Também a moral é uma questão de tempo
(Gabriel Garcia Marquez, Memória de Minhas Putas Tristes)
Amanheci o dia ligando para a
Folha. Sem jornal, de novo. Fiz a assinatura há menos de um mês para receber
meu exemplar somente aos sábados e domingos, e esta é a quinta vez que não recebo.
Reclamo de novo, ameaço cancelar a assinatura, recorrer ao Procon, aquilo que
todo mundo já sabe. Peço para a mocinha do atendimento fazer o favor de ligar
para o responsável pela distribuição para ele voltar aqui e deixar o jornal
pelo qual estou pagando, ela avisa que não tem jeito, e o que não jeito,
remediado está, assim aprendemos, cordatos e compreensivos que somos. Eis que,
um tempo depois, Leonardo descobre o
jornal pendurado no telhadinho do portão. Ou seja, o jornal veio, mas foi
arremessado e acabou por cair em lugar indevido, e eu, que não tenho o hábito
de olhar para cima para ver o que é que anda caindo sobre minha casa, não reparei.
Feito o resgate, que Simone providenciou sem que eu perguntasse como, torno a
ligar, pedindo desculpas pelo incômodo, e pedindo um novo favor à outra
mocinha: peça ao rapaz a gentileza de arremessar o jornal em um lugar em que a
gente enxergue –e alcance. Mas sem machucar ninguém.
Dilma vai a Lisboa em viagem
cultural. De quebra, vai se reunir com o governo de lá para auxiliar na participação
de grupos financeiros brasileiros durante a privatização da TAP e da empresa de
Correios. Vou precisar de uma aula de política para entender certas coisas. O
que aconteceu com a aversão petista às privatizações? Não é justamente por
conta deste posicionamento que nossos aeroportos, por exemplo, estão na situação
precária em que se encontram –um modelo aterrorizante de ineficiência,
incompetência e inércia? Pelo jeito, o que é bom para Portugal não é bom para o
Brasil.
Ainda ela: os dados das
viagens internacionais da Chefa do Executivo não mais serão disponibilizados à população.
Questão de segurança, dizem. Nada, absolutamente nada, que tenha relação com o
constrangimento causado pela ocupação de 52 apartamentos em um hotel de Roma,
em março último, pela comitiva da Presidenta, quando da posse do Papa Francisco.
Para compensar, algum tempo depois, em viagem à Etiópia, foram usados apenas
três apartamentos pela comitiva. Também, que bela porcaria que deve ser esta
tal de hotelaria etíope. Nem Piazza Navona lá deve ter.
As apostilas disponibilizadas
pela Secretaria de Educação do Rio de Janeiro aos alunos e professores da rede municipal apresentam erros crassos em operações de soma. Por muito menos que isso,
na minha época, a gente levava reguada na cabeça sem direito a choro, da dona
Esperança, nossa professora gigante e com brincos de argola e sobrancelhas
enormes. Não fica só nisso. A capital de Pernambuco é Belém, a da Paraíba é Manaus,
e a sigla do mesmo Estado virou PA (o
que será que fizeram com a do Pará?). O pessoal lá da Secretaria esclareceu que
‘a produção é feita com a supervisão de sua área técnica e de consultores de
áreas das principais universidades federais do Rio’. Ah, bom. Com relação à questão das capitais, fico imaginando a dona Esperança, com o devido vestido verde, se dobrando de tanto rir da nossa cara estúpida. Pois é, professora, a senhora tinha que estar vendo isto. Tomara que esteja.
Mas se bem que, no caso da
Folha, que outro dia grafou um ‘sombril’ na capa da Ilustrada, esta matéria sobre as apostilas no Rio vieram bem a calhar. É uma bela forma
de dizer ‘a gente erra, mas tanto assim, não’.
Essa questão indígena é um
desmantelo, como diria seo Benício. Tem cheiro de trapaça, e das grandes.
