quinta-feira, 9 de agosto de 2012

PALESTRA SOBRE JORGE AMADO NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE CAMPOS DO JORDÃO, 06/08/2012 (ABERTURA DA EXPOSIÇÃO SOBRE O CENTENÁRIO DO ESCRITOR BAIANO)



MINHA EXPERIÊNCIA COM JORGE AMADO: DA AVERSÃO À CONVERSÃO

Gostaria primeiramente de agradecer imensamente o convite feito pela Biblioteca Municipal, na pessoa do Professor Sérgio Asquenazi e também do nosso amigo Carlos Abreu, ambos grandes -e históricos- entusiastas da cultura jordanense, para estar aqui nesta noite e falar um pouqinho sobre este escritor baiano cuja vida e obra se confundem com a prória trajetória cultural brasileira. Vou tentar aqui fazer uma breve reflexão acerca do autor e de minha experiência pessoal, como leitor e escritor, sobre ele.
Segundo a máxima de Borges, o que o escritor lê é mais importante do que escreve, porque ele lê o que gosta mas só consegue escrever aquilo que consegue. Portanto, podemos entender que o escritor, assim como todo artista, é refém de suas próprias limitações. Por outro lado, Schopenhauer dizia que o homem que lê o dia todo, ou durante muitas horas, e nos intervalos da leitura investe seu tempo em ações e pensamentos ordinários, triviais, sem uma reflexão crítica sobre aquilo que foi lido, acaba por perder a capacidade de pensar por conta própria, passando então à condição retratada pelo próprio Schopenhauer de pessoas que ficaram estúpidas de tanto ler.
Digo isto porque a leitura de um autor como este que retratamos hoje requer, do leitor, mais do que a trivial concentração, um envolvimento, uma capacidade de alteridade que extrapola sua condição de mero leitor e faz com que este passe a interagir com a obra. Sem conseguir vislumbrar mentalmente o ambiente onde a trama se desenrola, sem que se consiga extrair da rica prosa amadiana os cheiros, sem que sinta o perfume das mulheres, o frescor da brisa marinha, sem que se tome partido nas incontáveis discussões e batalhas pela posse da terra, pela posse da mulher amada, pela posse do direito de se estar vivo, sem tomar parte da trama não somente como espectador, mas como um quase-personagem, é impossível sentir -a palavra certa é exatamente esta, sentir- a riqueza imensurável que emana do universo de Jorge Amado. A leitura de um livro de Jorge, mais do que dedicação, requer cumplicidade e diálogo -do contrário, se trata de perda de tempo e de energia. O universo proposto pelo autor em suas obras requerda perte do leitor que ele compartilhe com os personagens o choro, o gozo, a indignação, a dor, a esperança, o ressentimento. A experiência de leitura de um livrio de Jorge Amado, quer se deseje ou não, marca a vida do leitor.
Por isso a evocação que fiz no início. Não se trata de mera leitura, por distração ou entretenimento. Trata-se, antes, de descobrir -ou redescobrir, ou revisitar- um universo por enquanto inigualável de recursos imaginários por parte do autor, que consegue obrigar o leitor a tomar partido em relação à sua obra. Ou se ama, ou se detesta a obra de Jorge Amado. Uma vez havido o contato, é absolutamente impossível manter-se a neutralidade, o alheamento ou a indiferença com relação à sua obra -mesmo os livros da chamada "fase final" de sua carreira, como "A Descoberta da América pelos Turcos", escrita sob encomenda em 1992 para comemorar os 500 anos de descobrimento do continente e que revela um autor despojado de qualquer pudor linguístico ou comprometimento ideológico que sempre o caracterizaram, como também "Farda, Fardão, Camisola de Dormir", ficção que narra um momento de sucessão na Academia Brasileira de Letras.
Durante muito tempo, alimentei uma certa resistência com relação a Jorge Amado. Sempre ouvia falar dele como o escritor brasileiro mais admirado no mundo, tendo suas obras traduzidas para inúmeros idiomas, muito admirado na França, na Rússia, em Portugal... as adaptações feitas para a TV de alguns de seus livros, aquela coisa da Gabriela, da Dona Flor, eu acabava tendo a impressão que no fundo se tratava de um autor "encomendado", "protegido" pela Globo para a divulgação do produto brasileiro, eu via Jorge Amado e sua obra como uma criação da televisão para exportação, ou seja, no fundo me parecia que a obra de Jorge só tinha como fim ser produto de enriquecimento da Globo, que representava o poder, então por conseguinte Jorge Amado para mim era um subterfúgio encontrado pelo stablishment para tentar convencer o mundo de que yes, nós temos literatura.
