chamar de corna e humilhar na frente de todo mundo.
- Tá louco, Toninho, esse cara é algum doido?
- Para o senhor ver.
- Você o conhece?
- É meu amigo do facebook, mas pessoalmente eu não imagino quem é.
- E como é que ele te disse tudo isso, então?
- No facebook. Deixou tudo escrito lá.
- E há quanto tempo isso está acontecendo?
- Começou anteontem. Minha vida está um inferno. Não sei o que fazer. Estou desesperado.
- Vai na delegacia, ué. Registra um Boletim de Ocorrência. Urgente. Imprima as ameaças e anexa na queixa.
- É, né? Bem que eu já tinha pensado nisso.
- Faça isso, Toninho, com urgência. Mas afinal, ele está te ameaçando por qual motivo?
- Ele diz que estou saindo com a mulher dele.
- Então faça o seguinte. Vai lá na sua página do facebook e diga a ele, com muita educação,  que isso é uma mentira, que você não o conhece, não conhece a mulher dele, que isso é uma calúnia e que se as ameaças não pararem você será obrigado a processá-lo.
Toninho ficou quieto. Cismei.
- Peraí, Toninho. Você está saindo com a mulher dele? 
- Pois é, tem isso também.
- Isso o quê?
- Eu não sei se estou “pegando”  a mulher dele ou não.
- Como é que é isso, Toninho? Como, não sabe?
- É que o senhor sabe, né? Homem não vale nada, mesmo. Somos um bando de sem-vergonha. A gente não vale o que o gato enterra. O senhor sabe.
- Poxa, mas então é bem capaz que o sujeito que está te ameaçando tenha razão.
- Não, não, aí o senhor se engana. Se ele não dá conta do serviço, outro vem e dá. Quem não dá assistência, abre concorrência. E isso não dá razão pra ele me matar. Se ele é corno, a culpa é da mulher dele, e não minha. Tem que matar é ela, não eu.
- Mas como é que você não sabe, Toninho? Você sai com tanta mulher assim, a ponto de não saber quem é quem?
- Ah, o senhor sabe como é, né? A gente que é homem não vale nada, mesmo. A gente é tudo sem vergonha.
Depois disso, achei que era hora de retomar o rumo, afinal ainda faltava quase meia hora de caminhada no escuro e de sapatos. Ainda reforcei a necessidade de ele registrar a queixa mesmo assim, ou seja, apesar de ser grande a possibilidade de o marido estar mesmo sendo traído pela mulher. E fui imaginando que bom seria se um dia, afinal, ambos os enganados se conhecessem, já separados dos cônjuges atuais, sem nem saber quem era um e quem tinha sido o outro, e se apaixonassem, e fossem felizes e fieis. Pensando bem, a gente é que não vale nada, mesmo.
Por via das dúvidas, tratei de acertar o passo. Vai que o marido traído ainda passa pela avenida e me pega ali, batendo papo com o Toninho...

TEMPO DA POESIA

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Benilson Toniolo
O dorso branco da árvore sobre o rio repousa sobre o infinito.
Há em tudo a espera frágil do Tempo: as leves cortinas alçam seu voo aprisionado sobre a tarde lenta.
O mesmo sorriso de todo-o-dia.
Ela dorme, ou apenas repousa seu tronco, e os dois galhos superiores e desertos se cruzam a  sustentar-lhe a cabeleira de folhas negras e amorosas.
Os galhos inferiores distraidamente se entreabrem e degustam a brisa da tarde, e o breve arrepio  das coxas à nuca insinuam que a manhã já se foi, o dia pleno se despede e a tarde prepara as vestes do mundo para a imensidão da primeira lua depois que ela adormeceu.
Nem só de amor, nós vivemos.
Ela, a árvore, meneia o rosto e me olha. Ainda uma vez sorri, e sem mais gesto algum oferece seu tronco –assim mesmo, boiando, de costas e azulada como uma estrela de amuos e opacidades- para que eu registre com a tinta invisível do indicador direito o desenho de uma palavra.
Obedeço.
E eternizo na primeira curva a oração “silêncio”. O rio agora se move molemente em direção à úmida margem, levando consigo o tronco que conduz.
O que faço residir na segunda curva é o  “poema”, inédito e indizível. O rio estanca, espera que o  verso vaze todo seu sumo, e um novo arrepio das coxas à nuca anuncia que estamos sozinhos, eu e a árvore, sobre o rio.
Arrisco um “ sonho”, que apago, pois este momento requer um caminhar mais amargo.
Deito sobre a epiderme da terceira margem o signo do “tempo” e, na quarta, componho a canção “mar e montanha”. Há espaço.
Mas nem só de amor vivemos, e arrisco na última curva a sentença da “espera”.
Ela adivinha, fecha os olhos de onde o rio precipita a primeira gota de chuva, enquanto a árvore se move em soluços carregados pelas pedras que transportamos até aqui, por estradas poeirentas e distintas, provenientes de caminhos diferentes, mas que o Amor trouxe a dar no mesmo sítio.
Entre uma e outra guerra há poetas que discutem política, e o que vai nos jornais é maior que a sabiá que do pinheiro espreita o muro.
O aparelho celular desligado parece querer voltar à vida de todo dia.
As cortinas se aquietam pensativas.
E nada mais nos resta a não ser morrermos abraçados enquanto não começa a primavera.   