Convivi com alguns durante os meses em que trabalhei em Cuiabá e sei que, de
bobo, a indiada não tem é nada. Conhecem lei, conhecem seus diretos e sabem exatamente o que fazer em cada uma das situações em que são desconsiderados. Agora, o que não dá pra entender é a mínima repercussão
sobre a morte do terena durante a reintegração de posse da fazenda Buriti, no Mato
Grosso do Sul, numa operação que, segundo o jornal, não respeitou o que é
determinado pela própria Polícia Federal. O índio morreu com um tiro nas
costas, assim como aconteceria cinco dias depois, em operação parecida, também conduzida
pela PF, com outro índio que até o momento, pelo que constam, ainda está vivo. A nota ruim da reportagem é não haver nenhuma declaração de representante
dos índios, ao contrário da RTP que, no jornal da noite esta semana, cobriu a
notícia com uma entrevista com um dos líderes dos invasores. Isso ainda vai dar
pano pra manga. A Constituição de 88, que me conste, assegura os direitos dos
índios à terra, à cultura e às tradições. Como pretendemos avançar sem respeitar
os direitos de todos? Como bem disse a senadora Kátia Abreu, ‘a situação está
fora de controle’. Prudentemente, a presidente da Funai afastou-se do cargo,
por questões de ordem médica –compreensíveis, é bom que se diga, uma vez que
teve seguidos afastamentos nos últimos meses para tratar da saúde. Mas é mais
uma cumbuca em que nossa itálica Presidenta será obrigada a enfiar a mão, tão
logo retorne do jantar de gala que lhe será oferecido pela corte portuguesa. E
que ela faça o favor de provar o forte
gosto do Porto que lhe for servido, menos espesso que os sangue dos terenas que
têm manchado o solo de nossa mãe, que já foi bem mais gentil, como diria o
burro do Schrek.
O artigo ‘Selva de Bestas
Assassinas’, do diplomata e escritor Alexandre Vidal Porto (nunca tinha ouvido
falar, eu e essa minha ignorância sem remédio, Chicó) é uma porrada.
Transcrevo: ‘As penas alternativas e medidas socioeducativas ajudam, mas não podem
servir como paliativo para problemas como sobrecarga judicial e superlotação prisional.
A experiência parece indicar que, em situações de violência endêmica grave,
como a brasileira, o caminho a seguir é inverso ao da flexibilização das penas.
Não podemos tratar tuberculose com aspirina. Qualquer aluno de direito aprende
que lei sem sanção não tem eficácia. Não é porque a criminalidade tem causas
vinculadas à injustiça social que ela deve ser tolerada. É uma questão de vida
ou morte. As autoridades brasileiras têm obrigação de proteger os cidadãos. Se não
o fazem, não estão à altura dos cargos que detêm. Uma cidade em que se pode ser
queimado vivo é como uma selva em que se pode ser comido por leões. Parece que
nossas cidades se tornaram em uma selva de bestas assassinas. Não dá pra deixar
assim’. Lúcido, objetivo e pontual. O que falta hoje em dia.
Xico Sá: não sei o que é pior:
o rebaixamento ou o zero a zero.
Falando em zero a zero: em uma
semana de virose inédita, com otite, amigdalite, conjuntivite e sinusite, com
pouco repouso, muito antibiótico e muita leitura, lancei mão de um grande
médico para me acompanhar no estaleiro: João Guimarães Rosa e seu Sagarana, que
muita gente diz ser sua obra definitiva, ao invés do Grande Sertão. A travessia
até o fim da licença médica, se não melhora a saúde, fica mais prazerosa.
Valeu, João - que a gente ainda não descobriu se existiu ‘de se pegar’, como vaticinou o Poeta Maior.
Hoje, no lugar da indefectível
ração para pássaros comprada na loja, peguei um mamãozão meio estragado que
estava na banca de frutas da praça. Caro, quase quatro reais. Mais caro que a ração,
sem dúvida. Mas valeu o resultado: neste
momento, pouco depois das quatro da tarde, cinco tirivas, dois sanhaços e um anu
branco se debruçam sobre a fruta, enquanto os colibris disputam o espaço aéreo do
potinho de água levemente adocicada (se não, dizem, dá câncer nos bichinhos).
Como eu já disse, num dia de inspiração manoelina, os passarinhos são os
verdadeiros anjos de Deus.
Cartas para Ouricuri, Salerno e Estados Unidos. E Itajubá, aqui do lado.
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