Benilson Toniolo
A bola vinha da direita.
Escanteio. O Digo ia bater, e ele só sabia bater por cima. Às vezes ele ia
enfileirando os caras pela ponta, e na hora de cruzar o Coquinho se posicionava
no meio da área e pedia a bola à meia-altura, que era a bola que atrapalhava a
defesa. Cruza baixo, Digo, caralho. E lá vinha a bola pelo alto. Coquinho não
era bom de cabeça. Se atrapalhava, perdia o tempo da bola, subia antes, descia
antes, e quando estava descendo é que a bola estava chegando lá em cima.
Coquinho não alcançava. Cruza baixo, Digo. Muita gente na área, que era o risco
que a molecada fazia com um pedaço de pau qualquer, na areia da praia, imitando
um campo de verdade. Coquinho foi chegando depois dos demais pra confundir a
marcação, sabia que o Digo demorava pra bater. Se chegasse antes, o zagueiro
colava nele, ficava difícil encontrar espaço, até a bola vir tinha que ficar
brigando por espaço. Nos escanteios, sempre chegava depois. Com o tempo, parou
de subir pra disputar o cabeceio. Sabia que perderia. Tinha dezoito anos e
contava só um gol de cabeça na vida, ainda sim em gol caixote, na pelada do meio
da rua. Depois aquilo foi aborrecendo. Não ganhava uma por cima, os
companheiros de time reclamavam. Sobe direito, Coquinho. Coquinho subia, e não
ganhava uma. Subia de novo, e nada. Não achava o tempo da bola. Tinha tentado
treinar as cabeçadas no quintal de casa, mandava o irmão mais novo jogar a bola
bem alta na direção dele, pra ele subir e meter a testa. Às vezes o menino
mandava alta demais, ou baixa demais, ele reclamava. Joga essa bola direito,
moleque, na altura da minha testa. O menino jogava na altura do nariz, do
queixo, do pescoço, mas não chegava na testa. O menino não tinha força. Então
ia para a parede, quem errava era ele. Jogava a bola na parede para tentar
cabecear na volta. Não dava. Alta demais, baixa demais. Tinha que resolver
aquilo. Não existe jogador profissional que não saiba cabecear. Ainda mais
centroavante. Tu quer ser centroavante que nem o Chulapa, que nem o Juari?
Então vai ter que apreender a usar a cabeça. Foi desistindo. Optou por uma
saída tática: nos jogos, fingia que ia pular, o marcador ia, cortava o
cruzamento e ele ficava. Não deu certo. Já tinha falado pro Digo, que cruzava
da direita, e pro Peu, que cruzava da esquerda: cruza baixo. Pode deixar. Pode
deixar, uma ova. Lá vinha aquela lua na direção dele. Subir, até que subia.
Nunca pegava nada. Bom, uma vez acertou a bola, que veio com muito efeito,
bateu na parte de cima da cabeça (no cucuruto) e saiu bisonhamente por cima do
gol. Foi feio, a molecada riu. Voltava pra buscar jogo, se deslocava, tentava
entrar tabelando com o pessoal que vinha de trás, batia bem de pé direito. O
esquerdo era praticamente uma nulidade, mas o direito compensava. Habilidoso,
prendia bem a bola, segurava lá na frente, tinha velocidade. Era só não jogar
por cima que estava tudo certo. E lá vinha o escanteio. Ficou atrás do último
zagueiro, um pouco antes da marca do pênalti, entre a marca do pênalti e a
linha que delimitava a grande área. Finzinho de jogo, três a três, todo mundo
já meio com a língua de fora, e ele passando em branco. Já não tinha marcado no
jogo da semana passada. Centroavante que não faz gol está pedindo pra deixar o
time. O Digo demorando pra bater, e Coquinho ali, um migué danado, dando de
morto pra comer o coveiro. O Digo correu, pela troca de pés ia bater com o
direito, que esquerdo ele também não tinha. Aliás, na praia quase ninguém era
canhoto. Era outra coisa que tinha que aperfeiçoar no futuro, a habilidade com
o pé esquerdo. Ela veio alta demais, o goleiro saiu, não alcançou. Ia sobrar