sábado, 27 de setembro de 2014

O ANIVERSÁRIO DO CARLÃO


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Benilson Toniolo

Meu amigo Carlão fez aniversário e no dia seguinte o convidei para um café na Abernéssia. Uma das melhores coisas de se morar em Campos do Jordão é esta possibilidade de contatos quase diários com os amigos. A gente para no meio do expediente, toma um café, conversa, de repente um outro amigo chega, participa do papo, e em quinze minutos a gente resolve todos os problemas conhecidos e parte dos desconhecidos também –se não do mundo, pelo menos da cidade. 
Chegando, dou-lhe um abraço de sinceras felicitações e um livro do Pondé –coisas que a gente só faz com quem a gente gosta muito, uma espécie de brinde à inteligência das pessoas. Carlão é desses sujeitos que, se um dia a amizade acabar por qualquer motivo, quem sai perdendo é a gente.
Ele contava que ganhara de presente um CD com a Maria Callas cantando árias célebres, entre elas a Morte da Isolda, de Wagner, uma de suas preferidas e que ele não ouvia há um tempão.  Falou do telefonema dos parentes, das mensagens dos colegas, de como ficou ouvindo o CD até tarde, dos abraços da mulher ao longo do dia, do bolinho que ela comprara no supermercado, do vinho chileno que eles abriram para brindar mas que ela disse na verdade preferir “aquele docinho da Serra Gaúcha” e de como, neste dia, ele fica comovido ao lembrar dos pais que já se foram. O Carlão é daquele tipo de gente que, à medida que envelhece, vai ficando mais interessante. É assim com certas pessoas. À medida que o tempo passa, vão revelando o que são por dentro. E o Carlão, além de ser gente finíssima, dono de uma cultura notável e um gosto artístico apurado, é um sujeito simples, pouco afeito a etiquetas sociais e que se revelava, a cada dia, um sentimental de primeira.
E a prova disso foi uma mensagem que o filho de dezessete anos postou no facebook acerca do aniversário do pai. Carlão tirou o celular do bolso, acessou o site, encontrou o texto e me mostrou. O menino fazia uma declaração de amor em que mencionava as qualidades do pai, seu temperamento, sua sabedoria e ensinamentos, a sorte que ele tinha em ser seu filho e o desejo de que o pai vivesse ainda por muito tempo. Terminava deixando um beijo no “maior pai de todos”. Lindo, eu disse, que alegria, Carlão, parabéns. Isso aí é colheita, meu amigo. Mas o Carlão não sabia se era isso. Estava tudo muito bem, tudo muito bom, mas algo não estava correto.
- Que que é, Carlão?
- Eu queria que ele tivesse falado tudo isso pra mim, entendeu? Não postar na rede social, para todo mundo ver. Queria que ele tivesse me falado tudo isso depois de um grande e apertado abraço, ou no meio dele, e me falasse tudo isso aí olhando no meu olho. Na verdade, nem sei se eu sou tudo isso aí que ele escreveu. Ele nem precisava falar tudo isso. Só um abraço e um “parabéns, pai” já seria muito bom.
Silencei por um instante. Estranhamente, o doce do café ia amargando.
- Mas ele não te deu um abraço de aniversário?
- Deu nada. Nem falou comigo. Ficou o dia inteiro trancado no quarto, acho que jogando videogame, entrando no internet, assistindo a shows no youtube. A mãe disse que ele estava estudando. Pode ser. Perto da hora do almoço saí para comprar refrigerantes e quando voltei ele tinha ido almoçar na casa de uma namorada, que na verdade eu não sei nem quem é.
- E quando voltou?
- Quando voltou, ele foi até a sala, onde eu estava, apertou minha mão e disse algo como “parabéns”. Acho que foi isso. Depois se trancou de novo.
- Mas então não foi tão ruim assim, ué!
- Mas não estou dizendo que foi ruim. Longe disso. Eu só não queria que tivesse sido desse jeito.
Ponderei: olha, Carlão, hoje em dia é assim mesmo, as pessoas se falam muito pouco, é muito diferente da nossa época, é tudo virtual, esquece essa neura e pensa nas palavras que teu filho disse, olha quanta coisa bonita, todas as pessoas que leram a postagem sabem que ele te ama, te admira, tem orgulho de ser seu filho. A diferença é que ao invés de falar, ele escreveu e botou na rede social. Mas o efeito é o mesmo, com a vantagem de que todo mundo leu. Hoje em dia é assim mesmo, é um caminho sem volta, a internet promoveu uma profunda mudança no comportamento das pessoas e nós, que somos de uma geração anterior que preza o relacionamento –olha só a gente aqui tomando cafezinho e batendo papo- acaba sentindo um pouco. Mas é questão de se habituar, fica frio. Teu filho faz parte dessa geração nova que está aí, meu amigo. O que importa é o sentimento, e não a forma como ele escolheu para expressar o que sente por você. E blá, e blá, e blá...

