terça-feira, 16 de outubro de 2012

A ALCUNHA DO JOSÉ PONCÍLIO




Deu-se que o José Poncílio, jordanense da gema, filho de mineiros que se estabeleceram para os lados do Recanto Feliz por volta dos anos 1960, certa noite de inverno brabo e geada da graúda na manhã seguinte, bebeu um pouco além da conta no bar do Antonio e resolveu abrir um pouco mais seu coração para os dois amigos recentes que o acompanhavam.
Pinguinha vai, pinguinha vem, narrou-lhes de como sofria quando lhe atingiam determinadas crises diretamente ligadas à sua alimentação desregrada. Ele adorava uma linguicinha, um lombo, uma cachaça, um torresmo, uma galinhazinha bem apimentada, um paio, um salame, e era só abusar de tais iguarias que estava pronto o quadro para a desgraça. Podia contar que, no dia seguinte, a crise vinha. Pronto. Estava feito. Daquele momento em diante, em meio ao sorrisinho maroto dos que o acompanhavam, também mineiros ambos, surgia o apelido que marcaria o infeliz do Poncílio, e que ele detestou logo de primeira audição: Zé Morróida.
Apelido é coisa que, como toda a gente sabe, pega justamente quanto mais a “vítima” se ofende, e faz questão de frisar a ofensa. Quando dá por si, a alcunha já pegou, goste ou não goste o apelidado.
E, não por falta de aviso, teve gente que, na cidade de onde venho, já morreu na ponta de uma faca por chamar o Domício de “Estrupício”. Da mesma forma que chamar nordestino de “baiano”, embora não seja ofensa, demonstra em si um preconceito e uma xenofobia que outra coisa não são do que simples vontade de ofender aquele que veio de longe, e deixar clara sua condição de forasteiro. Agressão gratuita, que acaba por validar o não-raro revide.
Claro que o Poncílio detestou o epíteto. Nem era pra menos. A confiança que, ainda que sob o efeito do álcool, depositara nos dois amigos, se quebrara. Aquilo não era coisa que se fizesse com um companheiro como ele, pai de família, um homem honrado, trabalhador, cumpridor dos seus deveres, e cuja única diversão era tomar um negocinho  no bar do Antonio, acompanhar um joguinho de sinuca ou de truco, jogar conversa fora, ver o movimento. Segredo revelado em balcão de boteco e que acabava virando domínio público, era questão para ser resolvida com derramamento de sangue.
Por isso, tão logo soube do apelido, achou por bem dar uma sumida do mapa. Antes, deixara bem claro a todos que não toleraria falta de respeito para o seu lado. Ora veja.
Passadas três semanas, voltou ao bar. Preparou-se. Mexessem com ele, e reagiria de acordo com o nível da ofensa. Levara a faca na parte de trás da calça, escondida. O lugar estava cheio, se podia ouvir da rua o barulho das bolas de sinuca se chocando umas contra as outras sobre o pano verde. Entrou, arredio. Cumprimentou os presentes, que retribuíram seu “boa-noite”, olharam de rabo de olho. O clima era tenso. Encostou no balcão, de frente para o bilhar, pediu o rabo-de-galo, cara de poucos-amigos, recolhido em seu silêncio,  antena ligada ao menor sinal de desrespeito ou gozação dirigida à sua pessoa.
Passa um tempinho e adentra o estabelecimento o Chico, que além de parceiro de mentirada ainda vinha a ser exatamente seu primo. Mais que isso, menino que o acompanhara desde as épocas de calça curta por estes morros de Campos do Jordão. Parceiro de caçada, de farra, padrinho de um de seus filhos, corintiano que nem ele, chegado num churrasco gordo e muito, mas muito piadista. Perdia o amigo, mas não perdia a oportunidade da piada. Poncílio corou. Era só o que faltava. Não viria seu primo, logo seu primo, fazer referência ao infame apelido, fazê-lo passar vergonha na frente de todo mundo. Logo ele. Logo Chico. Não ficaria desmoralizado. Nem que tivesse que dar uma lição no Chico. Mas logo o Chico?
O primo veio vindo em sua direção, chamando os presentes respectivamente pelo apelido de cada um. Zé-Ruela, Delfim, Zóio-de-Gato, Pedro Careca, Gordo, Roda-Presa, Prexeca, Fura-Prego, Bola Murcha. Poncílio gelava. O primo vinha rindo, olhos fixos nele, o apelido infame latejando em suas têmporas, chegava a ver a hora de puxar da faca e ser obrigado a dar uma lição no primo. Chico, logo você, Chico, meu primo?
Chico se aproximou, deu um abraço em Poncílio, perguntou da família, falou do jogo de sinuca e pediu uma branquinha. Ficou um tempo em silêncio e depois aconselhou o primo:
- Chegou na Cidade um doutor que cura esse negócio aí que você tem. Tá atendendo lá em Abernéssia. Se eu fosse você, ia ver. Aí, parava esse negócio sem graça de Zé-Morróida. Coisa mais besta.
Poncílio concordou. Ia ver, sim. Antes que a coisa piorasse para o lado dele. Virou-se para o balcão e, pelo, pelo não, pediu um tira-gosto.

Benilson Toniolo

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