para ele, o centroavante. O zagueiro adversário se deslocou de costas em sua
direção, e com a mão direita o Coquinho o tirou do lance com um empurrão leve. Se
alguém pediu falta, ele não ouviu. Bora. A bola caiu no pé esquerdo, ele
dominou e trouxe pro direito. Tudo muito rápido. O zagueiro da cobertura veio,
ele puxou pro pé esquerdo e tirou o cara. Veio o seguinte, a mesma coisa: tocou
pro esquerdo, veio em velocidade, trouxe pro direito e o cara ficou. O terceiro
veio no carrinho, ele tirou do mesmíssimo jeito com que tinha driblado os dois
primeiros. Fez tudo isso olhando para o chão, para os pés que trocavam a bola
de lugar a cada drible. Sim, tudo muito rápido. Quando olhou adiante estava na
frente do gol, teve a impressão que o goleiro sairia para abafar, mas ele
ficou. Ainda ouviu a voz do Guto, que era meia e raramente aparecia pra
concluir: “toca!”. Tinha duas opções pra finalizar: alto, pra tentar encobrir o
goleiro de boa estatura, ou de três dedos, rasteiro, no canto oposto, com o
risco de algum zagueiro aparecer para tirar de carrinho. Pensou nos três adversários
que tinha acabado de deixar para trás (quatro, se contar o do empurrão) e bateu
de chapa, com a categoria habitual, no contrapé. Caixa. Gol. Golaço. Golaço,
caralho. Saiu comemorando pelo mesmo lado da finalização, correndo de braços
abertos e sem camisa sobre a areia escura da praia, a sombra dos refletores
sobre a areia denunciando que estava fora de forma, braços abertos sob o céu,
riso na cara, os companheiros de time correndo atrás, que golaço, que gol
lindo, deixou o time deles no chão, puta golaço, Coquinho. Se foderam, seus
trouxas. Para ele, era o desafogo. Craque é isso aí. Pode passar o jogo inteiro
sem produzir, mas chega na hora de decidir não tem pra ninguém. Gol do Santos.
A Vila Belmiro explode com um golaço de Coquinho, o menino que saiu da Bacia do
Macuco pra fazer história com a gloriosa camisa alvinegra. Que cabeça, o quê.
Era bom com seu pé direito. Quando caía no pé bom, ninguém pegava. Pode botar
Carlos, Paulo Sérgio, Cantarelli, Valdir Peres, Leão, pode botar quem for. Na
sua cabeça vinha a voz do Osmar Santos: “é fogo no boné do guarda, e que
gooooooooooooooooollll!”. Quatro a três, acabou o jogo. Desmontar as traves pra
guardar na guarita do zelador do prédio, pegar a roupa atrás do gol, guardar a
bola, ajudar os caras a desmontar o campo. Já já são dez da noite, vão apagar
as luzes da praia. Não foi tomar cerveja com os colegas de time nos bares do
Canal 4, que o dinheiro que tinha no bolso só dava para pegar o trólebus. Dia
seguinte era quarta-feira, dia de ver se tinha algum bico pra fazer e arrumar
um troco, que aquela vida era dura, principalmente depois que o pai saiu
embarcado e não voltou mais, depois de quase dez anos. Vai trabalhar, moleque,
diria a mãe na manhã seguinte. Não quero saber de vagabundo dentro de casa. E o
Coquinho ia, sem experiência de trabalho, ajudar na feira da Glicério, ajudar a
carregar carrinhos e sacolas no mercado, que era o que lhe cabia. Carregamento
de frutas, de verduras e de legumes na mercearia do japonês. Dava um troco por
dia, se chegasse cedo. Até chegar o dia em que abriria vaga pra fazer teste no
Santos. Peneira. Aí eles iam conhecê-lo, já no primeiro teste. Primeiro, tinha
que treinar muito o cabeceio. E o pé esquerdo, que pelo jeito ia dar menos
trabalho. Coquinho, o menino da Bacia do Macuco que ia fazer história na Vila.
O que uma noite tinha deixado três (três não, quatro) zagueiros no chão antes
de, com categoria, dar a vitória ao seu time de praia. Que, no fundo, ele sabia
que se chamava Santos Futebol Clube.