O Carlão ouviu tudo quieto, falou do campeonato brasileiro que estava quase no fim e pediu licença, que ainda tinha coisas pra fazer antes de buscar a esposa na saída do trabalho. Um vento quente subiu a serra e foi tomando conta da cidade, anunciando uma chuva que a gente estava pedindo faz tempo. E o Carlão saiu apressado, no meio do povo, levando consigo seu amor pelos filhos, pela esposa, pelos livros, pela música e uma saudade imensa de um tempo que sobrevive apenas no fundo do seu coração. Gente boníssima, esse meu amigo.


AS MEMÓRIAS DE GRACILIANO

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Benilson Toniolo

Dediquei os últimos meses à leitura atenta das Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos –um patrimônio inquestionável da literatura brasileira, ao lado de tantos outros. Tem quatro volumes, a obra, e narra a passagem do autor quando encarcerado sob a acusação de comunismo durante a ditadura Vargas.
O estilo direto, franco, culto, árido e áspero de Graciliano torna ainda mais crua e impactante a leitura, que vai desde a sua prisão ao momento em que, bastante debilitado, se preparava para narrar sua soltura, muito provavelmente obtioda graças ao trabalho abnegado do jurista Sobral Pinto.
A amizade com José Lins do Rego –a quem admoesta por tentar ajudá-lo-, as incertezas do futuro, a resistência às ofertas de corupção, o estado de conformismo e a revolta em permanente alternância, a doença, o tabagismo, as notícias da publicação de seus textos, todas estas passagens  servem de mote para que Graciliano registre, em sua longa narrativa, os conflitos existentes em um homem quando se vê vítima de um Estado totalitário e opressor; a finitude explícita do homem e sua condição miserável diante da injustiça e da tortura; a impotência e a desesperança que o assolam quando em contato com a ignorância, o medo e a desesperança.
Eu ignorava que Graciliano não havia concluído a obra. O leitor somente passa a tomar conhecimento disso graças ao apêndice Explicação Final, registrado por seu filho Ricardo Ramos para a edição de 1953 da José Olympio Editora, que primeiro trouxe à luz a obra do mestre. Não nego que esta descoberta, quando me preparava para encerrar a lenta e exigente leitura, tocou-me o coração de maneira singular, ao imaginar o filho preparando o final do livro que o pai não conseguiu terminar.
Tenho muito apreço por Graciliano, não somente pelo estilo e pela capacidade narrativa, mas por algumas características pessoais que parecem aproximar a sua história da minha. Primeiro, é sertanejo como meu saudoso pai. Ambos do Estado das Alagoas. Um de Palmeira dos Índios, onde foi prefeito, e o outro, de União dos Palmares, de onde saiu adulto e analfabeto, fugido da seca com os pais e mais de uma dezena de irmãos, para tentar a sorte neste inferno que chamamos de São Paulo.             

Nestes tempos de crise político-eleitoral, diria que a leitura desta obra seria como uma espécie de obrigação moral dos candidatos a algum cargo política. Diria, insisto, não fossem estes tempos não tão distantes assim daqueles em que os homens de bem eram (e são) calados à força.