Isso remonta ao tempo em que me iniciava como leitor e começava a me envolver com os artistas e escritores da minha cidade. Por ingenuidade ou pela osmose que caracteriza grande parte do conhecimento que adquirimos em determinada época de nossas vidas, passei a incorporar, por assim dizer, parte da antipatia que Jorge Amado gerava nos intelectualóides com os quais eu convivia. Com um detalhe: eu nunca havia posto os olhos em um texto de Jorge Amado. Tereza Batista Cansada de Guerra, Tenda dos Milagres, aqueles batuques e atabaques, os terreiros de cadomblé, a sexualidade exacerbada, tudo isso me era mostrado através da televisão, que eu condenava por entendê-la instrumento de alienação popular e construção de mitos. Época da eleição de Collor, e eu contava 21 anos.
Vagando pelos sebos de minha cidade, sempore encontrava coleções inteiras das obras de Jorge. Inteiras. Páginas e páginas daquilo que, para mim, tratavam do mesmo assunto, o cacau, as mulheres (mais notadamente as prostitutas), a luta de classes do sul da Bahia. Nunca mudava de assunto. E se estavam no sebo, é porque para os compradores daquelas obras não valia a pena mantê-las em suas estantes. Eu tinha razão: Jorge Amado não passava de uma invenção do governo para dizer ao mundo que o Brasil também era capaz de produzir escritores.
Mas, como disse Fernando Sabino, "o homem é um bicho que passa a vida a conversar consigo mesmo. O bom de envelhecer é justamente esse: a conversa vai ficando mais interessante". 
O tempo passou e, no meu caso, a conversa se desenvolveu de forma muito agradável. Por coincidência ou providência, comecei minha aventura nos livros de Jorge com " Capitães da Areia", a fantástica história dos meninos abandonados da Bahia, sua vida, sua trajetória de miséria, sua condição de penúria e completo abandono, seus crimes, a descoberta do sexo e da violência que, muitas vezes, ocorre simultaneamente. Uma narrativa extremamente crua e com alta carga de ternura, alternando a capacidade de gerar poesia e escândalo em doses que fazem deste, para mim, um livro inesquecível, o preferido do autor pelos leitores portugueses, onde Amado é considerado um dos maiores romancistas a história da Literatura universal.
A partir daí, as leituras se sucederam, passando pelo célebre Mar Morto (do herói Guima) e pelo maravilhoso Terras do Sem Fim, que trata da luta entre os coroneis Badaró e Horácio pela conquista de terras, a disouta pela hegemonia política de Itabuna, o enriquecimento trazido pelo cultivo do cacau, etc.
Estes, livros da chamada primeira fase, que enfatizavam justamente, como já disse, a luta de classes e a idiossincrasia existente entre o bem e o mal que caracterizariam sua obra. Os pobres e injustiçados, os bêbados, as prostitutas, os ladrões, os menores abandonados figuram na obra de Jorge como a representação do Bem, por serem perseguidos, humilhados, injustiçados, condenados à penúria e à miséria pelos representantes do Mal -os coronéis do sertão, os latifundiários,  os agiotas, os donos do dinheiro que se armam de capangas e capatazes para subjugar e dizimar os trabalhadores do campo e do porto. 
Jorge Amado de Faria, como veremos, baiano de Itabuna nascido em 1912, sempre foi uma criança e um adolescente muito inventivo e problemático, até certo ponto, protagonizando fugas do colégio de padres para onde foi levado pelo pai. Durante estas fugas refugiou-se em prostíbulos, ocasiões em que travou conhecimento com personagens que seriam transferidos para seus livros com grande frequência. Para se ter uma ideia da produção literária de Jorge durante a adolescência, basta dizer que aos dezoito anos consegue entrar para o curso de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, para onde se transfere, e no ano seguinte já publica O País do Carnaval, seu primeiro romance, com tiragem de mil exemplares.
