Benilson Toniolo
- Moço, me veja cinquenta
centavos de celulóide, por favor.
O balconista depositava sobre
o balcão de vidro uma caixa repleta de vidrinhos de relógio de pulso, pra gente
escolher. Cinquenta centavos dava uns cinco ou seis celulóides, ou seja, metade
de um time. Na semana que vem, teríamos que garimpar mais uma moeda com a mãe
pra comprar o que faltava pra montar a equipe –moeda que a mãe ganhava passando
roupa semanalmente na casa das patroas.
Recolhidos os dez celulóides,
era hora de montar o time. Na página de Esportes da ‘Tribuna’, vinham as
imagens em preto e branco dos jogadores em ação. Fotos de jogos, de treinos, de
entrevistas. A operação era complexa: pegava-se outra moeda e botava-se em
volta do rosto do atleta. Com uma lâmina, dava-se a volta com a moeda bem presa
na foto, e tínhamos o jogador pronto pra colar no celulóide. Os melhores –Serginho
Chulapa, Paulo Isidoro, Pita, Sócrates, Zico, Nunes e Dinamite, entre outros
eleitos, iam parar nos maiores celulóides. Zagueiro também tinha que ser
grande: Márcio Rossini, Oscar e Toninho Carlos. Os laterais e pontas –pela ordem,
Toninho, Gilberto Sorriso, Zé Sérgio e Serginho Dourado, que também atendia
pela alcunha de Serginho Segundo, pelo fato de Chulapa ser não somente o
Primeiro, mas também o único - em geral deveriam ser menores, porque levavam a
bola pelas pontas e tinham que, muitas vezes, passar em meio aos marcadores sem
cometer falta. Exceção eram Éder e
Nelinho que, pela força do chute, deveriam ser grandes. Mas estes apoiavam
pouco, permanecendo mais recuados, reforçando a marcação e prontos pra bater
falta, cada um do seu lado.
Colar os rostos dos jogadores
do lado de dentro dos celulóides exigia uma habilidade, muitas vezes, superior
à necessária para o domínio de bola. Fabricávamos a cola com farinha de trigo,
porque a cola comprada na papelaria no começo do ano letivo deveria durar até o
fim das aulas, devendo, portanto, ser economizada para dar conta dos trabalhos
escolares. Com muito cuidado pra não borrar a cara do jogador, depositavam-se
pequenas quantidades da cola caseira nas bordas da foto.
O jornal vinha embrulhando as
compras da feira ou do açougue. Quando o comerciante ia embrulhar as compras, a
gente esticava o pescoço pra ver se o jornal era da página de Esportes. Se
fosse, era uma danação. Mal esperávamos a mãe dispensar o jornal. Ainda na
cozinha, passávamos à análise das fotos –o perfil dos jogadores, os repetidos. O
problema era quando o suco da carne vazava e estragava a foto. Nestes casos,
deixava-se a foto secar, para depois colarmos o jogador com cheiro de carne ou
de peixe. Frango se comprava em avícola. Não, ninguém ligava de jogar botão com
jogador cheirando mal. Bola pra frente. Vai fedido mesmo. O que vale é bola na
rede.
A Placar, que era –e ainda é-
a única revista de futebol no Brasil, era cara demais. Não dava.
Gostoso mesmo era fazer o
goleiro. Uma caixa de fósforos vazia cheia de areia dentro, reforçada com fita
isolante ou esparadrapo. Na frente da caixa, a foto do kíper. Rodolfo Rodríguez,
Leão, Valdir Peres, Raul, Carlos, Neneca, Jairo, Marolla. Dificilmente o
goleiro sorria. Goleiro bom tem que ter cara de brabo. Braços cruzados, cenho
franzido, luvas gigantes. Mazaroppi, Benítez, João Leite, Fillol.
A bola era um pequeno disco de
diversas dimensões. Na falta dela, valia botão de camisa, comprimido e dadinho.
Gol de Coristina chegava a derrubar a trave. AAS era ruim, porque ia desmanchando
ao longo do jogo.
