segunda-feira, 27 de outubro de 2014

"Ô, CORINTHIANO!"

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Benilson Toniolo

No comecinho da rua era a casa do seo Afrânio, um homem gordo que trabalhava nas Docas. Tinha duas filhas adolescentes e sua esposa, a dona Lurdes, era uma portuguesa bigoduda que só usava vestido escuro e tinha fama de encrenqueira e de não gostar de tomar banho.
Aos domingos pela manhã, seo Afrânio varria seu quintal e a calçada, onde caíam muitas folhas das árvores próximas. Também pendurava as gaiolas dos seus pássaros  nos galhos do chapéu-de-sol que havia defronte sua casa. Depois, se sentava em uma cadeira de vime e ficava ouvindo um rádio de pilhas, que eventualmente alojava sobre sua grande barriga enquanto girava o botão seletor em busca de suas estações preferidas.
Meu pai de vez em quando parava para conversar com ele. Minha mãe, sempre que passava, o cumprimento e nos mandava fazer o mesmo. Bom dia, seo Afrânio. Boa tarde, seo Afrânio. Olá, seo Afrânio.
O problema é que ele tinha mania de chamar todo mundo de corinthiano. E a gente, que não era corinthiano, ficava bravo. Passávamos e ele provocava: “ô, corinthiano”. A gente ficava bravo e com vontade de mandar o homem à merda. Um dia, passava com um amigo palmeirense e, diante da provocação, o repreendi. “que corinthiano o quê, ô!”. Depois temi que ele contasse à minha mãe –ou pior, ao meu pai. Acho que nunca me entregou. Mas continuava provocando a gente. Um dos meus amigos, são-paulino, um dia me disse que se a provocação fosse com ele ia atacar pedras no homem. “Tá louco?”, respondi.
Um dia eu vinha da venda com meu irmão quando vimos um carro preto, enorme, com o desenho de uma cruz nos vidros, parado na frente da casa dele. Passamos rapidinho e nem olhamos para o lado. Contamos à mãe que, horas depois, comunicou com aquela fisionomia grave que caracteriza as mães quando vão anunciar aos filhos um acontecimento muito sério: “seo Afrânio morreu, coitado. Estava bem, acabou de almoçar e foi tirar um cochilo. Dona Lurdes chamou ele para tomar café e nada de o homem responder. Foram ver, estava morto. Já pensou? Coitada da dona Lurdes”.

Isso foi há muito tempo. Ainda assim, por via das dúvidas, até hoje evito dormir depois do almoço. Vai que me encontro de novo com seo Afrânio e ele vai estar lá, de asinhas e vestido branco, a me receber no Paraíso com a vassoura na mão e me saudando com um “ô, corinthiano!”?


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