Nesta época da faculdade de Direito, Jorge, seguramente influenciado por seus companheiros, adere ao comunismo, filiando-se ao PCB e é acusado de participar de atividades subsersivas na cidade de Natal, sofrendo sua primeira prisão política no ano de 1936 -mesmo ano em que recebe o Prêmio Graça Aranha, oferecido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Mar Morto. Só para que não percamos as contas: ele tinha 24 anos.
Em 1937 sai Capitães de Areia, e é decretado no Brasil o Estado Novo, que entre outras arbitrariedades passa a perseguir e prender comunistas declarados, como é o caso de Jorge, mas também políticos, artistas e cidadãos comuns. Monteiro Lobato e Graciliano Ramos são alguns dos presos famosos da época. Jorge passa a viajar pelo Brasil tentando fugir, mas é preso em Manaus. 1600 exemplares de seus livros são queimados em praça pública em Salvador. É libertado em 1938 e mesmo após a prisão mantém sua participação política, posicionando-se publicamente contra a tortura de presos e contra a desarticulação do Partido Comunista.
Em 1939 seus livros começam a ser traduzidos para inglês e francês, devendo ser registrada a resenha altamente elogiosa escrita por Albert Camus acerca de Jubiabá.  Passa a defender a anistia de Luis Carlos Prestes e publica sua biografia no livro O Cavaleiro da Esperança, que sai em 1942, em espanhol, sendo lançado primeiramente na Argentina e no Uruguai, entrando no Brasil de forma clandestina e provocando nova prisão do autor, que acaba confiado em Salvador, numa espécie de "liberdade vigiada".
É eleito Deputado Federal com 15.315 votos, e propõe a Lei da Liberdade de Culto, que vigora até hoje. Neste  momento já está casado com Matilde, sua primeira esposa, a quem dedica vários de seus livros, e radica-se em São Paulo por conta do mandato de deputado. Continua publicando suas obras e conhece Zélia Gattai, que viria a ser sua segunda esposa e mãe de seus filhos Paloma e João Jorge.
O Partido Comunista é cassado em 1948 e Jorge perde seu mandato, começando nova perseguição. Exila-se com a família na Europa e volta ao Brasil em 1953, por ocasião da morte do amigo Graciliano Ramos. Durante sua estada no Velho Continente, faz amizade com personalidades como Sartre e sua esposa Simone de Beauvoir e Pablo Picasso.
No final dos anos 50 abandona a militância política, sob a alegação de que seu engajamento era prejudicial à atividade literária.
A obra de Jorge continuam obtendo cada vez mais êxito e reconhecimento internacional, e em abril de 1961 é eleito para a Academia Brasileira de Letras. No mesmo mês, a TV Tupi estreia a primeira adaptação de Gabriela para a TV. No mesmo ano, é convidado pelo presidente Juscelino Kubitschek para ser embaixador do Brasil na República Árabe Unida, que ele recusa.
O cada vez mais crescente interesse internacional à sua obra o faz adquirir novas amizades: Roman Polanski, Gabriel Garcia Marquez, José Saramago, Mario Vargas Llosa passam a ser visitas frequentes à sua casa no Rio Vermelho, onde já habitam os netos.   
É indicado ao Prêmio Nobel de Literatura nos anos de 1967 e 1968, e passam a ser inúmeras as homenagens que recebe, desde batizar ruas e praças até virar tema de samba-enredo de escolas de samba. São inúmeras as adaptações de seus livros para a TV e cinema, inclusive com Marcello Mastroianni fazendo o papel do turco Nacib em Gabriela, em produção ítalo-brasileira da década de 80.      
É criada a Fundação Casa de Jorge Amado, no ano de 1987, para preservação e divulgação da sua obra.
Em 2001, suas cinzas são depositadas aos pés da mangueira sob cuja sombra ele se sentara tantas vezes, mãos entrelaçadas às de Zélia, e onde recebeu tantos amigos e admiradores durante sua longa e prolífica vida.

Benilson Toniolo
06/08/12

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