A batedeira deveria ser usada,
preferencialmente, na vertical. Tinha que ser rígida, robusta, inflexível. Com
ela se controlava direção, velocidade e força. Praticamente um mestrado em
Física colocado em ação na luta pela posse de bola.
Havia os inimigos terríveis.
Os amigos vinham pro jogo com artilharia pesada: Baroninho, Baltazar, Carlos
Alberto Seixas, Ataliba, Casagrande. Perder do Corinthians era a morte. Crise
na certa. Uma semana sem mexer na caixa onde guardávamos os times. Até que,
certo dia, voltando da escola, olhava a caixa debaixo do sofá, de soslaio. Vamos treinar, minha gente, que vai ter
revanche e, se Deus quiser, neguinha –que era como chamávamos o terceiro jogo,
provocado quando cada time ganhava uma partida e a série estava empatada.
Juntando-se os primos, era
campeonato na certa. Antes e depois do almoço, no insubstituível campo da mesa
da cozinha. Os adultos iam conversar na sala. Cozinha era lugar de futebol, ora
bolas. A tarde toda.
Os jogos eram narrados por nós
mesmos, os jogadores, com a vibração dos grandes narradores. Osmar Santos,
Luciano do Valle, Peirão de Castro, Eduardo Baraçal. Sabíamos, e repetíamos ao
longo da transmissão, as vinhetas das rádios todas: Globo, Guarujá, Atlântica,
Rádio Clube de Santos, Cultura. Ruídos
do fundo da garganta pra imitar o barulho das torcidas. Jogos de dez gols, de
seis, de três. Quem fizer, ganha. As mães tinham sossego para cuidar da casa,
da roupa, da janta. Vinha a noitinha, e nós lá, ajoelhados na varanda, jogando
futebol de botão. Nossa vida era essa: estudar, comer, dormir, jogar botão.
Um dos tios ensinava as
técnicas: bater de esguelha, de caiafa, ou como chamávamos, “de-révis’. Bola no
ângulo, rasteira, no canto, entre os zagueiros. Não vale gol de antes do
meio-de-campo. Par ou ímpar pra ver quem dá a saída. Anota o número do jogador
que fez o gol. Artilharia registrada na última folha do caderno escolar. Quebrou,
não tem reserva. Joga com um a menos. Esse gol do Sócrates parece que foi ele
mesmo quem fez. Gol do Biro-Biro não deveria valer. Acabou o campeonato? Guarda
a tabela. Dois-ou-um.
Se éramos crianças mais
felizes que as de hoje? Sinceramente, não creio. Certamente os meninos de hoje
também o são, e pode até ser que, no futuro, alguns deles acabem escrevendo sobre
as emoções que seus jogos eletrônicos lhes proporcionaram.
Mas é que, junto com as
memórias do jogo-de-botão, o que nos prende mesmo é a saudade. A saudade do
tio, da tia, da chuva depois do almoço, dos primos. Os sonhos com goiabada, o
cheiro de café, o ovo cozido comido ainda na casca quente, o bolo de laranja
com açúcar em cima, os adultos fumando e conversando na sala.
E é por isso também que me
emocionei tanto, dia desses, ao receber o convite inesperado do meu priminho
Caio que, caixinha na mão, em meio a uma recente festa de aniversário, me
perguntou: ‘vamos jogar botão?’. Jogamos, sim. Três partidas, e perdi as três. Tinha
torcida, inclusive. Juntou gente em volta para ver que, na família, jogo de
botão é tradição que não morre. Além do mais, o Caio é craque, e anda
treinando, o danado, em casa, com os pais.
E também é por isso que,
agora, retiro da caixa os jogos de botão dos meus filhos e os distribuo sobre a
mesa da sala de jantar para mais uma partida. Para poder ouvir e sentir de novo
os sons e os cheiros da infância, que me ocorrem a cada vez que o disco
achatado e preto supera os jogadores adversários, e à meia altura, entra no canto
direito do gol do meu adversário –que hoje é um só, e chama-se Tempo. E neste
jogo, apesar dos gols marcados, sinto que vou acabar perdendo...
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